"Circo" virou xingamento. O que é uma injustiça. Comparada a um circo, até a CPI da Covid-19 fica menos abjeta.
Todo esse papo de que a CPI da Covid-19 é um circo me fez pensar nas muitas lonas coloridas que já frequentei na vida. Desde o grandioso Circo Orlando Orfei, com suas águas dançantes, até uns cirquinhos vagabundos que instalavam suas tendas cheias de furo em qualquer terreninho baldio do Bairro Alto.
Nutro, pois, uma relação de amor e ódio com o circo. Amor quando me lembro de algumas experiências magníficas que tive nos circos de antigamente, aqueles com leões, tigres, elefantes, belas trapezistas em trajes sumários e mágicos que realmente nos deixavam boquiabertos com seus truques. E ódio (arroubo retórico aqui; não passa de um incomodozinho) quando me lembro da última vez que estive num desses espetáculos.
Não vou me lembrar do nome do circo. Mas lembro que ele estava armado ali em frente ao estádio Pinheirão. Fazia frio, muito frio. E eu, pai responsável que sou, fui apresentar a meu filho aquele que já foi um dia “o maior espetáculo da Terra”. Apesar de o circo estar bem vazio, paguei caro por lugares privilegiados, bem perto do picadeiro. E lá estávamos eu e meu filho aplaudindo por obrigação quando surgiram no picadeiro os senadores, com seus narizes vermelhos, cabelos coloridos de YouTuber, roupas extravagantes de influencer de moda - e sapatões. Eu mantinha um constante semissoriso constrangido quando um dos senadores chamou meu filho para o picadeiro. Aí a coisa ficou "séria".
Digo, aí eu ri de verdade, porque não existe coisa mais gostosa do que saber que uma criança está vivendo uma experiência que se tornará memória. É, sou dos que ficam pensando essas coisas num circo. Mas então, para a surpresa de ninguém, vi um senador se aproximar e me chamar para o picadeiro. Fiz que não, mas as outras duas ou três famílias que lotavam as arquibancadas insistiram e lá fui eu passar vergonha. O que, aliás, adoro.
O problema (e daí vem o desconforto que nutro pelo circo contemporâneo) foi o que o senador me disse na saída do picadeiro. Despindo-se da fantasia e com um forte sotaque de hermano, ele teve a ousadia de reclamar do meu desempenho. “Se não quer participar, não venha ao circo”, disse, grosseiro, quase azizninamente ameaçador. Fiquei chateado por não ter à mão uma torta para jogar na cara dele.
Clássico do cancioneiro popular
Para as gerações mais novas, essas que usam gírias que já não compreendo, o circo é cringe. Assim como é cringe o tiozão aqui se perguntando se está usando “cringe” corretamente. Nem sempre foi assim. Há não muito tempo, o circo era um evento familiar digno de roupa de domingo. Quem nunca adorou a estranha sensação de ficar momentaneamente surdo depois do Globo da Morte não sabe o que perdeu.
Mais do que um espetáculo hoje tedioso para crianças que não veem valor algum nas piruetas dos trapezistas, “circo” virou xingamento, sinônimo de uma balbúrdia desorganizada, cafona, ruidosa e sem graça. Uma injustiça. A verdade é que tudo fica melhor e ganha cores quando associado ao circo. Até a CPI da Covid.
Para provar meu ponto, criei uma versão para um clássico do cancioneiro popular infantil imortalizado na voz de Maria da Graça Xuxa Meneghel e intitulado “O Circo”, incluído no igualmente icônico álbum Xegundo Xou da Xuxa. Basta ouvir os acordes iniciais para, de repente, aquela chacota parlamentar se tornar um pouco menos abjeta.
E, se você não gostar, bom, sempre resta o recurso tradicional da torta na cara do cronista. Estamos aí para isso mesmo.
A gente gosta de brincar de circo
Ouvir picareta, humilhar testemunha
A gente adora derrubar o mito
Como é bom brincar
A gente comete abuso de autoridade
Manda prender por crime inexistente
A gente canta, dança, bate palma
Pro relator doido falar
Vem o Aziz com a bola no nariz
O Randolfe bancando o juiz
Vem a tropa do G7 toda de uma vez
Mente, desmente, a gente pede bis!
O Calheiros me deixa tão infeliz
Quando assisto à CPI quase soco a televisão...
Respeitável público, sua majestade, o cidadãozinho
O Xou do Xenado orgulhosamente apresenta...
Paulo Polzonoff Jr., colunista - Gazeta do Povo - VOZES