O pensador
e moralista francês La Rochefoucauld (1613-1680) é autor de uma frase,
frequentemente atribuída a Oscar Wilde, que é de uma verdade a um só
tempo solar e soturna. Solar porque inquestionável. Soturna porque um
tanto pessimista, desencantada. Vamos lá: “A hipocrisia é uma homenagem
que o vício presta à virtude”. Como negar? Os viciosos fazem questão de
demonstrar, em público, seu apreço pelas práticas virtuosas, não é?
Como, com efeito, não vivem de acordo com os costumes e valores dos
quais fazem propaganda, tem-se, então, a hipocrisia — vale dizer: a
dissimulação, a representação, a falsa aparência.
Por que eu
me lembro disso? Em razão de um papelucho enviado por Raquel Dodge,
procuradora-geral da República, ao ministro Roberto Barroso. Mal dá para
acreditar no que lá vai quando se leva em conta a prática cotidiana de
procuradores da República e delegados da PF Brasil afora. Vamos ver.
Em uma entrevista à agência Reuters há alguns dias, Fernando Segovia,
delegado-geral da Polícia Federal, afirmou não haver provas contra
Michel Temer num dos casos inventados por Rodrigo Janot — aquele segundo
o qual o presidente teria beneficiado uma empresa com uma Medida
Provisória sobre os portos. Notem: Segovia afirmou não mais do que um
dado da realidade. Afinal, provas não há. Tanto é que a Polícia Federal
pediu a prorrogação do inquérito por mais 60 dias.
Doutora
Raquel enviou tal pedido a Barroso junto com um outro: para que seja
expedida uma ordem para que Segovia se abstenha de “qualquer ato de
ingerência sobre a persecução penal em curso”. Ela inclui aí eventuais
manifestações públicas a respeito, sob pena, advertiu de “afastamento do
cargo”.
E doutora Raquel lembrou:
“Quaisquer manifestações a
respeito de apurações em curso contrariam os princípios que norteiam a
Administração Pública, em especial o da impessoalidade e da moralidade”.
Muito bem! Eu estou com ela.
E todas as
declarações dadas, por exemplo, pelos procuradores Deltan Dallagnol e
Carlos Fernando sobre investigações em curso, sobre políticos que nem
mesmo são ainda investigados, sobre o Congresso Nacional, sobre as
eleições, sobre financiamento de campanha, sobre intervenção no Rio,
sobre a atuação de ministros do STF, sobre projetos de lei em votação,
sobre emendas constitucionais?…
Enfim, escolham um miserável assunto sobre o qual a dupla e alguns outros da turma não se manifestem.
Uma
perguntinha à doutora Raquel. Por acaso, os membros do Ministério
Público Federal não estão submetidos aos tais “critérios que norteiam a
administração pública, em especial o da impessoalidade e da moralidade?”
Quando,
depois de operações da Polícia Federal ou do oferecimento de denúncia,
delegados e procuradores concedem entrevistas coletivas, em que condenam
sumariamente pessoas que nem ainda foram denunciadas, os tais
princípios em nome dos quais fala a doutora não estão sendo jogados no
lixo?
A
procuradora não consegue fazer com que os que a ela se subordinam
obedeçam as regras mínimas do próprio MPF e ameaça o delegado-geral da
PF com “o afastamento do cargo”? Que medida efetiva ela tomou até agora
contra o abuso praticado pelos de sua turma? Sim, o MPF exerce o
controle externo da PF. Por acaso, a titular da PGR assistiu ontem à
entrevista coletiva da delegada Luciana Matutino, acompanhada do seu
chefe, Daniel Justo Madruga, sobre a operação na casa do ex-ministro e
ex-governador Jaques Wagner? A doutora achou aquilo normal?
Venha cá,
doutora Raquel! Afirmar que não há provas contra alguém — quando não há —
fere a moralidade, mas praticar linchamento moral e execução sumária,
como fazem delegados e procuradores, obedece aos rigores da lei?
A
corrupção é, sim, um mal a ser combatido. Mas a desordem institucional,
acreditem, é um mal ainda mais perigoso porque esta permite que a
corrupção, inclusive a de costumes e de valores — além da outra, a
tradicional — se torne monopólio de um grupo.
Blog do Reinaldo Azevedo