Jovem linchado no Parque: duas semanas após o crime, ninguém foi punido
A maior dificuldade
dos investigadores está na falta de testemunhas. Não há quem fale, dê
pistas, denuncie. É como se existisse um pacto pela impunidade daquele
que entra para a lista dos mais brutais crimes de Brasília
DENUNCIE:
197Serviço telefônico da Polícia Civil para denúncias
DenuncieQuem
tiver informações sobre os autores do linchamento no Parque da Cidade
pode denunciar. Não é obrigado a revelar a identidade. A Polícia Civil
tem quatro meios para os relatos, além do telefone 197. São eles:
site
www.pcdf.df.gov.br; e-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br
Telefone: 197
WhatsApp 98626-1197
Pelo menos 20 jovens de classe média brasiliense, moradores do
Plano Piloto, do Lago Norte e do Guará, mataram a socos, pontapés,
facadas e garrafadas um garoto de 16 anos. Outros tantos assistiram ao
linchamento no maior parque da capital do país, sem intervir. Muitos
incentivaram, aos gritos de “Pega!”, “Finaliza!”, “Mata!”, acompanhados
de inúmeros palavrões dirigidos à vítima. Apesar de se tratar de um
local público, de haver tantos autores e cúmplices, e com a grande
possibilidade de alguém ter filmado algo com um telefone celular,
passaram-se duas semanas sem ninguém ter sido preso ou sequer indiciado.
A maior dificuldade dos investigadores está na falta de testemunhas.
Não há quem fale, dê pistas, denuncie. É como se existisse um pacto pela
impunidade daquele que entra para a lista dos mais brutais crimes de
Brasília.
A
selvageria aconteceu por volta das 19h de 26 de maio, um sábado, no
Parque da Cidade. Além dos tradicionais frequentadores, os atletas
amadores, e dos clientes dos comércios, havia mais de 1,5 mil meninos e
meninas em uma festa realizada no estacionamento público número 11 da
área de lazer, em frente ao Carrera Kart, cenário da barbárie. Evento ilegal, sem alvará, sem segurança privada, sem equipe de
enfermeiros e socorristas, mas que prosseguiu, por ao menos quatro
horas, com venda e consumo de álcool. Isso apesar de o parque ter
administração própria, rondas de policiais militares a cavalo e em
picapes, equipes de vigilância patrimonial motorizadas, da ampla
divulgação do encontro em redes sociais, de ele concentrar tanta gente e
de emitir um som alto o suficiente para ser ouvido nas quadras vizinhas
da Asa Sul e do Sudoeste.
A vítima
» Victor Martins Melo
» Tinha 16 anos
» Morava no Setor de Chácaras do Lago Norte
» Era aluno do 8º ano de um colégio público da Asa Sul
» Torcia para o Corinthians, adorava ouvir música e dançar
“Triste
ir para o rolê (festa) e ter que ver esse tipo de coisa. A gente se
arruma e sai (...) para se encontrar com os amigos e se divertir e não
sabe se vai voltar para casa inteiro”
Participante do evento onde houve o crime, em relato na internet
A primeira festa
A vítima, Victor Martins
Melo, havia saído de casa, no Setor de Chácaras do Lago Norte, pouco
antes das 16h. Restrito a eventos sociais nos âmbitos familiar e
escolar, o aluno do 8º ano de um colégio público da Asa Sul seguia para
uma festa em local público, sozinho, pela primeira vez. Havia recebido
autorização do pai, o comerciante Íris de Melo, 47, dois dias antes.
“Ele queria muito ir a essa festa. Chegou a me dizer: ‘Pai, você sabe
que eu não faço nada de errado.’ Ele tinha razão. O Victor nunca me deu
dor de cabeça. Era um menino caseiro. Namorava a mesma menina havia dois
anos. Preferia passar os fins de semana em casa, com ela. Durante a
semana, estudava de manhã e, à tarde, vinha me ajudar na loja. Não
bebia, não fumava, não arrumava confusão com ninguém”, lembra Íris, dono
de uma loja de películas para vidro, na Asa Norte.
