Lei que deveria evitar abuso de autoridade contra o cidadão é distorcida para permitir que mandatários abusem no poder
“Eu me lembro, eu me lembro, era pequeno” (“Deus”, Casemiro de Abreu) é
um dos versos que aprendi com minha mãe na primeira infância e que
percutem em meu cérebro de idoso com a insistência de um apelo que ganha
na redundância força mnemônica. Eu já era muito míope e foi com minha
miopia profunda que aprendi a apreciar os prazeres da leitura à luz de
candeeiro nas trevas do Semiárido. Fora gibis, revistas esportivas e
literatura infantil, minha primeira leitura, digamos adulta, foi um
perfil biográfico (magnificamente escrito por um padre chamado Chico
Pereira) de seu pai, um cangaceiro também chamado Chico Pereira, ambos
como eu nascidos às margens secas do Rio do Peixe. Um texto lindo sobre
uma história exemplar: a aventura de uma recém-saída da adolescência que
criou cada filho do homem de sua vida com um único objetivo: não vingar
o pai. Era uma missão quase impossível ali pelos anos 20 do século 20
no sertão. Mas Jarda, nossa heroína, conseguiu e o autor era prova
disso.
Cedo aprendi com minha mãe que adotar a lei primitiva de talião, do olho por olho, dente por dente, não é a atitude esperada de um ser humano de bem, para quem o zelo pela vida alheia não é apenas uma conversa para passar o tempo. Havia outras Jardelinas nos sertões de entonces e elas salvaram o futuro de gerações que já estão deixando a cena, caso de dona Ritinha Vilar Suassuna, mãe de Ariano. Ao evitar que a prole vingasse o pai, João, ela assegurou ao gênero humano a obra de gênio do filho escritor. Dona Ritinha, Jardelina e Mundica, minha mãe, ensinaram a seus filhos que a vingança, tida como sentimento nobre por nossos ancestrais, é uma torpe forma de evitar que a civilização ocupasse a terra seca, evitando com a ética e a fé na justiça inútil e abundante derramamento de sangue.
Há, porém, sertanejos que ainda chafurdam nessa sequência de extermínios, que fez a fama dos Sampaio e Alencar de Exu, Pernambuco; Maia e Suassuna de Catolé do Rocha, Paraíba; e Omena e Calheiros de Murici, Alagoas. Apesar do prenome sofisticado do grande historiador francês das origens do cristianismo, Renan carrega a vingança num gosto de sangue que pode não matar, mas persegue, chantageia e ata os punhos do inimigo. Foi esse espírito vingativo que o levou a preparar um projeto de lei com arrazoado nobre e consequências desastrosas para a justiça e a civilização de quem acredita na democracia como o regime dos iguais.
De posse da cadeira da qual já tinha saído para driblar punição justa, escapulindo à sorrelfa pelas brechas de uma lei feita de varas de cercas, pegou o sagrado princípio da inviolabilidade do cidadão comum contra o arbítrio do agente do Estado para torná-lo instrumento de vil vendeta. A lei do abuso de autoridade por ele engendrada é uma tentativa de algemar mãos que ameaçam coronéis de antanho que ainda mandam neste nosso país contemporâneo e evitar que o martelo dos juízes seja justo para todos. Para executar o projeto, prestes a ser votado, contou com o auxílio de um companheiro de plagas distantes, mas que tem costume de mentir, similar ao dos amarelinhos espertos das tradições dos cordéis do sertão alagoano.
O relator de seu desabusado projeto de abuso de autoridade, Roberto Requião, colega de partido, é notório pelo cinismo repetitivo e desenfreado com que mente. E sua maior mentira é a insistência numa postura falsamente ética, que só cospe da boca para fora. Renan já renunciou ao Senado para não ter de reconhecer a inexistência de uma boiada fictícia para explicar dinheiro sem origem para sustentar uma filha fora do casamento. Hoje responde a 13 processos na Justiça e é citado na lista dos 78 delatores da Odebrecht, na companhia do filho, governador de Alagoas.
