Era esperado que as diversas alternativas na eleição se apresentassem
como a salvação da lavoura e apontassem nos adversários sérias ameaças à
segurança, ao bem-estar e ao progresso material e espiritual da
sociedade e dos indivíduos.
As disputas políticas sempre correram por aí mesmo, mas há uns quinze
anos isso exacerbou-se, também pelas frustrações decorrentes da crise de
2008-09 e pela “redessocialização” do debate político e dos mecanismos
tradicionais de formação da opinião pública.
Mas é preferível acender uma vela a amaldiçoar a escuridão, então talvez
valha a pena substituir o lamento pela busca de alguma ideia
construtiva, por mais que possa parecer, ou ser, platitude. Na era da
infantilização generalizada, até as platitudes podem cumprir um papel.
E as platitudes também servem de escudo em tempos de guerra política aberta.
A platitude que proponho desenvolver neste texto é meio óbvia: e se as
diversas forças políticas aceitassem que os adversários, ou inimigos,
continuarão morando por aqui, trabalhando, ganhando a vida, opinando,
candidatando-se, elegendo e sendo eleitos?
Volta e meia, os discursos trazem a necessidade de defender a democracia
e a liberdade. Para algumas narrativas, a Nova República e a
Constituição de 1988 são as grandes “referências democráticas”. [Constituição moldada pela esquerda, concedendo direitos e mais direitos sem a contrapartida de deveres e constitucionalizando coisas que poderiam ser resolvidas por uma simples Portaria; quanto a Nova República foi nela que se iniciou a maior roubalheira, já que ele foi instalada sem o Governo Militar.] Verdade
que a Carta, de tantos enxertos e amputações, acabou desfigurada e anda
meio agonizante.
Aliás, ninguém mais parece estar nem aí para o argumento singelo “mas a Constituição não diz o contrário?”.[conforme bem lembra o articulista, entre os que ignoram o singelo argumento estão os que tem o DEVER, conferido pela Constituição, de guardá-la.]
Principalmente os encarregados de zelar pelo cumprimento dela.
Mas o pilar central da Nova República é (era) outro. Foi-se
estabelecendo ao longo das duas décadas de resistência ao regime
militar, especialmente no declínio dele, um certo consenso a favor de
construir um sistema político em que todas as forças pudessem se
organizar pacificamente, disputar eleições e, caso vitoriosas, governar.
Era, e é, até uma obviedade. Há outros modelos disponíveis na
prateleira, mas se o consenso continua sendo construir uma democracia
constitucional pluralista não há como escapar da alternância no poder.
E, se numa democracia constitucional pluralista a alternância no poder é
apresentada como ameaça à democracia, tem-se um problema. Uma
contradição em termos.
A tentação costumeira é “dar um jeito” de bloquear o acesso de
determinados grupos políticos ao governo. Mas aí vem a complicação: se
uma parte, ainda mais se for uma parte grande, da sociedade está
“minorizada”, com o tempo a própria democracia constitucional perde
sentido.
Será saudável se este processo eleitoral desembocar num resultado aceito
por todos e se a oposição feita pelos perdedores voltar seu locus para
as mobilizações sociais, a opinião pública e o Parlamento, fazendo o
Judiciário retornar para dentro da lâmpada mágica, da caixinha de onde
saiu.
Mas não vai acontecer. Não se vê elemento ou vontade capaz de bloquear a
reação química desencadeada por aqui em 2013. Nada parece capaz de
frear a marcha da insensatez.
Alon Feuerwerker, jornalista e analista político
Publicado na revista Veja de 14 de setembro de 2022, edição nº 2.802