O Estado de S.Paulo
Bolsonaro quer isolamento só acima dos 50 e Mandetta lista 19 condicionantes para saída
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde)
não se suportam mais, mas não têm alternativa: Bolsonaro não pode
demitir Mandetta e Mandetta não pode se demitir. Estão atrelados um ao
outro pelo coronavírus. Unidos na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença. E se detestando.
Entre os dois, há um muro: o isolamento social, única vacina possível
para reduzir a audácia e a letalidade do vírus. Mandetta não pode cruzar
esse muro, porque sua ação é “técnica e científica” e porque médicos
“não abandonam o paciente”. Seu paciente é o Brasil. E Bolsonaro não
pode dar uma canetada e criar o tal “isolamento vertical”, que, de
isolamento, não tem nada. Não tem apoio para isso.
Cada lado prepara seu arsenal sob sigilo. Bolsonaro, que já falou duas
vezes em editar um decreto e nunca editou, trabalha com um corte etário
para relaxar o isolamento. O grupo de (maior) risco é acima dos 60 anos,
mas ele estuda dar dez anos de lambuja. Abaixo dos 50, volta ao
trabalho! Cola? Até agora não, tanto que a ideia está entre as quatro
paredes do gabinete presidencial.
Já Mandetta propõe nos bastidores um desmame gradual do isolamento,
listando 19 condicionantes técnicas a serem consideradas uma a uma,
dependendo do cenário. A cada recuo da doença, um grau de relaxamento.
Entretanto, o começo da implementação pode demorar 30 dias e o próprio
ministro perguntou para sua equipe: “Ele vai ter paciência?” Quem será
“ele”? Enquanto os dois se digladiam, as instituições assumem um lado e
isolam Bolsonaro. Ministros do Supremo fazem fila e parlamentares se
revezam para advertir o Planalto e apoiar o isolamento social. Até o
vice Hamilton Mourão e o ministro Sérgio Moro (este sempre tão reverente
à hierarquia) defendem publicamente a medida que o presidente rechaça.
Isolado institucionalmente e sofrendo restrições no próprio governo,
Bolsonaro afasta aliados simbólicos, como os governadores Ronaldo Caiado
(Goiás) e Carlos Moisés (Santa Catarina) e o ator Carlos Vereza, que
foi cotado para a Secretaria de Cultura. Cada um deles corresponde a
quantos decepcionados com os “achismos” do presidente? A maior perda, aliás, vem das pesquisas. Metade das pessoas acha que
Bolsonaro atrapalha mais do que ajuda no combate à pandemia e o que dói
mesmo e abala o amor próprio do presidente é o aplauso vibrante da
população ao seu “inimigo” Mandetta. Em vez de comemorar o grande trunfo
do seu governo, Bolsonaro sofre. Só a psicologia, a psicanálise ou a
psiquiatria para explicar. [para Bolsonaro candidato à reeleição em 2022, e qualquer pessoa sensata com a mesma pretensão, qual valor tem pesquisa realizada no inicio de 2020, por telefone e sob condições catastróficas? ]
Se Bolsonaro não pode demitir Mandetta “no meio da guerra”, Mandetta não
pode se demitir. Desmontaria o Ministério da Saúde e jogaria o País num
caos ainda maior. Uma irresponsabilidade histórica. Assim, o ministro
avisou ao presidente que está pronto para ser o “bode expiatório” se
tudo der errado e que fica até ser demitido. Na mesma conversa, Mandetta fez enfática defesa do isolamento e alertou
para as consequências do relaxamento: “Estamos preparados para caminhões
do Exército transportando corpos pelas ruas, ao vivo, pela internet?”
No dia seguinte, recorreu a Drummond: “No meio do caminho uma pedra, uma
pedra no meio do caminho”.
Todos sabem quem é a “pedra” e o ministro passou a ser apedrejado na
internet. Os mesmos que divulgam um falso desabastecimento no Ceasa-MG
(burramente, porque é contra o próprio governo) inundam as redes
desqualificando Mandetta, governadores e parlamentares pró-isolamento.
Como isso ajuda Bolsonaro, não se sabe. Mas é ótimo para o coronavírus, a
contaminação e as mortes. Mais do que irresponsável, macabro.
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo