Igor Gielow
Em artigo crítico aos Poderes e à imprensa, vice estimula teorias conspiratórias, mas que esbarram na realidade
O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, plantou um
espantalho no meio do mundo político brasileiro nesta quinta-feira (14). Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o militar da reserva
fez uma longa admoestação de todos os envolvidos na crise tríplice na
qual o país está imerso, com seus vetores sanitário, político e
econômico. Houve um ensaio de autocrítica sobre a responsabilidade de seu chefe,
Jair Bolsonaro, como um dos atores que se tornaram "incapazes do
essencial para resolver qualquer problema: sentar à mesa, conversar e
debater".
Houve duras críticas aos outros Poderes e à imprensa no artigo, que
condensam de forma inteligível as queixas do governo nas últimas
semanas, além da preocupação com a economia. A defesa federativa, com a devida citação à fundação dos EUA, não difere
em essência da nota emitida pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa) há
duas semanas, que refletia a insatisfação da ala militar do governo com o
que consideram cerco de Poderes ao Executivo.
Até aí, foi uma típica demonstração do pensamento militar brasileiro
acerca da ideia de nação, que rejeita sentimentos autonomistas à la
1932, inclusive com o recibo passado no item Amazônia. Mourão reclamou do artigo de ex-chanceleres queixando-se de danos à
imagem externa do país inclusive pela devastação da floresta, "uma
acusação leviana" para ele. O vice coordena o comitê federal que trata da região, xodó geopolítico
dos fardados desde o começo do século 20. Foi talvez o ponto mais
unânime entre oficiais-generais da ativa presente no texto, assim como a
noção salvacionista que foi despertada do torpor pós-ditadura com o
governo Bolsonaro.
Cobrou, como já havia feito, a exposição do contraditório favorável às
visões do governo na mídia. Perto dos impropérios usuais de seu chefe,
foi cordato e reverenciou o papel da imprensa, um contraponto que gosta
de estabelecer. O debate seria quase acadêmico, não fosse uma advertência inicial, nada
casual, de que a pandemia da Covid-19 pode se tornar uma crise de
segurança.
O passado de Mourão tornou, aos olhos de muitos, preocupante sua
colocação. O corolário dela pode ser aquilo que, enquanto candidato,
definiu como a possibilidade de um autogolpe por parte do presidente em
cenário de anomia ou anarquia. [alguém conhece outras formas, que não seja a propiciada por um governo central forte, de restabelecer o império das leis e da ordem?]
Nunca é demais lembrar as assertivas de cunho golpista do vice, hoje
visto como uma espécie de contraponto ponderado à balbúrdia representada
por Bolsonaro. Em 2015, ele sugeriu o "despertar de uma luta
patriótica" ao falar do processo de impeachment de sua comandante
suprema, Dilma Rousseff (PT). Dois meses depois, autorizou, sob seu comando na região Sul, uma
homenagem após a morte de Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo de
Bolsonaro e torturador de Dilma na ditadura. [o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um militar injustiçado, que merece com todas as honras estar no Panteão dos Heróis da Pátria - com exclusão prévia de alguns que lá estão, colocados imerecidamente e por abuso da maldita esquerda que governou o Brasil;
ainda que fosse um torturador e tivesse torturado a escarrada Dilma, já seria o suficiente para ser anistiado, honrado e lembrado como herói da Pátria Amada.] Isso lhe custou o cargo, e
foi encostado em uma posição burocrática em Brasília.
Em 2017, já no meio da crise política do governo Michel Temer (MDB),
Mourão sugeriu em uma palestra que a intervenção militar seria possível
caso o Judiciário não desse conta da situação. [a Constituição Federal prever, com clareza meridiana e em combinação com o artigo 15, 'caput' da Lei Complementar nº 97, a intervenção militar.
Por complementação da LC 97, os pedidos de intervenção devem ser dirigidos ao presidente da República - comandante supremos das Forças Armadas.]
Era no fundo, assim como na questão do autogolpe, uma leitura distorcida
do artigo 142 da Constituição, que prevê ações fardadas a pedido dos
Poderes sob a égide da Carta, nada a ver com a ideia de "intervenção
militar constitucional" que frequenta grupos de WhatsApp bolsonaristas. Imunizado pela quarta estrela sobre o ombro, Mourão deslizou para a reserva em 2018, de onde saltou para o barco bolsonarista.
Pelo grau do temor apresentado na praça, o objetivo político primário do texto foi alcançado. O supracitado espantalho é o temor de uma intervenção militar. Isso
alimenta a teoria de que Bolsonaro estaria tratando a pandemia com
desdém para que a crise social se agudizasse tanto a ponto de dar o
referido autogolpe.
Uma visão conspiratória alternativa vê no texto de Mourão algo
diferente: ele mesmo se coloca como a alternativa à anarquia, com um
suposto apoio das Forças Armadas pelo simples fato de ser quem é. [caso ocorresse o 'impeachment' de Bolsonaro, com forte reação popular, estaria configurado uma situação de anarquia.
Um dos caminhos para conter essa situação e elidir eventual situação de anomia, seria empossar o vice-presidente da República = general de exército Hamilton Mourão.
Caso houvesse embaraços a sua posse, estaríamos diante da necessidade de fazer cumprir as leis e a Carta Magna,para empossar o vice-presidente e só as FF AA tem condições objetiva da restabelecer o império da LEI e da ORDEM.
As Forças Armadas estão prontas a cumprir a Constituição vigente e cumprir a Constituição não é ser golpista.]
Ambas as visões esbarram na realidade, neste momento ao menos. Não
existe coesão fardada para qualquer movimento golpista real. Como a
Folha já mostrou, Forças como a Marinha e a Força Aérea não são
entusiastas nem da simbiose com o governo, nem do protagonismo do
Exército no processo. [o Exército é mais moderno que a Marinha e mais antigo que a Força Aérea - mas as três Foças estão irmanadas na defesa da Pátria, da Lei e da Ordem.] O necessário apoio das elites empresariais a qualquer empreitada antidemocrática não parece sair dos nichos mais bolsonaristas.
O próprio presidente tentou dar a receita, tomando carona nos efeitos
econômicos da pandemia, falando em live da Fiesp na manhã desta quinta:
"É guerra, tem de jogar pesado com governadores", a começar por seu
adversário figadal, o governador João Doria (PSDB-SP). Não se imaginam soluções fora da Carta com a atual geração da cúpula
militar. Mas impeachment está na regra, e Mourão é a tal alternativa
constitucional sempre lembrada em conversas.
Nesse sentido, seu artigo corre o risco de ser lido como um esboço da
versão verde-oliva da Ponte para o Futuro, o programa liberal do MDB que
cimentou a viabilidade de Temer entre a elite. Se ele teve tal intenção, o tempo dirá. Por ora, é conveniente a
Bolsonaro que o espantalho permaneça onde está, enquanto ceva o centrão
para dizer que impeachment é impossível. De quebra, visa intimidar um ameaçador Supremo, com inquéritos que ouvem [regidos por um ministro-relator que ofende, constrange e tenta humilhar oficiais generais.] generais e decisões incômodas.