Ex-integrante da Corte de Haia e duas vezes ministro do STF, jurista diz que decisão sobre prisão deve levar em conta realidade nacional
Ele tem uma linguagem tão cuidada que seus alunos do Instituto Rio Branco diziam que "fala por escrito”. José Francisco Rezek,
75 anos, já foi procurador da República, ministro das Relações
Exteriores, juiz da Corte Internacional de Justiça, presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e, até hoje, é a única pessoa a
ocupar, por duas vezes, o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF).
Atualmente, advoga em São Paulo e voltou à cena jurídica
brasiliense quando, a pedido da Associação Nacional de Procuradores da
República (ANPR), começou a defender o procurador Deltan Dallagnol, que
teve mensagens de aplicativo do celular roubadas por hackers e
publicadas na Vaza-Jato. “A Constituição é pisoteada quando se pretende
fazer de um hacker, ou de seu porta-voz, em qualquer cenário, o novo
herói nacional”.
Nesta entrevista ao Correio, Rezek
fala sobre a política externa de Bolsonaro, descreve o STF como “um
arquipélago de 11 monocracias, nem sempre comunicantes entre si”,
comenta sobre o possível fim da prisão em segunda instância no
julgamento desta semana e se diz na torcida para que a “fratura da
sociedade brasileira" seja curada pelo "poderoso anti-inflamatório da
tolerância”. Veja trechos abaixo:
O
senhor, além de ter sido ministro das Relações Exteriores, foi
professor do Instituto Rio Branco. Conhece bem a diplomacia brasileira.
Olhando pra trás e pra frente, o senhor diria que a diplomacia perde
relevância no Brasil e no mundo?
(...)
(...)
Há muitos anos, os analistas da vida internacional já anunciavam a
'decadência da diplomacia' por conta da facilidade e rapidez da
comunicação internacional; com o que os estadistas se entendem e
negociam diretamente, falam diretamente à imprensa e à sociedade,
tornando desnecessário o trabalho do diplomata. Mas pense no que tem
sido o fruto dessa comunicação direta no caso, por exemplo, de nosso
presidente, e de seus maiores ídolos, Donald Trump e Benjamin Netanyahu.
Não, a diplomacia, mesmo quando exercida por estranhos à carreira
(penso aqui, ao acaso, na ministra Teresa Cristina), serve no mínimo
para consertar os estragos que hoje tantos estadistas produzem quando se
põem a agir por conta própria e a dizer tudo que lhes vem à cabeça.
O
senhor conhece bem a ONU e os demais organismos internacionais. Eles
foram criados no pós-guerra. Qual a sua opinião: eles estão
superados? Respondem às urgências do século 21? Ou precisam se reinventar? Como?
Esse
processo começou no primeiro após-guerra, com a Liga das Nações, que
não foi feliz o bastante para evitar o segundo conflito. A ONU tem
cumprido satisfatoriamente seu papel: à sombra dela terminou a guerra
fria, o princípio democrático, os direitos humanos e as liberdades
públicas se generalizaram. Creio que a única e verdadeira urgência do
século 21 é a garantia da prevalência do direito internacional, sob o
princípio da igualdade soberana entre as nações, e dentro da arena da
organização.
O discurso do presidente Bolsonaro na ONU foi visto como uma guinada na tradição da diplomacia brasileira. Como o senhor avalia o discurso?
Esse
discurso nada teve de falso, mas foi feito na hora imprópria e no lugar
errado. Era algo para o público interno, ou menos que isso, para o
círculo íntimo do presidente, não para a tribuna das Nações Unidas. Em
vez de voar alto na afirmação dos grandes princípios que orientam a ação
internacional do Brasil, Bolsonaro perdeu-se em miudezas. Uma pena.
O
senhor acha crucial a entrada para a OCDE? Alguns embaixadores
experientes consideram que os códigos são muito rígidos, e o Brasil
hoje
está numa situação confortável. Qual a sua posição a respeito?
Os
embaixadores experientes a que você se refere têm toda razão. Não vale
dispender nosso cacife externo com essa campanha, visto que a relação
custo-benefício não a recomenda. Isso é tudo que importa. O suposto
abandono da candidatura brasileira pelo governo Trump não foi bem
entendido; e, afinal, não significa nada.
Como vê o inquérito aberto pelo presidente do STF para
apurar ofensas a ministros da Corte? É função do STF apurar isso? Não
seria função do Ministério Público?
Não foi uma ideia
feliz, e tenho a convicção de que seus autores já se convenceram disso.
Mas é difícil voltar atrás em certos cenários e em certos níveis de
autoridade.
A deputada Bia Kicis, do
PSL, apresentou uma PEC para rever a PEC da bengala e reduzir a idade de
aposentadoria dos ministros, hoje em 75 anos. Qual sua
posição a respeito?
A
PEC da bengala trouxe um enorme benefício ao país, à função pública, ao
tesouro público. Não faz sentido impor o pijama ao septuagenário cheio
de energia e experiência, e que deseja continuar trabalhando. Acho que
75 anos é um bom momento para a aposentadoria compulsória na
generalidade do serviço público. Para os tribunais, poderia ser até mais
tarde, como acontece em diversos países. Veja bem: a realidade nos
prova a todo momento que o pleno gozo das faculdades mentais e físicas
de um ser humano pode subsistir, em certos casos, até perto do
centenário. Assim como pode, em tantos outros casos, desaparecer muito
antes disso...
Qual a comparação que o
senhor faz entre o Supremo da sua época, e o atual, especialmente em
termos de exposição midiática?
O Brasil é o
único lugar no mundo onde os tribunais discutem de portas abertas a
matéria a ser julgada. Lá fora, nos demais países e nos foros
internacionais, o debate é secreto. De portas fechadas é muito mais
fácil reconhecer o erro, voltar atrás, ou simplesmente concordar com o
relator sem necessidade de uma longa arenga justificativa. O Supremo,
além de manter suas portas abertas (o que é um imperativo
constitucional), entra na casa das pessoas, de Norte a Sul do país, por
meio da TV Justiça. Isso tem importantes vantagens, e tem também
inconvenientes sérios, todos hoje percebidos por qualquer observador.
O STF recuperará o respeito do cidadão e o prestígio de que gozava há tempos? O que é necessário para que isso aconteça?
É
fundamental que isso aconteça, e que não demore. Mas há uma inevitável
dependência de que também a fratura da sociedade brasileira termine. Não
pela soldagem definitiva, o que não é possível nem bom numa democracia
pluralista. Mas por uma cura paliativa, com o poderoso anti-inflamatório
da tolerância.
O
senhor é advogado do procurador Deltan Dellagnol. Como enxerga as
críticas de ministros do STF de que a Lava-jato agiu como organização
criminosa?
Essa
não é, certamente, a opinião do Supremo. Nem da Justiça do Brasil no
seu conjunto. Muito menos a dos brasileiros em sua expressiva maioria.
Afinal,
a qualidade de um homem mede-se na razão inversa daquela de seus
inimigos mais ferozes. Quem são eles no caso do procurador Dallagnol?
E
a Vaza-Jato? O senhor considera que houve parcialidade da força-tarefa
da Lava-Jato ou do ministro Sérgio Moro enquanto juiz do caso em
primeira instância?
Se em
qualquer das grandes democracias deste mundo fôssemos invadir,
criminosamente, a comunicação sigilosa entre juízes e promotores, entre
advogados de todo gênero, entre governantes, entre cônjuges, entre
amantes, entre psiquiatras e seus clientes, entre confessores e seus
penitentes, não há limite, simplesmente não há limite para o tamanho do
estrago resultante do uso, não menos criminoso, do produto do grampo.
Por isso, a Constituição garante o sigilo das comunicações e protege a
intimidade das pessoas. Ela, a Constituição, é pisoteada quando se
pretende fazer do hacker, ou de seu porta-voz em qualquer cenário, o
novo herói nacional.
Como o senhor avalia
a decisão de pôr fim à prisão em segunda instância?
Há contradições
entre os incisos LVII e LXI, do artigo 5°, da Constituição?
É que o LXI
diz que o juiz pode mandar prender por meio de ordem escrita e
fundamentada, o que poderia ocorrer a qualquer momento na 1ª ou 2ª
instância. Já o LVII, na avaliação de ministros garantistas, só permite a
prisão depois de esgotado o último recurso no STF...
Tudo se resume em saber se a presunção de inocência (ninguém será
considerado culpado senão após o trânsito em julgado...etc) é compatível
não só com a prisão provisória, ou preventiva, ou cautelar, mas também
com a prisão para início de cumprimento de pena. Nesse ponto, a
linguagem da Constituição é insuficiente. Sua interpretação pelo Supremo
é necessária. Penso que o tribunal poderia, antes de mais nada, lembrar
o cenário em que nos encontramos: dificilmente se encontrará lá fora um
país cujas normas de processo penal tornem tão extensa a trama
recursiva, tão farto o número de recursos com que se pode retardar
indefinidamente o desfecho do processo. A expectativa do trânsito em
julgado para que só então ocorra a prisão do condenado não beneficia,
obviamente, as camadas mais humildes da sociedade. Acho que quando
esgotadas as instâncias ordinárias (o juiz singular, depois o tribunal
de segundo grau) a prisão pode ser decretada; e isto, ou seja, duas
instâncias, uma delas colegiada, é tudo quanto os tratados
internacionais de direitos humanos pedem. Mas creio, também, que o
tribunal deve ter o poder de retardar esse início de execução de pena em
circunstâncias excepcionais, próprias do caso concreto. E creio, ainda,
que o tribunal tem o dever de retardar a execução quando é ele próprio
que inova a condenação, reformando uma sentença absolutória de primeiro
grau.
No Correio Braziliense, entrevista completa