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domingo, 20 de agosto de 2023

Se os telefones deles falarem - O Globo

Muitos telefones apreendidos estão sobre a mesa da Polícia Federal sendo periciados. São os quatro aparelhos do advogado Frederick Wassef, o de Mauro Cid e os do pai dele e do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Isso estatisticamente aumenta a chance de se encontrar informações relevantes. Há ainda o sigilo fiscal e bancário de Jair e Michelle Bolsonaro, quebrados pelo ministro Alexandre de Moraes. A CPMI pediu ao Coaf os RIFs, relatórios de investigação financeira, do casal. 
Tudo isso manterá viva a investigação sobre o que aconteceu no Brasil naquele tempo estranho em que o presidente mandava vender joias e presentes do governo e liderava a trama por um golpe de Estado. 
O dia 8 de janeiro não terminará tão cedo e a prisão de Jair Bolsonaro é uma possibilidade cada vez mais concreta.

Os militares estão em aparente silêncio. Dentro dos quartéis, a conversa é intensa. O general Tomás Ribeiro Paiva, comandante do Exército, segundo as apurações que eu fiz, tem até agora se mantido firme na convicção de que quem cometeu os crimes que responda por eles. “Tomás impede qualquer reação”, me disse uma autoridade. Muitos oficiais estavam, até recentemente, reclamando muito do “método da investigação”, dizendo que as Forças Armadas estavam sendo muito expostas. Na realidade, elas foram expostas pelos líderes que se envolveram no complô contra a democracia.

Um general que protestava pelo peso que recaiu sobre o tenente-coronel Mauro Cid ouviu de uma autoridade civil que fizesse as contas de quantos anos de prisão o ex-ajudante de ordens pode ter que enfrentar. “Formação de quadrilha, peculato, evasão de divisas, lavagem de dinheiro. Isso dá pelo menos 15 anos”, disse o interlocutor do general. O tenente-coronel preso trocou de advogado e ensaiou uma defesa sob o argumento de que seu cliente cumprira ordens. Pelo artigo 22 do Código Penal, há “excludente de culpabilidade” a quem age por “coação irresistível ou obediência hierárquica”. Uma fonte que acompanha o caso me disse: “essa é única linha de defesa dele”. O advogado Cezar Bitencourt disse que ele confessaria e depois se desdisse, num comportamento estranho.

Uma autoridade, que há duas semanas descartava a possibilidade de prisão de Jair Bolsonaro, depois do depoimento do hacker Walter Delgatti Neto na CPMI dos atos golpistas, disse que agora a considera “plausível”. Se houver qualquer sinal de que ele usa a sua influência para interferir nas muitas investigações em andamento, Bolsonaro irá para a cadeia.

O problema brasileiro, contudo, é mais grave. Como fazer para descontaminar os militares e as forças de segurança do país, das ideias golpistas? A se confirmar o que disse Delgatti sobre as suas cinco idas ao Ministério da Defesa, a situação fica muito mais grave. O grupo das Forças Armadas que participava da Comissão de Transparência do TSE foi um fator de perturbação das eleições, sempre querendo desacreditar as urnas eletrônicas. Mas o que o hacker relatou foi uma tentativa de sabotar a urna. O crime sobe muito de patamar.

Os diálogos entre os coronéis e majores da Polícia Militar do Distrito Federal, presos na sexta-feira, são estarrecedores, mesmo para quem nunca duvidou que eles participaram da conspiração. Tudo é dito descaradamente, como no diálogo do major Flávio de Alencar com o coronel Marcelo Casimiro. “Se eu estiver amanhã no comando da… manifestação, como estarei, não vou permitir a atuação da Força Nacional na nossa Esplanada, viu? Não vou autorizar.” E, apesar desse aviso prévio de sublevação e impedimento da atuação das forças do Estado, foi mantido no comando pelo coronel Casimiro. 

[de toda a matéria, narrativa, ou digamos, 'expressão do que a autora deseja que ocorra' algo do tipo, 'criação mental', em outras palavras,  ela deseja, escreve - substituindo o verbalizar mais usado - e os seus desejos acontecem.
A inexistência de provas para os 'donos dos desejos' é algo insignificante, afinal os que querem a prisão do ex-presidente possuem o depoimento de um hacker, um criminoso, a cujos depoimentos parte da imprensa considera mais merecedores, mais verdadeiros, do que pronunciamentos de Sua Santidade, o Papa,  quando feitos 'ex-cathedra'.]

Bolsonaro trabalhou durante todo o seu mandato contra a ordem constitucional. Ele alimentou uma explosão como a que houve em 8 de janeiro. Foi a cada festividade militar ou policial, difundiu a ideia de que os fardados eram superiores, espalhou mentira sobre as urnas, atacou pessoas que representavam os poderes constituídos, estimulou a desordem, cooptou para o seu propósito subversivo quadros de comando e da alta hierarquia das Forças Armadas, da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal. Essa contaminação só agora começa a ser dimensionada. Os próximos dias e semanas continuarão intensos no Brasil. Para a democracia se proteger, é preciso conhecer todos os fatos e punir todos os culpados.

(Com Ana Carolina Diniz)

Blog Miriam Leitão, jornalista - Coluna em O Globo

 

 

domingo, 24 de julho de 2022

Lei de Cotas nas universidades tem de ser renovada - Editorial - O Globo

Opinião/Editorial

Em agosto, dez anos depois de aprovada, expira a lei que estabeleceu cotas para ingresso nas universidades e institutos federais, reservando 50% das vagas a alunos de escolas públicas (metade delas aos de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo per capita). 
Ela instaurou ainda outro filtro: pretos, pardos, indígenas e deficientes passaram a ter, entre esses cotistas, uma fatia proporcional à participação na população. Antes de 2012, já havia políticas de ação afirmativa em diversos formatos. Ao disseminar a prática no país, a Lei de Cotas foi um marco. Agora, será missão do Congresso avaliar seus resultados — e já tramita um projeto que posterga a expiração da lei. [COMENTÁRIO: fazemos questão de iniciar o presente comentário registrando, declarando, QUE NÃO SOMOS RACISTAS, o Blog Prontidão Total não é racista e que nossa posição contrária ao sistema de cotas, não apenas as raciais mas contra qualquer tipo de cotas,  com raras exceções, é por ser nosso entendimento que o MÉRITO, a MERITOCRACIA, deve prevalecer, ressalvando situações excepcionais.
Além da necessidade e justiça da utilização do MÉRITO como regra geral, o 'caput' do artigo 5º da Carta Magna, em plena vigência,  transcrito no inicio do Post,  determina que todos são iguais perante a lei e proíbe distinção de qualquer natureza.
Em nosso entendimento, como é possível que no Brasil, que vive sob o 'estado democrático de direito', condição que é sempre lembrada por várias autoridades, algumas até adotando medidas antidemocráticas e inconstitucionais para preservar a Constituição, seja possível a existência de leis que contrariam a Constituição - no presente caso, o dispositivo constitucional citado? 
Felizmente a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de  2012 - Lei que afronta o disposto no 'caput' do artigo 5º, da Constituição Federal, porém, em plena vigência  - oferece em seu artigo 7, oportunidade para revisão de cotas para o ensino superior, que na revisão seja abolido todo e qualquer sistema de cotas, que deverá ser feito com a  revogação da lei citada e de todas as leis que concedam cotas. 
O MÉRITO tem que prevalecer.
Em situações excepcionais pode ocorrer previsão de cotas para deficientes físicos, mediante Lei específica, cuja validade só se iniciará após a inclusão no texto constitucional de uma exceção para os deficientes físicos.]

O primeiro dever dos congressistas é verificar se ela cumpriu seu objetivo principal: ampliar o acesso de grupos sub-representados ao ensino superior. A discussão será naturalmente contaminada por paixões. As cotas foram um dos motivos por que a sociedade brasileira se tornou mais sensível à questão identitária. Na década anterior à lei, houve debate intenso, sobretudo em relação às cotas baseadas em critérios raciais. Havia dúvidas sobre sua eficácia como mecanismo de inclusão e sobre a reação que despertariam, ao tornar mais saliente a chaga do racismo e, indiretamente, retroalimentá-la.

Em que pesem as ressalvas, o debate de 20 anos atrás está superado. O racismo precisa ser combatido sempre, com vigor e energia. E a sociedade brasileira se convenceu da relevância das cotas como arma nessa luta. Diferentes pesquisas mostram que metade dos brasileiros apoia as cotas raciais nas universidades. Ainda que haja opositores, a maioria fez sua escolha por meio de instituições legítimas. Cotas raciais foram aprovadas no Congresso e referendadas em votação unânime no Supremo Tribunal Federal (STF). Tornaram-se primordiais para trazer às melhores universidades quem não é da elite e para enfrentar a desigualdade com a arma mais eficaz: acesso à educação.[será que é  justo QUE pessoas não escolhidas pelo critério do MÉRITO, ocupem vagas que deveriam ser concedidas às que provarem merecimento por MÉRITO?
O aumento de cotistas nas escolas superiores é normal - afinal não é preciso merecer, ter mérito, para tomar uma vaga de alguém que estudou, praticou o popular 'ralou' para passar em um vestibular, logrando classificação que sem as cotas tornaria possível ser permitira ser devida e merecidamente recompensado pelo seu esforço.]

São fartas as evidências de que elas atingiram a meta principal. Os egressos de escolas públicas nas instituições contempladas foram de 55% em 2012 a 63% quatro anos depois. Pretos, pardos e indígenas, de 27% a 38%. A diversidade maior entre o 1,1 milhão de graduandos nas universidades públicas é visível a quem anda por qualquer campus. “Os programas de ação afirmativa transformaram as universidades e tiveram impacto profundo na vida de muitos cotistas”, afirma a economista Fernanda Estevan, da Fundação Getulio Vargas.

