O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, quer que o
Código Penal Militar seja alterado para que crimes dolosos contra a
vida cometidos por integrantes das Forças Armadas contra civis em
"operações de garantia da lei e da ordem" voltem a ser julgados pela
Justiça Militar, e não pela Justiça Comum, como ocorre desde 1996.
Segundo ele, a medida traria mais celeridade e segurança jurídica a esses casos. Especialistas ouvidos pela ConJur avaliam que essa alteração poderia dar margem a julgamentos corporativistas.
Villas Bôas afirmou recentemente, em redes sociais, que a operação das Forças Armadas no Rio de Janeiro “exige segurança jurídica aos militares envolvidos”. Por ser comandante do Exército, o general disse ter “o dever de protegê-los”, opinando que a legislação precisa ser revista. Questionado pela ConJur sobre quais são as alterações necessárias na visão do general, o Exército respondeu que é preciso transferir para a Justiça Militar a competência dos crimes dolosos contra a vida praticados por oficiais contra civis.
Quando o Código Penal Militar foi outorgado, em 1969, na ditadura militar, estabeleceu que esses delitos seriam julgados pela Justiça Militar. Isso mudou com a Lei 9.299/1996, que determinou que os crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil são da competência da Justiça Comum. De acordo com o Exército, por meio de sua assessoria de imprensa, o fato de o oficial em operação ser julgado pela Justiça Comum “pode trazer prejuízos para a carreira profissional do militar, caso venha a se envolver em um confronto, e para a operação em si, já que uma pronta reação pode ficar comprometida”.
Por isso, a corporação é favorável a devolver a competência para o julgamento de tais delitos, quando cometidos em operação de garantia da lei e da ordem, para a Justiça Militar. Na visão da instituição, a mudança aumentaria a segurança jurídica e a celeridade processual. “Ao submeter os casos de crime a um togado de Justiça Militar, ganha-se em celeridade e, principalmente, no grau de conhecimento das atividades militares deste magistrado ao qual se submeterá o processo”, diz o comunicado do Exército à ConJur.
Ideia antiga
Dessa maneira, o Exército apóia a aprovação do Projeto de Lei 2014/2003. A proposta fixa que apenas militares dos estados e do Distrito Federal, como policiais militares e bombeiros, sejam julgados pela Justiça Comum em caso de crime doloso contra a vida praticado contra civil. Assim, membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica teriam suas condutas avaliadas pela Justiça Militar.
Outro projeto semelhante é o PL 44/2016, aprovado no ano passado pela Câmara dos Deputados. O texto dá poderes à Justiça Militar da União para cuidar de processos de crimes dolosos contra a vida contra civis cometidos sob ordens do presidente da República ou do ministro da Defesa; em ação que envolva a segurança de instituição ou missão militar ou em atividade de natureza militar, de operação de paz ou de garantia da lei e da ordem.
A proposta foi encaminhada pelo governo Michel Temer (PMDB) ao Legislativo em regime de urgência. O objetivo do governo era aprovar a medida antes das Olimpíadas, quando 22 mil militares ocuparam as ruas do Rio de Janeiro. No entanto, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) entendeu que o texto deveria ser aprovado pelas comissões da casa.
Na ocasião, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) afirmou que o projeto poderia levar à impressão de que se estaria concedendo "uma licença para matar e ser julgado pela Justiça Militar e não pela Justiça comum". Ele também lembrou que o Brasil promoveu grandes eventos (como Copa do Mundo, em 2014, e Jogos Panamericanos, em 2007) sem a necessidade de uma lei dessa natureza. Entre outros senadores que se manifestaram contra a urgência, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) disse que a proposta é uma “total temeridade”, Ricardo Ferraço (PSDB-ES) afirmou que a ideia é “pra lá de inconveniente” e José Aníbal (PSDB-SP) alertou para “impacto negativo” internacionalmente.
Precedente do STM
Em 2016, o Superior Tribunal Militar entendeu, por unanimidade, que a Justiça Militar da União é competente para processar e julgar casos de homicídio doloso cometidos por militares das Forças Armadas contra civis. O entendimento foi consolidado durante apreciação de um caso de homicídio supostamente cometido por um militar do Corpo de Fuzileiros Navais. Ele foi acusado de matar um civil durante uma ação militar executada em abril de 2014 no Complexo da Maré, no Rio.
Segundo o relator do caso, ministro José Coêlho Ferreira, a Lei 9.299/1996, levaria à conclusão de que a Justiça Militar da União seria incompetente para julgar o caso, por se tratar de suposto homicídio doloso praticado contra civil. Contudo, disse ele, uma análise mais aprofundada e cautelosa do dispositivo demonstra o contrário. O magistrado opinou que essa lei se originou a partir do clamor popular em razão das constantes notícias veiculadas de lesões corporais e homicídios praticados por policiais militares contra civis na década de 1990, tais como nos casos da Favela Naval (SP), Eldorado dos Carajás (PA), Candelária e Vigário Geral (ambos no Rio).
“É cediço que a intenção inicial da reforma do Código Penal Militar era retirar a competência da Justiça Militar Estadual para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos contra civis tão apenas por militares dos estados, excluindo os militares das Forças Armadas”, afirmou o relator.
Porém, a seu ver, o texto final da lei acabou englobando também os militares das Forças Armadas, por um “claro erro de abrangência”, tendo em vista que eles também estão submetidos ao Código Penal Militar. O relator acrescentou que a Emenda Constitucional 45/2004 tirou as dúvidas sobre o tema, pois alterou significativamente a competência das justiças militares estaduais. O texto da emenda diz que compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do tribunal do júri quando a vítima for civil. [nos parece um absurdo que em um confronto entre um militar das FORÇAS AUXILIARES, o militar agindo a serviço e no estrito cumprimento do DEVER, ocorrendo a morte de um civil, seja a ocorrência submetida ao tribunal do júri, haja vista restar claro que o crime é de natureza MILITAR, haja vista que foi cometido por militar em serviço, durante operação militar, tendo como vítima civil que colocou em risco a operação militar e os próprios militares.]
“A partir daí, bastaria uma correta interpretação do texto constitucional, à luz da Emenda Constitucional 45/2004, para se concluir sobre competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares da União [Forças Armadas]. Ora, a despeito de ter alterado substancialmente a competência das justiças militares dos estados, tal emenda em nada modificou a competência da Justiça Militar da União.” Portanto, observou Ferreira, o legislador destacou visivelmente no seu texto que deverá ser “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil”, somente no artigo que faz referência às justiças militares dos estados, não tratando do assunto nos artigos referentes à Justiça Militar da União. Ele foi seguido por todos seus colegas no STM.
Sinal dúbio
Contudo, especialistas ouvidos pela ConJur não acreditam que a transferência de competência dos crimes dolosos cometidos contra civis para a Justiça Militar atingiria os benefícios alardeados pelo Exército.Tanto Geraldo Prado, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, quanto Breno Melaragno Costa, presidente da Comissão de Segurança Pública da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil, destacam que a competência desses delitos passou para a Justiça Comum para evitar proteções corporativas.
O retorno ao sistema pré-1996 poderia sinalizar ao militar que ele teria um julgamento mais brando nesses casos, analisa Costa, ressaltando que a Justiça Militar é séria, eficiente e não costuma agir de forma corporativista. Já Prado afirma que essa mudança não aumentaria a segurança jurídica. A seu ver, a segurança é dada pela clareza de quem vai julgar a questão, algo que já está consolidado. E a Justiça Comum, segundo ele, tem “plenas condições” de analisar acusações de crimes dolosos contra a vida de civis praticados por integrantes das Forças Armadas.
Legalidade questionada
Profissionais do Direito divergem quanto à constitucionalidade e legalidade do uso das Forças Armadas para patrulhar as ruas do Rio e quanto à sua eficácia em reduzir a criminalidade a longo prazo. O uso das Forças Armadas para exercer atividades de policiamento ostensivo, atividades próprias da Polícia Militar, contraria a Constituição e a LC 97/1999, segundo o jurista Lenio Streck.
