Uma das
coisas mais estúpidas que se podem afirmar sobre o assassinato da
vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) é que o evento trágico demonstra a
falência da democracia, como deram para fazer alguns militantes de
esquerda. Não! Esse é um juízo perturbado, típico de mentes
autoritárias. A morte de Marielle significa que é preciso radicalizar a
democracia, aprimorá-la. E isso significa que o regime tem de chegar a
uma política de segurança pública que impeça o descalabro a que foram
levados o Rio e outros Estados.
Um dos
mantras prediletos da esquerda vesga é que só se chegará a uma resposta
adequada para a questão da violência quando o país resolver os problemas
da desigualdade, da educação, da saúde, da moradia. Vale dizer: seremos
um paraíso quando formos um paraíso. Trata-se de um despropósito em si,
que ignora evidências fáticas. E a primeira delas está no fato de que
pobreza e criminalidade não devem ser tomadas como palavras sinônimas.
Ou não conseguiríamos botar o nariz fora da porta. Só uma minoria dos
pobres decide delinquir. Aliás, suspeito que haja, proporcionalmente,
mais endinheirados tendentes a desrespeitar as leis do que os pobres.
Por que
essa consideração é importante? Porque, à diferença do que pensa, se é
que se pode chamar aquilo de pensamento, o tal coletivo 342, composto de
artistas do miolo mole, os pobres são reféns da bandidagem, ainda que
possam também ser vítimas da banda pobre da polícia. E, a depender do
lugar, são tiranizados pelas milícias. Aliás, do ponto de vista moral e
criminal, milicianos e traficantes se igualam. Só os distinguem o
interesse objetivo: vale dizer, cada um tem suas próprias prioridades na
hora de cometer crimes. Mas os alvos são os mesmos: os pobres e o
Estado de Direito. E é isso que os deslumbrados se negam a ver.
Quando se
assiste àquele vídeo infeliz do “342”, de que Marielle é um dos
destaques, tem-se a impressão de que “ozartista” e os pobres estão
unidos numa mesma causa: contra a intervenção federal no Rio. E se trata
de uma mentira deslavada. Ao contrário. A esmagadora maioria dos
moradores dos morros e dos pobres do asfalto é favorável à ação. É o fim
da picada que essa gente pretenda se apresentar como porta-voz de uma
realidade e de um cotidiano que, de fato, desconhecem. Quantos daqueles
valentes vivem o dia a dia do homem comum das favelas, aquele que nem é
artista do Projaquistão nem é um “líder de comunidade”? E, se notaram,
um líder de comunidade incapaz de dizer uma palavra, uma miserável que
seja, contra o narcotráfico.
Mais
ainda: se pobreza e desigualdade de renda fossem as causas principais da
desestabilização do próprio estado, indo além da mal epidêmico, então
as taxas de homicídio seriam mais ou menos uniformes país afora. E essa é
uma mentira clamorosa. Os mortos por 100 mil habitantes em São Paulo
são hoje pouco menos de 10, contra 40 no Rio de Janeiro e 30 quando se
considera o Brasil como um todo. A Polícia Militar do Estado com a maior
população do país — 44 milhões de habitantes — é também a maior força
do tipo: 100 mil homens. [sempre cabe ressaltar que nos Estados Unidos, país que concentra o maior número de armas em mãos da população civil, sendo livre a posse/porte e propriedade de armas, os mortos por armas de fogo, em 100.000 habitantes, é inferior a 5.
Sendo recorrente; já no Brasil, país em que só os policiais e os bandidos podem andar armados, os números na média atingem 50.]
A PM de
São Paulo tem problemas? Certamente! Volta e meia, sabe-se de um caso ou
outro. Mas é notório o esforço para punir os faltosos. E não há notícia
de que tenha saído do controle. Notem: se um 1% dos indivíduos que a
compõem fizessem besteira e transgredissem as leis, teríamos mil PMs
barbarizando por aí, e certamente os casos inundariam a imprensa. Mas,
felizmente, o número de faltosos é muito menor do que isso. Quando se
compara a taxa de homicídios de São Paulo com a de países europeus, é
justo considerar que ela ainda é alta. Mas o Estado que deveria
enfrentar os maiores problemas em razão do tamanho e da diversidade de
sua população e de uma força policial bem mais numerosa — e, em tese,
mais propensa a abrigar comportamentos desviantes —, ora vejam, está em
último lugar no ranking do mal. Vale dizer: é aquele em que,
proporcionalmente, se mata menos.
Isso não
significa que todos os problemas estejam resolvidos. Mas se pode
concluir que, se as questões sociais fazem diferença quando se trata de
avaliar as causas da violência, elas não são, no entanto, definidoras.
Ou por outra: certamente, São Paulo e o resto do Brasil se
beneficiariam, também na segurança pública, de uma melhoria geral na
condição de vida dos brasileiros. Mas o que faz com que se mate menos em
São Paulo são as escolhas na política de segurança pública. Procura-se
ignorar, por exemplo, uma evidência: é o Estado que mais prende no país.
Conta com 22% da população, mas abriga 40% dos detidos. Brasil
afora, há presos que já poderiam estar soltos, também em São Paulo. Mas
se pode afirmar sem medo de errar que é o Estado que mais prende os que
devem estar presos. E, no caso, tem-se uma evidência: bandido preso não
está na rua, matando inocentes ou adversários, pouco importa.
Finalmente,
note-se que a região Nordeste, por exemplo, passou por uma fase de
crescimento econômico na primeira década dos anos 2000 superior à do
resto do país. E isso significa melhora objetiva do padrão de vida. Não
obstante, no período, a violência cresceu exponencialmente. Assim, como
síntese, fiquemos com o seguinte: crescimento econômico, elevação do
padrão de vida dos pobres, melhoria nas condições de moradia, saúde e
educação, bem, tudo isso concorre para um padrão mais civilizado de
convivência e pode, sim, contribuir para diminuir a violência. Mas esse
benefício se perde, e esses fatores podem até acirrar a violência,
quando se tem uma política de segurança pública desastrada, como foi a
do Rio nos anos Sérgio Cabral, sob o aplauso cúmplice da quase
unanimidade da imprensa, que se encantava com o fato de que as UPPs se
instalavam sem confronto com os bandidos, mas também sem prender
ninguém.
Vale dizer: o que se tinha, na prática, era um pacto de paz com os bandidos. E bandido não costuma cumprir palavra, certo?
Blog do Reinaldo Azevedo