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sábado, 4 de junho de 2022

Uma lei fora da lei - Revista Oeste

Flavio Morgenstern

O inquérito das fake news completa dois anos sem que os advogados dos réus tenham tido sequer acesso à íntegra do processo

Uma dúvida, leitor: você está sendo investigado pelo infame inquérito das fake news? A única resposta correta para esta pergunta é: “Não sei”. Os alvos do Inquérito 4.781, o inquérito das fake news, ainda não sabem do que estão sendo acusados nem como podem se defender.

Alexandre de Moraes, ministro do STF | Foto: Montagem Revista Oeste/STF/Shutterstock
Alexandre de Moraes, ministro do STF | Foto: Montagem Revista Oeste/STF/Shutterstock

Prisões de jornalistas eram comuns apenas na época da ditadura, mas agora fazem parte da normalidade do noticiário — e o aparato de investigação secreto do Estado passou a integrar a vida comum brasileira. Com apenas um inquérito, prisões de deputados por figuras que ignoram a imunidade parlamentar e bloqueio das contas nas redes sociais de um partido político minoritário como o PCO começaram a virar rotina no país.

Instaurado a partir da Portaria 69/19, de março de 2019, pelo ministro Dias Toffoli, o inquérito de natureza policial investigativa, que tem como relator o ministro Alexandre de Moraes, continua correndo em segredo, sem que se saiba quem está sendo investigado e quem não. Há dois anos, no dia 27 de maio de 2020, iniciou-se a operação mais chocante já vista por opiniões nas redes sociais no Brasil: foram cumpridos 29 mandados de busca e apreensão contra empresários, youtubers e até humoristas. Nenhum advogado teve acesso integral aos autos, nem há clareza sobre quais são as acusações.

Passados mais de três anos desde a sua instauração, o inquérito visava a apurar a existência denotícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. É estranho à jurisprudência, e mesmo à lei, um inquérito (ainda mais instaurado de ofício) para investigar algo tão abrangente e de contornos porosos como “fake news”, que nem sequer são um crime tipificado no Código Penal. 
Tampouco uma mudança tão gigante no processo jurídico para punir uma leve injúria, que é um mero xingamento, e não costuma gerar punição em nenhum tribunal. 

Absolutamente inconstitucional
Foi o próprio ministro Alexandre de Moraes quem afirmou: “Quem não quer ser criticado, quem não quer ser satirizado, fique em casa. Não seja candidato, não se ofereça ao público, não se ofereça para exercer cargos políticos. Essa é uma regra que existe desde que o mundo é mundo. Querer evitar isso por meio de uma ilegítima intervenção estatal na liberdade de expressão é absolutamente inconstitucional”. Posteriormente, também diria: “Eu defendo a absoluta liberdade de expressão, sou absolutamente contra censura prévia, mas quem diz o que quer tem que ter coragem de ser responsabilizado”, elencando a seguir muitas expressões que considera que não sejam amparadas pela liberdade de expressão.

Qualquer crítica ao inquérito pode acabar transformando o crítico em alvo do próprio inquérito

No terreno acadêmico, o inquérito foi criticado por inúmeros juristas, inclusive de esquerda, sendo extremamente difícil encontrar opiniões que o considerem um ato perfeitamente legítimo, amparado pela lei e pela normalidade processual do país. 

O Inquérito 4.781 foi chamado pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello de “inquérito do fim do mundo”, também nome de batismo de um livro editado pela promotora Claudia Piovezan, que reuniu juristas para comentar “o apagar das luzes do Direito brasileiro”. O livro já teve a continuação Sereis Como Deuses: O STF e a Subversão da Justiça, com mais uma continuação no prelo.

A mudança que o inquérito das fake news promoveu não apenas no Direito brasileiro, mas na cultura e, claro, no jornalismo, é que qualquer crítica ao inquérito pode acabar transformando o crítico em alvo do próprio inquérito, por supostoanimus calumniandi, diffamandi e injuriandi contra membros da Suprema Corte. O que não faz parte da nossa intenção, naturalmente.

Entretanto, data maxima venia, elencamos alguns pontos que muitos juristas ainda não conseguem defender no inquérito com base na lei e na jurisprudência e que poderiam ser mais esclarecidos para operadores do Direito e para a população, até mesmo políticos e partidos políticos. 

Instauração de ofício com base no Regimento Interno do STF
O inquérito foi instaurado com base no artigo 43 do Regimento Interno do STF, que versa que: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”. 
 
As supostas “fake news“, que até hoje não foram apresentadas, não são infrações à lei penal nem ocorreram na sede do Tribunal. O argumento utilizado pelo excelentíssimo ministro Luís Roberto Barroso é que crimes ocorridos na internet estão em todo lugar. 
Portanto, um artigo do regimento que aponta qual a autoridade competente para investigar uma infração penal fisicamente dentro do tribunal é suficiente para ser utilizado para investigar palavrões na internet. É difícil encontrar amparo para tal sustentação, mas o silêncio na comunidade jurídica é um indício do motivo.
Luís Roberto Barroso, ministro do STF | Foto: Rosinei Coutinho/Ascom/TSE

Alguns juristas citam o parágrafo 1º do mesmo artigo, que exige que, nos demais casos, o presidente do Supremo deve “requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente”, deixando claro que a autoridade competente é um delegado, e não o próprio ministro do Supremo. Apesar de majoritária, tal interpretação simplesmente foi ignorada.

Na ocasião de sua abertura, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, manifestou-se contrariamente ao inquérito, solicitando seu engavetamento. Foi ignorada. Pedidos de participação do Ministério Público tampouco foram atendidos.

O ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp afirmou: “Esse inquérito nasceu, de certa forma, viciado. É a primeira vez que o STF, de ofício, abre um inquérito, designa o relator, não ouve o MPF e o inquérito prossegue. Isso foi inédito”.

Crime inexistente
Não existe a tipificação penal de um crime de “fake news”. O conceito é tão amplo que uma CPMI já foi instaurada para investigar as ditas “notícias falsas”, mas, apesar da torrefação de dinheiro público, a única fake news que foi vista foi de um dos denunciantes (o deputado e ex-ator pornô Alexandre Frota, que acusou o filósofo Olavo de Carvalho de escrever um tuíte contra Caetano Veloso, mas o tuíte era fake).

Notícias que já foram chamadas de fake news também foram amplamente refutadas. A origem laboratorial do coronavírus em Wuhan foi chamada de “teoria da conspiração” e fake news, inclusive por agências de checagem — antes de estamparem capas de revista, como a Superinteressante. A mesma Superinteressante que anteriormente havia publicado a reportagem “Sim, o coronavírus veio da natureza — e não de um laboratório”, com o subtítulo Os boatos de que o vírus foi manipulado pela China não passam de uma mentira. E a ciência prova”. 

Por sorte, a repórter Carolina Fioratti não foi incluída no inquérito — mas notícias verdadeiras publicadas na Gazeta do Povo, ou citando a aprovação de medicamentos pela norte-americana FDA, foram ensejo pela CPI da Covid para quebras de sigilo telefônico e telemático (aprovadas pelo Supremo), alegando serem uma “rede de desinformação”

Políticos aproveitam constantemente o inquérito secreto para perseguir desafetos. O senador Fabiano Contarato (PT-ES), que será relator do novo Código Penal, e o deputado federal Fausto Pinato (PP-SP) já pediram ao STF para incluir a investigação de sites que fizeram críticas semelhantes à política chinesa, por exemplo. As peças também são coincidentemente muito parecidas.

A “honra” do Supremo
Como explica a jurista Thaméa Danelon, não sendo uma pessoa física, o Supremo não pode ter “honra” a ser atingida por animus diffamandi não haveria “sentimentos” de um tribunal a serem preservados.

A sanha de punição ao crime de injúria, que, apesar de tipificado, quase nunca gera punição (ou qualquer xingamento na internet geraria seis meses de prisão), combina pouco com a linha garantista e antipunitivista de ministros como Barroso e Fachin, que são contra prisão para crimes com pouca violência.

Sorteios e indicações heterodoxas
A designação de juízes deve ocorrer por sorteio. Todavia, data maxima venia, o Inquérito 4.781, inaugurado por Toffoli, designou como relator Alexandre de Moraes por indicação — o que está contra o regulamento processual.
 
 Ademais, em várias designações do caso, o próprio Alexandre de Moraes também exigiu que investigações policiais fossem conduzidas pela delegada Denisse Rosas Ribeiro, escolhida como preferida para conduzir investigações. 
Denisse Ribeiro também atua, por indicação do ministro Moraes, no inquérito dos atos antidemocráticos, o 4.879, que já deixou o jornalista Wellington Macedo preso por 42 dias sem saber até hoje por qual crime era investigado. Não há nenhuma previsão de que um ministro do STF possa interferir no trabalho da Polícia Federal a ponto de indicar qual delegado deve conduzir a investigação. 

Não cabe esquecer que a maior celeuma entre Bolsonaro e o STF se deu justamente pela indicação de Alexandre Ramagem pelo presidente para a chefia da Polícia Federal. Pela lei, a escolha deve ser feita pelo presidente, mas o Supremo considerou que a indicação seria uma “interferência”.  

Denisse Rosas Ribeiro, curiosamente, já coordenou uma operação que teve como um dos alvos… o ministro Alexandre de Moraes. Podemos ler no jornal Folha de S.Paulo: “A Operação Acrônimo, coordenada pela delegada federal Denisse Dias Rosas Ribeiro, apreendeu documentos que indicam o pagamento de pelo menos R$ 4 milhões de uma das empresas investigadas para o escritório de advocacia do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Segundo reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo na última sexta-feira (7/10), a JHSF Participações, de São Paulo, teria pago os valores entre 2010 e 2014. O nome do ministro da Justiça, que na época não ocupava cargo público, foi encontrado em uma planilha no último dia 16 na mesa de um dos principais executivos da JHSF, empresa do setor imobiliário que está sendo investigada pela Acrônimo. A PF também encontrou na planilha os valores e as siglas PT e PSDB. No mesmo mês, a defesa do proprietário da JHSF, José Auriemo Neto, informou à PF que a referência era mesmo ao ministro da Justiça”.

O que aconteceu para que Denisse Ribeiro, de repente, se tornasse a preferida de Alexandre de Moraes, e as investigações contra o então ministro simplesmente evaporassem, é um dos grandes golpes de sorte do STF.

O acesso aos autos — anulação do princípio da ampla defesa

(...)


Um estranho conflito de datas
Em resposta a uma campanha que tomava as redes exigindo o acesso aos autos, o excelentíssimo ministro Alexandre de Moraes foi ao Twitter explicar que, “diferentemente do que alegado falsamente, foi autorizado integral conhecimento dos autos aos investigados no inquérito que apura “fake news”, ofensa e ameaças a integrantes do STF, ao Estado de Direito e à Democracia”.

 (.....)


Na ocasião, mesmo a Folha de S.Paulo escreveu que “STF busca sanar vícios de inquérito das fake news, e Moraes pode se declarar impedido”. Não foi o que aconteceu.

Investigador, acusador, suposta vítima e juiz
A situação do inquérito gera uma situação muito própria ao Brasil, no qual o tribunal estaria investigando ataques à “sua” honra, pelo argumento de que críticas aos ministros são críticas à própria existência do Supremo Tribunal Federal (e, portanto, da democracia). Quem acusa também é o próprio STF, visto que uma participação do Ministério Público foi negada. Também seria a suposta vítima, afinal, que investiga o que chama de “ataques” ao próprio tribunal, considerando xingamentos e piadas como “riscos à vida e ao Estado Democrático de Direito”. E, claro, julga todos os fatos.

Alguns creem ser uma anomalia. Gustavo Badaró, advogado criminal e professor de Direito Processual Penal da USP, disse que a inclusão de Bolsonaro no inquérito é “torta desde o início”. Para o professor, “não se pode deixar um inquérito aberto e, a cada vez que surgir um fato novo, ir colocando nele”. 

A crítica é acompanhada pela jurista e deputada estadual Janaina Paschoal, professora de Direito Penal da USP: “São muitas as ilegalidades que circundam esse inquérito. Porém, se tiver de eleger uma, destaco que, em regra, os inquéritos são instaurados para apurar eventos passados e definidos. No caso do inquérito das tais fake news, novos fatos vão sendo incluídos sucessivamente. Ele funciona como um alerta (um sinal vermelho) constante para aqueles que divergem das decisões do STF”.

A liberdade de imprensa fica também maculada com o inquérito, já que a possibilidade de algum ministro do Supremo incluir nas investigações jornais que critiquem sua atuação agora é uma realidade. Alguns optam pelo medo e pelo silêncio, que também se tornaram comuns nas tratativas com o STF, sobretudo nas redes sociais.

Podemos lembrar das próprias palavras do ministro Alexandre de Moraes, que afirmou que “não é permitido a nenhum órgão bisbilhotar, fichar ou estabelecer classificação de qualquer cidadão e enviá-la para outros órgãos”. E completou: “Relatórios de Inteligência não podem ser utilizados para punir, mas para orientar ações relacionadas à segurança pública e do Estado”.

Resta a esperança de que esses pontos ainda sejam esclarecidos por sábios do Direito. E que as instituições democráticas recebam a merecida honra por tratarem bem a população, a liberdade e o jornalismo. Além da própria Justiça.

Leia também “O golpe que nunca existiu”