Por outro lado, a professora de Direito Constitucional da Uerj Ana Paula de Barcellos não enxerga irregularidade se a ação tiver prazo e alcance delimitados.
Texto transcrito do site do STM
Segundo ele, a medida traria mais celeridade e segurança jurídica a esses casos. Especialistas ouvidos pela ConJur avaliam que essa alteração poderia dar margem a julgamentos corporativistas.
Villas Bôas afirmou recentemente, em redes sociais, que a operação das Forças Armadas no Rio de Janeiro “exige segurança jurídica aos militares envolvidos”. Por ser comandante do Exército, o general disse ter “o dever de protegê-los”, opinando que a legislação precisa ser revista. Questionado pela ConJur sobre quais são as alterações necessárias na visão do general, o Exército respondeu que é preciso transferir para a Justiça Militar a competência dos crimes dolosos contra a vida praticados por oficiais contra civis.
Quando o Código Penal Militar foi outorgado, em 1969, na ditadura militar, estabeleceu que esses delitos seriam julgados pela Justiça Militar. Isso mudou com a Lei 9.299/1996, que determinou que os crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil são da competência da Justiça Comum. De acordo com o Exército, por meio de sua assessoria de imprensa, o fato de o oficial em operação ser julgado pela Justiça Comum “pode trazer prejuízos para a carreira profissional do militar, caso venha a se envolver em um confronto, e para a operação em si, já que uma pronta reação pode ficar comprometida”.
Por isso, a corporação é favorável a devolver a competência para o julgamento de tais delitos, quando cometidos em operação de garantia da lei e da ordem, para a Justiça Militar. Na visão da instituição, a mudança aumentaria a segurança jurídica e a celeridade processual. “Ao submeter os casos de crime a um togado de Justiça Militar, ganha-se em celeridade e, principalmente, no grau de conhecimento das atividades militares deste magistrado ao qual se submeterá o processo”, diz o comunicado do Exército à ConJur.
Ideia antiga
Dessa maneira, o Exército apóia a aprovação do Projeto de Lei 2014/2003. A proposta fixa que apenas militares dos estados e do Distrito Federal, como policiais militares e bombeiros, sejam julgados pela Justiça Comum em caso de crime doloso contra a vida praticado contra civil. Assim, membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica teriam suas condutas avaliadas pela Justiça Militar.
Outro projeto semelhante é o PL 44/2016, aprovado no ano passado pela Câmara dos Deputados. O texto dá poderes à Justiça Militar da União para cuidar de processos de crimes dolosos contra a vida contra civis cometidos sob ordens do presidente da República ou do ministro da Defesa; em ação que envolva a segurança de instituição ou missão militar ou em atividade de natureza militar, de operação de paz ou de garantia da lei e da ordem.
A proposta foi encaminhada pelo governo Michel Temer (PMDB) ao Legislativo em regime de urgência. O objetivo do governo era aprovar a medida antes das Olimpíadas, quando 22 mil militares ocuparam as ruas do Rio de Janeiro. No entanto, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) entendeu que o texto deveria ser aprovado pelas comissões da casa.
Na ocasião, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) afirmou que o projeto poderia levar à impressão de que se estaria concedendo "uma licença para matar e ser julgado pela Justiça Militar e não pela Justiça comum". Ele também lembrou que o Brasil promoveu grandes eventos (como Copa do Mundo, em 2014, e Jogos Panamericanos, em 2007) sem a necessidade de uma lei dessa natureza. Entre outros senadores que se manifestaram contra a urgência, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) disse que a proposta é uma “total temeridade”, Ricardo Ferraço (PSDB-ES) afirmou que a ideia é “pra lá de inconveniente” e José Aníbal (PSDB-SP) alertou para “impacto negativo” internacionalmente.
Precedente do STM
Em 2016, o Superior Tribunal Militar entendeu, por unanimidade, que a Justiça Militar da União é competente para processar e julgar casos de homicídio doloso cometidos por militares das Forças Armadas contra civis. O entendimento foi consolidado durante apreciação de um caso de homicídio supostamente cometido por um militar do Corpo de Fuzileiros Navais. Ele foi acusado de matar um civil durante uma ação militar executada em abril de 2014 no Complexo da Maré, no Rio.
