Um governo que era contra a corrupção e, na hora H, ajuda Toffoli a neutralizar o Coaf.
Com a volta do Congresso e do STF,
o delicado equilíbrio de forças entre os três Poderes precisa ser decifrado. Comecei a ler o livro
Os Onze, de Felipe Recondo e Luiz Weber, na
busca de mais informações sobre os bastidores e a história recente do
STF. A ideia era entender melhor como esse Poder se desdobra no futuro
próximo. Constatei no livro que um marco profundo na dinâmica do STF foi
a morte de Teori Zavascki. Não só foi alterada a correlação de forças
entre eles, mas perdeu-se uma figura agregadora. Isso impulsionou a
criação de ilhas independentes, com grande desenvoltura para decisões
monocráticas.
Mas a grande linha divisória desde o princípio foi a
Lava Jato.
Poucos sabem
, mas a operação chegou de certa forma ao próprio STF. Foi
um episódio ligado à Construcap, que doara R$ 50 mil a um membro do PT
com nome Toffoli. Parecia ser o do ministro. No mesmo ano, o irmão de
Toffoli disputou as eleições como deputado estadual. O mal-entendido
deixou cicatrizes. Nas suas mais recentes decisões,
Toffoli comportou-se como diante de
cerco se fechando contra ele. E se antecipa de uma forma que faz do STF
não um contrapeso democrático, mas um novo peso pesado em nossos
temores.
Toffoli começou criando um inquérito guarda-chuva para combater
acusações ao STF. Agregou Alexandre de Moraes como seu delegado
. O que
surgiu disso? Buscas na casa de pessoas que apenas criticavam o Supremo.
E logo em seguida a
censura à revista Crusoé, precisamente a que tinha
revelado relações financeiras atípicas entre ele e sua mulher. Num novo passo, Toffoli proibiu as investigações a partir de dados do
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), quebrando o
ritmo dos trabalhos, rompendo acordos internacionais, dificultando até a
entrada do Brasil na OCDE. Agregou o presidente Bolsonaro, uma vez que atendeu a um pedido da defesa de Flávio.
Finalmente,
Alexandre de Moraes suspendeu a fiscalização de ministros
do Supremo e outras autoridades, alegando serem tendenciosas. Um manifesto de
195 auditores afirma que são cruzamentos
automatizados que definem o objeto de fiscalização mais rigorosa. Não há
nada de pessoal ou político nisso. Tanto Toffoli como Gilmar Mendes
condenam, com razão, os vazamentos.
Mas, ora, basta punir quem vazou. Na realidade, os vazamentos que
prejudicam os investigados acabaram se transformando em algo
contraproducente no fim das investigações. O presidente Bolsonaro assinou uma medida provisória colocando a
Funai no Ministério da Agricultura. Derrotado, assinou de novo, o que é
ilegal numa mesma legislatura.
O Supremo funcionou como um contrapeso.
Mas quem funcionará como contrapeso quando o STF avança? O Congresso, a
outra ponta do triângulo, observa com uma resistência localizada no
Senado o pedido de CPI da Lava Toga.
Nesses últimos movimentos, Toffoli e Moraes investiram contra a
liberdade de imprensa e
agora criam um cinturão de aço protegendo alguns
ministros e suas mulheres da fiscalização financeira.
Para completar o quadro, o diretor do Coaf, Roberto Leonel, está
sendo pressionado a sair porque
Bolsonaro não gostou de suas críticas à
decisão de Toffoli proibindo o Coaf de levantar pistas para órgãos de
investigação. Como não protestar contra a decisão de Toffoli, se atinge o
núcleo de sua atividade, que é o controle das atividades financeiras?
E
mais: atinge também compromissos externos do Brasil. A briga pela
domesticação do Coaf é uma briga feia. Toffoli e
Bolsonaro estão juntos, a esquerda está se lixando para o Coaf. O
próprio Moro se vê diante da perda do Coaf e, agora, da de seu indicado
para dirigi-lo. No quesito engolir sapo, segue no seu aprendizado
político.
Era um governo contra a corrupção e, na hora H, ajuda Toffoli a
neutralizar o Coaf…
A ideia geral não era seguir o dinheiro? Agora é
proibido seguir o dinheiro. O Congresso tem se fixado na reconstrução econômica, o que é a
prioridade indiscutível. Por algumas manifestações de Rodrigo Maia,
críticas à Lava Jato, sente-se que o clima ali, com exceção do pequeno
núcleo no Senado,
tende a ser favorável a essa movida de Toffoli e
Bolsonaro. Há muito caminho pela frente: plenário do Supremo, resistência
institucional, pressão externa – pode ser que o bom senso ainda
prevaleça. De qualquer forma, um novo capítulo se abre também com a
chegada do inquérito dos vazamentos da Lava Jato. Vem para as mãos de
Moraes. O conteúdo das mensagens poderá trazer novas tensões, sobretudo
num ponto sensível: investigação de ministros.
Os ministros que divergem da Lava Jato não são só ilhas, mas um
arquipélago no STF.
Algumas vulcânicas e em erupção, como Toffoli, que
neutraliza o controle efetivo de transações financeiras para atender,
entre outros, o filho do presidente, as mulheres dos ministros. Parece-me às vezes uma utopia. Nem Trump está livre desse incômodo.
A ideia geral é de que a lei vale para todos. De certa maneira, o
País terá de chegar a um acordo sobre isso, pois transcende as
divergências com a Lava Jato. Um sistema de controle de transações
financeiras é essencial para combater o crime organizado, o terrorismo e
a própria corrupção. Ele ultrapassa os limites nacionais pela troca de
informações. É um sistema de defesa coletivo.
O cerne das divergências sobre a Lava Jato é a prisão em segunda
instância. Se cair esse dispositivo, os presos por corrupção serão
libertados. O impacto real será menor do que bloquear investigações.
Pelo menos foi tudo desvendado. Na situação atual, simplesmente nada
saberíamos. Estamos no limbo, uma palavra que significa margem,
esquecimento, mas também, no sentido religioso, aquele lugar para onde
antigamente iam as crianças inocentes. Hoje não vão mais para o limbo.
Vão para o céu. O que certamente não será o nosso caso.
Artigo publicado no Estadão em 09/08
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