Os cursos mais impactados foram os mais concorridos. Alunos de escolas públicas começaram a sonhar alto e a prestar vestibular para carreiras de prestígio. Uma pesquisa da Unicamp revelou aumento de 10% na escolha por medicina e por outros quatro cursos concorridos. Isso contribuiu para a mobilidade social, como demonstra estudo com alunos do Direito da Uerj. Entre os cotistas, 80% completaram o ensino superior, 70% passaram no exame da OAB e 30% foram trabalhar como advogados. Nas federais, houve impacto positivo também nos cursos em que oriundos de escolas públicas já eram mais da metade. O percentual cresceu, mostrando que havia demanda reprimida. Pesquisas também demonstraram o efeito específico das cotas raciais. “Sua adoção foi quase cinco vezes mais eficaz para o aumento nas matrículas de estudantes pretos, pardos e indígenas oriundos de escolas públicas que num cenário sem elas”, diz a economista Úrsula Mello, da Barcelona School of Economics.

Em duas áreas, os congressistas deveriam promover melhorias: acesso e retenção. Na primeira, será importante examinar a eficácia da regra que reserva vagas aos com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo. Esse valor põe o aluno na metade superior da pirâmide social (numa família de quatro, a renda pode chegar a R$ 7.272). Se o objetivo é abrir portas aos pobres, o crivo precisa ser mais rígido. Nas federais, a lei aumentou em apenas 2,4 pontos percentuais as matrículas de alunos com renda familiar de até um salário mínimo. Outra questão relevante está ligada às cotas raciais. A lei determina que os percentuais destinados a pretos, pardos e indígenas sejam definidos pela proporção de cada grupo no Censo. Como ele só ocorre de dez em dez anos, deveriam ser levados em conta levantamentos mais frequentes.

O maior desafio dos congressistas é melhorar a retenção. Parte considerável dos cotistas não termina o curso. Uma análise da USP revela desistência de 25% entre pretos, pardos e indígenas (entre não cotistas brancos, 17,6%). É possível que a realidade seja pior. Alunos ricos, quando saem da faculdade, costumam trocar de curso. Cotistas são obrigados a abandonar o sonho da graduação. “Atacar o problema da evasão requer pensar nas causas da desistência”, diz o economista Michael França, do Insper. Se a questão é financeira, é preciso ter um amplo programa de bolsas de estudos. Se o problema é acompanhar as disciplinas devido a deficiências no ensino médio público, o recomendável são programas de reforço. Medir de forma sistemática o desempenho acadêmico dos cotistas é chave para evitar o abandono.

Como as razões que levaram à criação da Lei de Cotas persistem no Brasil, ela deveria ser prorrogada, com tais melhorias, para ser reavaliada mais adiante. Na discussão sobre a nova lei, os parlamentares deveriam manter o foco nas questões objetivas e evitar a contaminação ideológica do tema. O país conta com pesquisadores sérios, dispostos a examinar cada ponto sem paixão. São esses que o Congresso deve ouvir para que o Brasil avance ainda mais no combate ao racismo e à desigualdade.[Defender o MÉRITO agora passou a ser contaminação ideológica?] 

Editorial - O Globo


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Vendas reagem com estímulos econômicos - Valor Econômico

Ribamar Oliveira 


Dados mostram recuperação em todas as regiões do país

As medidas de estímulo econômico adotadas pelo governo conseguiram reverter a forte queda das vendas ocorrida em abril. Em maio, a média diária de vendas voltou a crescer e chegou a R$ 21,1 bilhões, resultado 11,1% superior ao de abril, em termos reais, de acordo com as notas fiscais eletrônicas registradas no Sistema Público de Escrituração Digital (Sped). “Houve uma recuperação importante no mês passado”, disse o secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, em conversa com o Valor. Segundo ele, os dados iniciais deste mês indicam que “o fundo do poço ficou em abril”. Tostes acredita que as vendas estão em recuperação, pois “a tendência é continuar essa trajetória”.

Ele observou que alguns Estados adotaram protocolos de abertura controlada de alguns setores do comércio e que isso vai impulsionar as vendas em junho, pois “o varejo terá que ser abastecido”. Tostes citou também dados divulgados recentemente pela Fenabrave (Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores), que apontam para uma alta de 11,6% nas vendas de veículos em maio, em relação a abril, embora em comparação com o mesmo mês do ano passado a queda ainda seja muito elevada, de 71,98%.

As notas fiscais eletrônicas (NFe) registram as operações de compra e venda entre as empresas e das empresas com os consumidores finais. Elas não incluem, no entanto, as vendas no varejo. O movimento agregado das notas capta, principalmente, as vendas entre empresas de médio e grande porte, bem como as vendas não presenciais de empresas para pessoas físicas - o chamado comércio eletrônico. Embora cresçam em relação a abril, mesmo assim as vendas em maio apresentaram uma queda de 15,2%, em termos reais (descontada a inflação) na comparação com o mesmo mês do ano passado. Em abril, quando se intensificou o isolamento social para controlar a contaminação da população pelo novo coronavírus, a queda real foi de 17,8% na comparação com março.

Em relação a abril de 2019, a redução real do volume de vendas foi de 14,9%. O que as notas fiscais eletrônicas estão indicando é que, no mês passado, houve um ponto de inflexão da curva, que voltou a ser ascendente. Essa tendência terá que ser confirmada pelos dados deste mês. O gráfico da Receita Federal sobre as vendas semanais (soma das vendas diárias na semana) mostra uma recuperação gradual nas últimas semanas do mês passado. Por esse indicador, o ponto mais baixo ocorreu em meados de abril. “A terceira semana de abril foi o valor mais baixo do ano”, explicou Tostes. A partir daí, inicia-se um aumento gradual, com o pico sendo atingido na última semana de maio. “Em maio, já voltamos ao patamar de março”, disse.

O comércio eletrônico viveu uma situação peculiar. Em vez de cair durante a pandemia, cresceu. E muito. Em março ele aumentou 20,4%, em termos reais, na comparação com o mesmo mês de 2019. 
Quando tudo estava despencando em abril, as vendas eletrônicas subiram 17,2% na comparação com o mesmo mês do ano passado. Em maio, o crescimento dessas vendas ainda foi mais explosivo: 40,7%. “Não houve crise nesta modalidade de comércio”, constatou o secretário.
Ele observou ainda que, em maio, todas as regiões do Brasil mostraram recuperação no ritmo de vendas. “As quantidades de notas emitidas, que vinham em declínio em abril, em maio inverteram a tendência e subiram, em todas as regiões”, observou.

Após as medidas de contenção e quarentena adotadas em todo o Brasil, todas as regiões apresentaram queda do volume diário de vendas em abril, na comparação com março. A menor redução foi da região Sul (12,0%) e a maior foi da região Sudeste (22,6%). Em maio, na comparação com abril, todas as regiões apresentaram crescimento de vendas.  É difícil sustentar que as notas fiscais eletrônicas em maio, por si só, já mostrem uma recuperação robusta e sustentável da economia. Elas parecem indicar que as vendas reagiram favoravelmente aos estímulos do governo. O consumo foi alavancado pelo auxílio emergencial de R$ 600 concedido aos trabalhadores informais e todos os aposentados tiveram antecipação de seu décimo terceiro salário, para citar apenas duas medidas adotadas.

Mas os estímulos serão suficientes para garantir uma retomada consistente? O governo está comemorando, principalmente, o fato de que a crise não se aprofundou em maio, como alguns acreditavam que iria acontecer. Houve, na verdade, uma recuperação, que pode ser um alento para o futuro.  Tudo dependerá, e não podia ser diferente, do êxito da abertura da economia. Alguns especialistas consideram que a abertura do comércio e da indústria em algumas regiões do país está sendo feita de forma precipitada, pois a epidemia ainda não teria atingido o seu pico. Se ocorrer um novo surto de contaminação pelo coronavírus, o país poderá voltar a uma nova etapa de distanciamento social e a recuperação que se inicia poderá ser abortada.

Ribamar Oliveira, assessor de imprensa e ganhador prêmio Esso - Valor Econômico 



domingo, 5 de abril de 2020

Pedra e pedradas - Eliane Cantanhêde

O Estado de S.Paulo

Bolsonaro quer isolamento só acima dos 50 e Mandetta lista 19 condicionantes para saída

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde) não se suportam mais, mas não têm alternativa: Bolsonaro não pode demitir Mandetta e Mandetta não pode se demitir. Estão atrelados um ao outro pelo coronavírus. Unidos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E se detestando.

Entre os dois, há um muro: o isolamento social, única vacina possível para reduzir a audácia e a letalidade do vírus. Mandetta não pode cruzar esse muro, porque sua ação é “técnica e científica” e porque médicos “não abandonam o paciente”. Seu paciente é o Brasil. E Bolsonaro não pode dar uma canetada e criar o tal “isolamento vertical”, que, de isolamento, não tem nada. Não tem apoio para isso.

Cada lado prepara seu arsenal sob sigilo. Bolsonaro, que já falou duas vezes em editar um decreto e nunca editou, trabalha com um corte etário para relaxar o isolamento. O grupo de (maior) risco é acima dos 60 anos, mas ele estuda dar dez anos de lambuja. Abaixo dos 50, volta ao trabalho! Cola? Até agora não, tanto que a ideia está entre as quatro paredes do gabinete presidencial.

Já Mandetta propõe nos bastidores um desmame gradual do isolamento, listando 19 condicionantes técnicas a serem consideradas uma a uma, dependendo do cenário. A cada recuo da doença, um grau de relaxamento. Entretanto, o começo da implementação pode demorar 30 dias e o próprio ministro perguntou para sua equipe: “Ele vai ter paciência?” Quem será “ele”? Enquanto os dois se digladiam, as instituições assumem um lado e isolam Bolsonaro. Ministros do Supremo fazem fila e parlamentares se revezam para advertir o Planalto e apoiar o isolamento social. Até o vice Hamilton Mourão e o ministro Sérgio Moro (este sempre tão reverente à hierarquia) defendem publicamente a medida que o presidente rechaça.