Segundo o relator do caso, ministro José Coêlho Ferreira, a Lei 9.299/1996, levaria à conclusão de que a Justiça Militar da União seria incompetente para julgar o caso, por se tratar de suposto homicídio doloso praticado contra civil. Contudo, disse ele, uma análise mais aprofundada e cautelosa do dispositivo demonstra o contrário. O magistrado opinou que essa lei se originou a partir do clamor popular em razão das constantes notícias veiculadas de lesões corporais e homicídios praticados por policiais militares contra civis na década de 1990, tais como nos casos da Favela Naval (SP), Eldorado dos Carajás (PA), Candelária e Vigário Geral (ambos no Rio).
“É cediço que a intenção inicial da reforma do Código Penal Militar era retirar a competência da Justiça Militar Estadual para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos contra civis tão apenas por militares dos estados, excluindo os militares das Forças Armadas”, afirmou o relator.
Porém, a seu ver, o texto final da lei acabou englobando também os militares das Forças Armadas, por um “claro erro de abrangência”, tendo em vista que eles também estão submetidos ao Código Penal Militar. O relator acrescentou que a Emenda Constitucional 45/2004 tirou as dúvidas sobre o tema, pois alterou significativamente a competência das justiças militares estaduais. O texto da emenda diz que compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do tribunal do júri quando a vítima for civil. [nos parece um absurdo que em um confronto entre um militar das FORÇAS AUXILIARES, o militar agindo a serviço e no estrito cumprimento do DEVER, ocorrendo a morte de um civil, seja a ocorrência submetida ao tribunal do júri, haja vista restar claro que o crime é de natureza MILITAR, haja vista que foi cometido por militar em serviço, durante operação militar, tendo como vítima civil que colocou em risco a operação militar e os próprios militares.]
“A partir daí, bastaria uma correta interpretação do texto constitucional, à luz da Emenda Constitucional 45/2004, para se concluir sobre competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares da União [Forças Armadas]. Ora, a despeito de ter alterado substancialmente a competência das justiças militares dos estados, tal emenda em nada modificou a competência da Justiça Militar da União.” Portanto, observou Ferreira, o legislador destacou visivelmente no seu texto que deverá ser “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil”, somente no artigo que faz referência às justiças militares dos estados, não tratando do assunto nos artigos referentes à Justiça Militar da União. Ele foi seguido por todos seus colegas no STM.
Sinal dúbio
Contudo, especialistas ouvidos pela ConJur não acreditam que a transferência de competência dos crimes dolosos cometidos contra civis para a Justiça Militar atingiria os benefícios alardeados pelo Exército.Tanto Geraldo Prado, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, quanto Breno Melaragno Costa, presidente da Comissão de Segurança Pública da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil, destacam que a competência desses delitos passou para a Justiça Comum para evitar proteções corporativas.
O retorno ao sistema pré-1996 poderia sinalizar ao militar que ele teria um julgamento mais brando nesses casos, analisa Costa, ressaltando que a Justiça Militar é séria, eficiente e não costuma agir de forma corporativista. Já Prado afirma que essa mudança não aumentaria a segurança jurídica. A seu ver, a segurança é dada pela clareza de quem vai julgar a questão, algo que já está consolidado. E a Justiça Comum, segundo ele, tem “plenas condições” de analisar acusações de crimes dolosos contra a vida de civis praticados por integrantes das Forças Armadas.
Legalidade questionada
Profissionais do Direito divergem quanto à constitucionalidade e legalidade do uso das Forças Armadas para patrulhar as ruas do Rio e quanto à sua eficácia em reduzir a criminalidade a longo prazo. O uso das Forças Armadas para exercer atividades de policiamento ostensivo, atividades próprias da Polícia Militar, contraria a Constituição e a LC 97/1999, segundo o jurista Lenio Streck.
Por outro lado, a professora de Direito Constitucional da Uerj Ana Paula de Barcellos não enxerga irregularidade se a ação tiver prazo e alcance delimitados.
Texto transcrito do site do STM