Requião, três vezes governador do Paraná, hoje sede da “república de Curitiba”, da qual o Brasil espera punição exemplar para criminosos de colarinho branco, foi o relator indicado pelo Calheiros de Murici para relatar sua versão particular de vendeta, tornada lei contra abuso de autoridade. O paranaense protagonizou um dos espetáculos mais explícitos e grotescos de fraude eleitoral da História da democracia brasileira: o caso Ferreirinha. Esse foi o nome usado em sua campanha na eleição de 1990 por uma testemunha falsa que assumiu o papel de um pistoleiro inexistente, contando ter matado camponeses, cujas terras teriam sido ocupadas pelo empresário Oscar Martinez, pai de seu adversário, José Carlos Martinez.
Requião ganhou o segundo turno, mas o falso Ferreirinha foi desmascarado antes da posse: era Afrânio Luís Bandeira Costa, motorista da campanha do PMDB. Inculpado nas instâncias iniciais, o peemedebista tomou posse e estava a seis meses de terminar o mandato quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o inocentou a pretexto de erro no processo: Mário Pereira, vice não fora processado, como deveria tê-lo sido.
Segundo O Globo, Requião, que pertence à comissão que investiga os salários acima do teto constitucional no Senado, recebe R$ 64.234,11 por mês – um supersalário que inclui os R$ 33.763,00 (o teto constitucional) como congressista mais R$ 30.471,11 de “aposentadoria especial” de ex-governador. Aos repórteres do jornal disse que não abriu mão do benefício porque precisa dos recursos para pagar as indenizações a que é condenado. De acordo com o que o Diário dos Campos, de Ponta Grossa, no interior de seu Estado, publicou em 2009, o então governador era citado em 369 processos judiciais, que, em caso de condenação, lhe custariam R$ 1 bilhão – só os honorários judiciais, representavam R$ 16 milhões. A notícia sobre os vencimentos que ele mantém, segundo alegou, para pagar à Justiça foi reproduzida no Twitter do jornalista Fábio Campana. Em 1990, a PF identificou como sendo usada por esse jornalista, à época assessor de imprensa do senador, a máquina de escrever na qual foi redigido o falso testemunho de Ferreirinha, Esse personagem, ao contrário de seus inventores, não pode mais ser encontrado. Como se diz na gíria, ele tomou Doril.
O ex-governador leu seu relatório na quarta-feira 19 de abril e garantiu que tinha adotado medidas sugeridas pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e apoiadas pelo juiz Sergio Moro. Este negou. Mais uma vez, Requião mentiu e, assim, violou o decoro parlamentar. Mas continua ganhando a imunidade garantida pelos colegões de Senado. [esclarecimento indispensável: não aceitar sugestões do procurador-geral da República ou de qualquer autoridade, da mesma forma que recusar medidas apoiadas pelo juiz Sérgio Moro ou outra autoridade, é um DIREITO INALIENÁVEL de qualquer parlamentar.]
Como se diz nas montanhas da Sicília, do bandido Salvatore Giuliano,sono tutti buona gente. Buoníssima, não é mesmo? Deixar que essa gente se vingue preventivamente, e de forma indecente, de policiais federais, procuradores públicos e juízes que os investigam, processam e incriminam, é uma ignomínia. [LEMBRANDO SEMPRE que a denúncia tem que ser apresentada por um membro do Ministério Público e será julgada por um juiz.
Como de forma incontestável diz Reinaldo Azevedo, em seu Blog na VEJA: "Em qualquer versão, a autoridade que for processada só poderá ser denunciada pelo Ministério Público e julgada pelo Judiciário. Digam-me cá: os senhores procuradores e o senhores juízes não confiam nas instituições às quais pertencem e na lisura de seus pares?"
Pois a vítima de tal vendeta será o cidadão, que continuará pagando a conta e sendo roubado, como dantes, sem que os larápios sejam apanhados, processados e julgados. Como bradou o filósofo e membro da Academia Paraibana de Letras, padre Francisco Pereira da Nóbrega, “vingança, não!”. Ou melhor: vingança, nunca!
Fonte: Blog do José Nêumanne