Isolado institucionalmente e sofrendo restrições no próprio governo, Bolsonaro afasta aliados simbólicos, como os governadores Ronaldo Caiado (Goiás) e Carlos Moisés (Santa Catarina) e o ator Carlos Vereza, que foi cotado para a Secretaria de Cultura. Cada um deles corresponde a quantos decepcionados com os “achismos” do presidente? A maior perda, aliás, vem das pesquisas. Metade das pessoas acha que Bolsonaro atrapalha mais do que ajuda no combate à pandemia e o que dói mesmo e abala o amor próprio do presidente é o aplauso vibrante da população ao seu “inimigo” Mandetta. Em vez de comemorar o grande trunfo do seu governo, Bolsonaro sofre. Só a psicologia, a psicanálise ou a psiquiatria para explicar. [para Bolsonaro candidato à reeleição em 2022, e qualquer pessoa sensata com a mesma pretensão, qual  valor tem   pesquisa  realizada no inicio de 2020, por telefone e sob condições catastróficas? ]  

Se Bolsonaro não pode demitir Mandetta “no meio da guerra”, Mandetta não pode se demitir. Desmontaria o Ministério da Saúde e jogaria o País num caos ainda maior. Uma irresponsabilidade histórica. Assim, o ministro avisou ao presidente que está pronto para ser o “bode expiatório” se tudo der errado e que fica até ser demitido.  Na mesma conversa, Mandetta fez enfática defesa do isolamento e alertou para as consequências do relaxamento: “Estamos preparados para caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas, ao vivo, pela internet?” No dia seguinte, recorreu a Drummond: “No meio do caminho uma pedra, uma pedra no meio do caminho”.

Todos sabem quem é a “pedra” e o ministro passou a ser apedrejado na internet. Os mesmos que divulgam um falso desabastecimento no Ceasa-MG (burramente, porque é contra o próprio governo) inundam as redes desqualificando Mandetta, governadores e parlamentares pró-isolamento. Como isso ajuda Bolsonaro, não se sabe. Mas é ótimo para o coronavírus, a contaminação e as mortes. Mais do que irresponsável, macabro. 

Eliane Cantanhêde,  jornalista - O Estado de S. Paulo


domingo, 22 de março de 2020

AS PERNAS E AS ASAS DO VÍRUS - Percival Puggina

Nesta pequena cápsula que é meu gabinete de trabalho, onde quase tudo está ao alcance da mão, tenho me lembrado de Howard Hughes. Nos anos 60, encantava-me a pluralidade de seus talentos. Engenheiro, aviador, industrialista, diretor de cinema, riquíssimo, namorava as mais belas divas de Hollywood e afastou-se de tudo e de todas, internando-se em sua própria casa num misto de misantropia, fobia de contaminação e drogadição.

Encarcerou-se com grades que seus fantasmas impunham. Renunciou à liberdade que, por décadas, lhe proporcionou uma vida criativa e, sob muitos aspectos, extraordinária.  Diferentemente, nestes dias, eu e minha mulher, a exemplo de tantos em todo o mundo, nos tornamos prisioneiros. Não de fobias, mas de invisíveis ameaças reais e letais. Renunciamos à liberdade um dia antes de essa renúncia nos ser imposta pelas autoridades locais e nacionais. Ficou entendido, para nós, o sentido social, apropriadamente social, do esvaziamento das ruas. Quem não consegue entender o significado do bem comum, tem, agora, uma boa oportunidade de esclarecimento mediante o desenho dos fatos.
É preciso tirar as pernas do vírus. Ele caminha com nossas pernas. Voa com nossas asas metálicas.

Está mudando muitas vidas e não apenas as rotinas dessas vidas a invulgar experiência de protagonizar um desses filmes cujo script cria suspense em torno da luta contra a exterminação da humanidade. Reza-se nas redes sociais (quem diria?), reza-se em família. Lê-se como raramente sobra tempo para ler. E se tem uma erupção de sentimentos profundamente humanos proporcionados pelo desencarceramento do tempo. Entre eles, de um lado, o medo, o egoísmo, a desesperança rumo ao desespero, a mudança emocional para o reino da fantasia; de outro, a solidariedade, a compaixão, a esperança, a busca do transcendente e a necessidade de atribuir sentido a esse novo cotidiano.

Em Viena, no centro da Graben, um monumento domina a paisagem. É a Pestsäule, coluna comemorativa do fim da peste que atacou a cidade no final do século XVII. Obra coletiva de diversos escultores e pintores, o monumento barroco resulta confuso pela pluralidade de mensagens a ver, sentir e interpretar. Mas é essa característica que impõe, a quem o contempla, prolongada análise de seus elementos. Vê-se ali a celebração artística do fim do flagelo, o ódio à peste e o gratificado louvor à Santíssima Trindade. Nunca pensei que, um dia, aquele monumento fosse ganhar atualidade e se fazer ensinamento na nossa vida.

Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


Colapso - Eliane Cantanhêde

O Estado de S.Paulo

Mortes, contaminação, calamidade, colapso, recessão. Não é ‘gripezinha’

Os mortos pelo novo coronavírus já passam de 11.500 no mundo. Chegaram até ontem a 18 no Brasil, 220 nos Estados Unidos, em torno de 500 na França, 1000 na Espanha, 1.400 no Irã e 4000 mil na Itália, além de mais de 3100 na China. O número de contaminados nem dá mais para contar. E muitos deles vão morrer.

Em sã consciência, é impossível chamar tudo isso de “gripezinha” e defender realização de cultos religiosos, como fez o presidente da República Federativa do Brasil, depois de ter reduzido tudo a uma “fantasia”, criticar a “histeria”, estimular manifestações (aliás, contra o Congresso e o Supremo [sic] ) e tocar mãos e celulares de centenas de pessoas mesmo ainda sujeito a novos testes para o vírus. Como não criticar esses absurdos?

Quanto mais a doença se abate sobre a humanidade, mais os cidadãos buscam o melhor de si para reforçar a empatia, a solidariedade, o patriotismo, a resistência. Arrasada, a Itália nos brinda com exemplos comoventes de artistas cantando óperas e distribuindo gentileza e esperança pelas janelas e varandas. O Brasil segue o exemplo e faz panelaços em agradecimento ao bravo pessoal da saúde.

[Constatação irrefutável: 
não importa a classificação que Trump, Boris Johnson, Viktor Orban  e outros líderes mundiais apliquem ao novo coronavírus e a doença que causa, Covid-19.
O que importa é o que fazem no combate a mesma.

Bolsonaro, ao estilo de político - o estilo comício, palanque  comportamento que,  se pronunciasse o presidente via porta-voz, seria deixado de lado, alterna os mais diversos estilos nas menções  à praga.
Ora chama de 'gripezinha', o que não importa. Casa classificasse de pneumonia dupla, peste, seja qual for o termo que use, NÃO IMPORTA.
O QUE IMPORTA é que ele adote todas as medidas necessárias para combater a peste que surgiu na China - não estamos dizendo criada pelo País asiático. E isto ele tem feito.

Vamos deixar a ideologia de lado e considerar que ainda no Brasil, alguém que seja capaz de relaxar nos cuidados de prevenção, alegando que o presidente disse ser uma 'gripezinha', tal pessoa tem que ser não colocada sob isolamento e sim confinada por problemas mentais.

A democrática Itália demorou na adoção de medidas enérgicas e está tendo dificuldades de conter a pandemia em seu território, a autoritária China foi lenta no principio - lentidão talvez consequência do desconhecimento de como combater a nova peste - mas, conseguiu recuperar o tempo perdido, estando há 3 dias seguidos sem novos casos, descontando os importados.

Todas as medidas possíveis estão sendo adotadas pelo Brasil no combate a peste maligna, (felizmente o presidente Bolsonaro soube conter os arroubos separatistas, e inconstitucionais, do Witzel) vamos esquecer as denominações da peste,  confiar em DEUS e venceremos.]
Não vamos estragar isso, presidente. Só o uso de máscaras inúteis não resolve nada nem do ponto de vista simbólico nem do epidemiológico. O ministro Henrique Mandetta prevê “colapso na Saúde” logo ali, em abril, enquanto o governo anuncia transmissão comunitária em todo o País e Câmara e Senado providenciam às pressas votações remotas e aprovam o estado de calamidade pública. O teto de gastos e a tão suada e fundamental Lei de Responsabilidade Fiscal foram devidamente jogados pela janela para abrir espaço ao principal: o combate ao coronavírus.

Nesse quadro de guerra, de responsabilidade, é preciso pensar antes de falar, ter cuidado com o outro, respeitar a dor das famílias dos mortos de hoje e de amanhã. E não custa lembrar que, neste momento, o presidente é uma ilha cercada de contaminados: os chefes do GSI, da Secom, da Segurança, da Ajudância de Ordens e do Cerimonial, que integram a incrível lista de 22 pessoas da comitiva presidencial que trouxeram o coronavírus dos Estados Unidos (e não da China...). Entre as vítimas mais sensíveis, está a economia. A previsão do governo para o crescimento de 2020 era de 2,4, caiu para 2,1% e já está em 0,02% que, tira daqui, põe dali, significa zero, nada, estagnação. E é considerada otimista. A FGV já trabalha com um tombaço de 4,4%. Recessão das brabas. [a previsão do custo global devido o coronavírus é superior aos US$ 3.000.000.000,00, de dólares, o que justifica, praticamente impõe, que o Brasil tenha crescimento zero ou próximo disso.
Felizmente, o Brasil não tem tecnologia para tanto, só isso impede que acusem o Brasil de ter criado o coronavírus - claro, criação ordenada por Bolsonaro.]

Levantamento feito pela Cielo, maior credenciadora de cartões do País, mostra que as vendas do varejo caíram 5,4% nos primeiros 19 dias de março em relação a fevereiro e essa queda vem piorando de semana a semana. O setor mais afetado é exatamente o de serviços, onde se encaixa o turismo: queda de nada mais nada menos que 25,5%. As pessoas, trancadas em casa, não viajam, não consomem. Lojas estão fechadas, não lucram. Empresas param, não produzem. Um ciclo maldito, cujo resultado final, em tese, é quebradeira, queda de empregos e renda. Dor.

Em meio a tudo isso, o Brasil segue os EUA e a Europa e começa a testar cloroquina em pacientes de Covid-19 em situação gravíssima, mas o presidente da Anvisa, médico e contra-almirante Antonio Barra Torres, faz um apelo dramático: “Não comprem cloroquina!”
Segundo ele, 1) os testes para o coronavírus ainda são muito preliminares; 
2) há risco sério de efeitos colaterais; 
3) o medicamento pode faltar (aliás, já está faltando) para os que realmente precisam: os que têm Lupus, malária, artrite e outras doenças reumáticas. É preciso ouvi-lo. Automedicação é uma praga. Numa pandemia, uma praga ainda mais perigosa. Como a irresponsabilidade e a displicência nos momentos graves.

[situação complicada a do capitão:
se segue ou deixa seguir a Europa e EUA, se deixa fazer pesquisas, vai pra o tronco;
se não segue ou não deixa seguir aquele Continente e os EUA, se impede pesquisas, tronco com ele.]

Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo





segunda-feira, 16 de março de 2020

Tempestade perfeita - O Estado de S.Paulo

Denis Lerrer Rosenfield 

Bolsonaro  planta ventos e fogueiras. [sic] Poderá levar o País a um beco sem saída.

Ambiente deveria ser de apaziguamento, não de enfrentamento, para ela não se consumar

O Brasil está entrando em estado de tempestade perfeita, numa confluência de fatores que tende a agravar uma situação que já se apresentava ruim. A economia não está decolando, o Banco Central e grandes bancos refazem suas previsões para este ano abaixo do que estava sendo estimado - isso antes da pandemia do coronavírus. O bolsonarismo continua impregnando as redes sociais com ataques aos adversários e, mais concretamente, às instituições, como a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal, tidos por inimigos.

A pandemia do coronavírus expõe uma desorientação do governo, com presidente e ministros se contradizendo entre si, cada um procurando sinalizar para uma orientação específica. No início foi a minimização do episódio, como se fosse uma mera “marolinha”. Todos se tornaram discípulos do ex-presidente Lula, com as consequências desastrosas já conhecidas desde aquele então. Depois o ministro da Saúde apontando para direções sensatas e preventivas sem que fique, porém, claro como o governo pretende enfrentar uma situação de crise, por falta de orçamento e outras medidas emergenciais. A imagem transmitida é de improvisação. Só palavras de apaziguamento não bastam. Não é um problema de psicologia pública, mas de saúde física da população, sobretudo doentes crônicos e idosos.

Capítulo à parte é o problema das reformas, que ressurge agora como um “remédio” para o coronavírus, sem que se saiba ao certo a relação direta entre eles, salvo no fator fiscal. A questão central é que o governo ou não sabe ou não quer negociar as reformas com o Legislativo, contentando-se em enviar projetos, sem diálogo, ou em falar deles sem os enviar, caso das reformas tributária e administrativa. O governo está transferindo sua responsabilidade, procurando suscitar a adesão da opinião pública, numa espécie de criminalização da classe política, como se todos fossem corruptos. [a classe política, especificamente senadores e deputados, está tão preocupada com as reformas que estão cogitando  recesso devido o coronavírus = isso mesmo trabalhando, quando o fazem, 3 dias por semana.]


Não adianta apresentar um conjunto de reformas já enviado e não apreciado sem a negociação correspondente. Executivo e Legislativo são ambos expressões da soberania popular, eleitos, e devem dialogar entre si sobre o que é melhor para o Brasil, goste-se ou não dessas articulações. Sem elas estaremos fora da democracia. Ninguém detém o monopólio do bem e da verdade. Não é porque um projeto foi enviado que ele deve ser aprovado. O Legislativo não é um carimbador do Executivo.

Tampouco é de valia não estabelecer nenhuma prioridade entre os projetos enviados. [quem envia o projeto tem a faculdade de escolher se decide sobre a prioridade ou deixa com o Legislativo - especialmente no caso do Presidente Bolsonaro, que se considerar determinado projeto urgente, estará condenando a ir para o final da fila. A regra do Legislativo com o presidente Bolsonaro é: se ele faz apanha, se não faz, apanha também.] Não são a mesma coisa um projeto que trate da carteirinha digital de estudantes ou que diminua os pontos da carteira de motorista e uma PEC, a dita Emergencial, que versa sobre o controle dos gastos públicos, com gatilhos que garantam, pela redução de salários e jornadas de trabalho, o teto dos gastos. Como muito bem assinalou o ex-ministro Delfim Netto, a aprovação desta última deveria ser a prioridade maior do governo, sendo um complemento da Lei do Teto, assegurando-a. Revogar essa lei seria a volta ao populismo de curto prazo e o estouro das finanças públicas. [Delfim Netto, apesar de nonagenário, não conseguiu aceitar que salário de servidor público não gera crise.
Ele quando ministro adotou medidas buscando tal redução e não obteve resultados.]

Quanto às reformas tributária e administrativa, estamos num mero jogo de palavras. Nem uma nem outra foi sequer enviada à Câmara dos Deputados ou ao Senado. Discute-se, do ponto de vista do governo, o inexistente. A dita reforma administrativa é uma ilustre desconhecida. Do que se está falando precisamente? A reforma tributária, para além da tentativa fracassada de reintrodução da CPMF, tampouco foi apresentada pelo governo. O Senado e a Câmara, individualmente, têm projetos próprios, diferentes um do outro, e agora se tenta harmonizá-los, sem que o governo, por sua vez, tenha feito proposta alguma.

