O Estado de S.Paulo
Só num país, entre os mais de 190 existentes no mundo, pessoas fazem
carreata contra o isolamento social, riem do coronavírus, desdenham da
doença e da morte ou dançam na rua com uma imitação de caixão em plena
pandemia. Não há registro de algo tão macabro nos Estados Unidos,
Itália, Espanha, França, Alemanha, Canadá, Argentina, Coreia do Sul... Também não se consegue imaginar Donald Trump, Giuseppe Conte, Pedro
Sanchez, Emmanuel Macron, Angela Merkel, Justin Trudeau, Alberto
Fernandez ou Moon Jae-in indo às ruas alegremente, sem máscaras,
causando aglomeração, misturando-se com incautos, tocando pessoas mesmo
depois de tossir.
Com mais de meio milhão de casos oficiais de coronavírus e perto de cem
mil mortes no planeta, já imaginaram Trump e Macron misturados com
pessoas na rua ou num aeródromo? E que tal Merkel e Trudeau
confraternizando displicentemente com manifestantes contra a Suprema
Corte e o Congresso? Bem, com o mandatário do Brasil o mundo todo já está acostumado. O que
não tem explicação e a compreensão geral não alcança é por que pessoas
com razoável escolaridade se metem em carrões, caminhonetes e
motocicletas para protestar contra o isolamento e exigir que os
trabalhadores enfrentem o coronavírus, cara a cara.
O ministro da Saúde grita “isolamento, isolamento, isolamento” para o
seu paciente Brasil. E “trabalho, trabalho, trabalho” para ele próprio,
que é médico, está dormindo e acordando com a pandemia e sabe da
gravidade da situação – e como é muito diferente o vírus se espalhar
entre os bem nutridos, como agora, e entre miseráveis que se amontoam em
casebres insalubres, como fatalmente vai acontecer.
O que essas pessoas das carreatas têm na cabeça?
Elas fecham os olhos e
os ouvidos para as informações de todo santo dia, toda santa hora, sobre
a disseminação e as mortes?
Não sabem que milhares de pessoas morrem
todos os dias no mesmo planeta que abriga o Brasil?
Ou elas sabem, estão
bem informadas, mas acham mesmo que morrer umas 5 mil, 6 mil pessoas
não tem nenhum problema? Desde que sejam pobres, evidentemente.
O presidente da República diz que o vírus e essa gripezinha já estão
indo embora. O ministro da Saúde diz que os tempos “mais duros” serão
entre maio e junho. A quem os brasileiros devem ouvir? Isso confunde,
desagrega, desorganiza e atrapalha os responsáveis por reduzir a
disseminação e as mortes. Eles imploram por “paz para trabalhar”, como o
ministro. Não há a menor dúvida de que o coronavírus, além de ameaçar a saúde e a
vida, é uma tragédia para indústria, comércio, empregos e renda das
pessoas. O presidente está correto em reconhecer e advertir que a coisa
vai ficar cada vez pior na economia – que pode entrar em recessão de até
4%, segundo o governo, ou 5%, de acordo com o Banco Mundial. A questão é
que, sem isolamento, vai haver milhares de contaminados e mortos a mais
do que o previsto. Isso não vai ajudar, só piorar a economia.
Não parece tão complicado de compreender, de tão lógico, o que reforça a
dúvida, ou angústia: por que pessoas fazem carreata contra o isolamento
e dancinha nas ruas em plena pandemia?
Por ideologia, teimosia,
fanatismo, perversidade?
Por desdém pelas maiores vítimas em todas as
circunstâncias, os mais pobres, os “invisíveis”?
Sinceramente, essa é a direita brasileira? Fanática, terraplanista, que
desdenha de uma pandemia, brinca com a morte de entes queridos alheios,
luta contra a realidade e reverencia mitos sem usar de senso crítico,
racionalidade, humanidade? Não pode ser verdade. Apesar de escondida,
certamente há uma direita moderna, inteligente e humana, que não aprova
essas carreatas nem ódio na internet. Apresente-se, por favor!
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo