Não se deve cobrar imparcialidade a uma cineasta. Imparcial seria o juiz Moro. Era?
O ministro da Justiça não cabe no papel do juiz exibido em documentário
No mesmo dia (19/6) em que o ministro Sergio Moro atravessava sua maratona de nove horas no Senado, estreava na Netflix o filme “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa. A cineasta de 35 anos acompanhou as multidões que foram para a rua a partir de 2013, o impedimento de Dilma Rousseff em 2016, a prisão de Lula em abril de 2018 e a eleição de Jair Bolsonaro em outubro. Filmou o ex-presidente arrumando a mala a caminho da carceragem de Curitiba e a cena em que mediram sua pressão arterial (146x90).
Ao longo de todo o filme, o juiz Sergio Moro e a Operação Lava Jato aparecem como o que foram, um instrumento eficaz de combate à corrupção. No dia de sua estreia, outro Moro, ministro de Bolsonaro, respondia aos senadores que o acusavam de ajeitar a bola com a mão em conversas impróprias com o Ministério Público. Entre o que aconteceu e o que está acontecendo, fechou-se um círculo. Ou quase, porque Petra Costa expõe momentos de corrupção explícita que foram varridos para baixo do tapete da política nacional depois do impedimento de Dilma. Além disso, não se sabe onde está o Queiroz.
Há no filme, narrado por Petra, um tom de lamento da vertigem em que entrou o processo político nacional. A proximidade da câmera com o comissariado petista mostra sua onipotência, a autossuficiência doutoral de Dilma Rousseff e o messianismo de Lula. Numa cena do comício que antecedeu sua ida para a prisão, do alto de um caminhão, ele disse: “Os poderosos podem matar uma, duas, ou cem rosas, mas jamais conseguirão deter a chegada da primavera”. Talvez ele acreditasse que elegeria um novo poste.
Da eleição, com 57,8 milhões de votos, resultou Jair Bolsonaro, o capitão primaveril daqueles que aplaudiam a condenação de Lula. Tinha razão Nelson Cavaquinho: “Tira o seu sorriso do caminho (...)/ Eu na sua vida já fui uma flor/ Hoje sou espinho em seu amor”. Depondo no Senado, Sergio Moro evitou discutir o conteúdo de suas conversas com o procurador Deltan Dallagnol, fortificando-se na denúncia da forma ilegal como elas foram coletadas pelo site The Intercept Brasil. Esse novo personagem não cabe no roteiro da vertigem mostrada por Petra Costa. Faz parte de outra história, na qual flores e espinhos crescem juntos.
Petra Costa é cineasta, e Moro era juiz. O documentário tem um explícito viés simpático a Lula, mas não se deve cobrar imparcialidade a uma cineasta. Imparcial seria o juiz Moro. Era?
GLENN GREENWALD ABUSA DO CONTA-GOTAS
Num ponto o ministro Sergio Moro tem alguma razão: o site The Intercept Brasil deveria divulgar todo o acervo de grampos que amealhou. A divulgação parcial e seletiva, acompanhada por insinuações ameaçadoras do repórter Glenn Greenwald, é um feitiço que pode se virar contra o feiticeiro.
Antes da internet era comum que revelações jornalísticas fossem expostas em séries, mas Greenwald vem fazendo bem outra coisa. Promete isso ou aquilo, às vezes em tom de vaga ameaça. A divulgação de denúncias num regime de conta-gotas foi uma das piores táticas dos procuradores da Lava Jato. Em 1971, quando o New York Times e o Washington Post publicaram os documentos do Pentágono, submeteram seus critérios editoriais ao juízo do público. Conhecido todo o papelório, viu-se que trabalharam direito.
Mesmo assim, William Buckley Jr., um brilhante jornalista conservador, fez uma das suas. Enquanto o país vivia o choque dos documentos do Times, ele publicou 14 páginas com telegramas e memorandos, chamando-os de “os documentos secretos que eles não publicam”. Num, o chefe do Estado-maior conjunto propunha “o lançamento de uma bomba atômica para efeito de demonstração” contra o Vietnã do Norte.
Tanto o Times como o Post noticiaram as revelações de Buckley. Dean Rusk, o secretário de Estado à época da sugestão, informou: “Não posso dizer que não escrevi isso. É possível que tenha escrito”. Três outros signatários de papéis foram pelo mesmo caminho. Era tudo invenção de Buckley. Ele usou o truque para mostrar que “documentos forjados serão aceitos como genuínos desde que seu conteúdo seja plausível”.
Hoje se sabe que os hierarcas não desmentiram porque os papéis de Buckley podiam ser falsos, mas a ideia de jogar uma bomba atômica no Vietnã do Norte era verdadeira. Ela passou pela cabeça do governo americano em 1954, para ajudar os franceses, e em 1968, para responder a uma ofensiva dos comunistas.