A política presidencial do confronto tem tido o governo como sua própria vítima, prejudicando o Brasil. O caso do Benefício de Prestação Continuada, ao aumentar os benefícios dos idosos e deficientes, produzindo um rombo de R$ 20 bilhões, mostra o ponto a que chegamos. Primeiro, não deixa de ser risível que os velhinhos e deficientes sejam os responsáveis pelo mais novo rombo fiscal! Poderiam ter escolhido melhor outro responsável. Segundo, o Congresso procurou revidar os ataques que tem sofrido dos grupos bolsonaristas aprovando uma lei sem previsão orçamentária. Valeu o confronto entre os dois Poderes, tendo como pano de fundo uma questão de justiça social. Se o governo não confrontasse tanto o ambiente político, seria mais fácil equacionar os problemas graves do presente.

Por último, foi uma mostra de sensatez do presidente Bolsonaro ter desestimulado, na verdade, cancelado, as manifestações do dia 15. O motivo apresentando foi de saúde pública, relativo ao perigo de contaminação pelo coronavírus, embora a razão possa também ter sido outra, a do fracasso provável dessas manifestações, que atingiria o próprio prestígio dos bolsonaristas. Em todo caso, o ambiente deveria ser de apaziguamento, e não de enfrentamento, para que esta tempestade perfeita não se consume.

Denis Lerrer Rosenfield, filósofo - O  Estado de S. Paulo 



sexta-feira, 13 de março de 2020

Legislação contra coronavírus é eficiente - Merval Pereira

Lei prevê ações emergenciais - Legislação eficiente


Antecipando-se ao que viria, o governo mostrou capacidade de previsão. O preocupante é que nem o próprio presidente Bolsonaro, na sua fala de ontem em rede nacional, nem o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, se lembrem dessa lei, que foi aprovada em decisão rápida pelo Congresso. O presidente Bolsonaro, que apareceu de máscara junto ao ministro da Saúde em sua live, não se referiu aos poderes que o governo tem para enfrentar a emergência de saúde pública, e o ministro Moro, entrevistado na Central Globonews, respondeu de maneira genérica às questões de segurança pública relacionadas à sua pasta. [conduta acertada, visto que tudo que o presidente Bolsonaro ou qualquer um dos seus ministros, especialmente o ministro Sérgio Moro, falam ou mesmo pensam em falar é interpretado de forma que comprometa o presidente e/ou seu governo.]

Diversas decisões previstas na legislação dependem de aprovação dele e do ministro da Saúde.  A Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, prevê um amplo arsenal de medidas administrativas para a guerra contra a disseminação do novo vírus, afinadas aos padrões determinados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

 Prevê até mesmo “restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos”, exatamente o que o presidente dos Estados Unidos fez ao proibir temporariamente a chegada de aviões vindos da Europa. Para essa medida, será preciso a autorização também do ministério da Justiça.  

A lei prevê isolamento de pessoas já doentes ou contaminadas, a quarentena de gente com suspeita fundada de contaminação, exames, testes e vacinações compulsórios, como medidas de polícia administrativa, desde que determinadas ou autorizadas pelo Ministério da Saúde.

O conhecimento dessa nova legislação evitaria, por exemplo, que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, determinasse a internação compulsória para tratamento do novo coronavírus, medida já prevista, embora desaconselhada pelas autoridades, devido à escassa capacidade de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A Lei estabelece que as medidas somente poderão ser determinadas com base “em evidências científicas” e em análises sobre informações estratégicas em saúde, assim mesmo limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.

O constitucionalista Gustavo Binembojm, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que analisou a legislação, lembra milenar aforismo “salus populi suprema lex est” (“a saúde pública é a lei suprema”), que costuma ser invocado para justificar medidas excepcionais que precisam ser aplicadas pelo Estado em momentos de grave crise, para os quais o Direito não haja previsto as soluções adequadas.

Ele cita o jurista alemão Carl Schmitt, segundo quem as situações de “exceção” representam um problema insuperável à aspiração das democracias liberais de governar por meio do Estado de direito. Nas palavras de Schmitt, “soberano é aquele que decide na exceção.” Segundo essa análise, os sistemas jurídicos seriam incapazes de especificar tanto o conteúdo como o procedimento dos atos estatais suscetíveis de serem adotados em situações emergenciais, “pois um e outro poderiam ser facilmente descartados face à premência de ações imprevisíveis exigidas pelas circunstâncias excepcionais”.

Gustavo Binembojm acredita que essa legislação que define os parâmetros para a ação governamental diante da crise do novo coronavírus contraria o pessimismo de Carl Smith. Ele a considera “eficiente, equilibrada e oportuna”, a concretização, no âmbito da polícia administrativa sanitária, dos princípios “da adequação e da necessidade, diante da gravidade das restrições impostas à autonomia individual”. É preciso que as autoridades lembrem que já têm em mãos os instrumentos legais para uma ação emergencial.

Merval Pereira, jornalista - O Globo