A
mãe, Valdineia Martins Melo, 41, só soube da intenção do filho de ir ao
evento no Parque da Cidade uma hora antes do início. E ele prometeu
retornar entre as 19h e as 19h30. Com o consentimento de Valdineia,
Victor deixou a casa feliz, de roupa nova, bem arrumado e penteado.
Bonito, era extremamente vaidoso. Adorava música. Ouvia de quase tudo,
do funk ao sertanejo. Curtir a música e dançar eram os plano para a
festa no Parque da Cidade, onde também estariam colegas da escola e
vizinhos adolescentes do Setor de Chácaras do Lago Norte. Quando o
ponteiro do relógio marcou 19h, a mãe fez a primeira de uma sequência de
ligações para o telefone celular do filho naquela noite de sábado. “A
minha mulher telefonou até as 19h40, quando o aparelho do nosso filho
deu sinal de que estava desligado”, conta o pai.
Assassinado e roubado
Vinte
minutos depois, Valdineia recebeu a visita inesperada do dono de uma
mercearia vizinha, ponto de encontro dos moradores da região. O homem
disse a ela que um dos adolescentes da quadra acabara de mandar um
recado aos pais de Victor. Pediu para irem ao Parque da Cidade, pois
havia “algo de errado” com o filho deles. Valdineia ligou para o marido,
que estava na loja. Íris foi para casa. “Sabia que algo grave havia
acontecido, mas não imaginava que era tão grave. Fomos primeiro para o
Hospital de Base. Não encontrando o meu filho, seguimos para a DCA
(Delegacia da Criança e do Adolescente). Lá, falaram-nos que havia tido
um assassinato no Parque, mas que a vítima era uma mulher. Estavam nos
enrolando. Não queriam que fôssemos ao Parque. Queriam nos poupar”,
relata Íris.
Pouco depois, um agente pediu para o casal ir ao Instituto de Medicina
Legal (IML). “Nessa hora, falei para a minha esposa: ‘Mataram o nosso
filho!’”, recorda-se Íris. Para chegar ao IML, o pai passou pelo Parque.
Ao enxergar veículos e homens da PM e da Polícia Civil em um dos
estacionamentos, por volta das 21h, ele parou e desceu. Encontrou,
caído, ensanguentado, com marcas de violência, o filho morto, só de
cueca e com a camiseta furada, rasgada e suja. Pelos policiais, soube do
que havia acontecido, pelo menos a parte que se sabia até então. Que
uma adolescente teve o celular roubado, apontou para um grupo de jovens
e, na confusão, Victor foi detido por outros rapazes. Caído, recebeu
chutes, socos e garrafadas. Perfurações apontavam, ainda, facadas. Por
fim, roubaram-lhe a carteira, o celular, os tênis e a bermuda.
Paramédicos do Samu fizeram massagem cardíaca na vítima, que não
resistiu aos ferimentos.
Fã de futebol que sonhava servir à Aeronáutica
Victor
Martins Melo era o filho do meio. Tinha um irmão de 21 anos e uma irmã,
de 14. Nasceu em Luziânia, assim como o mais velho. Época em que os
pais moravam em Valparaíso, e a cidade goiana sequer tinha maternidade. A
vida da família girava entre os dois municípios do Entorno, mas o
goianiense Íris de Melo e a goiana do interior Valdineia Martins de Melo
queriam um lugar mais promissor para os filhos. Decidiram por Brasília,
onde compraram um terreno no Setor de Chácaras do Lago Norte e montaram
a loja de películas que viria a sustentar todos. Em seguida, adquiriram
um sítio em São Gabriel (GO).
Na capital,
nasceu a menina. Ela e os dois irmãos sempre frequentaram escolas
públicas. Brincavam juntos. Nunca criaram problemas para os pais.
Terminado o ensino médio, o mais velho decidiu cuidar do sítio da
família. A propriedade se tornou ponto de encontro familiar aos fins de
semana. Para lá, Victor levava a namorada, de 17 anos. Dos tempos em
Goiás, além da música sertaneja, o garoto cultivava a paixão pelo Villa
Nova. Sempre que a família ia a Goiânia visitar os parentes, o rapaz
pedia ao pai para irem ao jogo do Dragão. O adolescente também torcia
pelo Corinthians. Não perdia uma partida do time paulistano pela tevê. “Todo
dia de manhã, eu levava o Victor e a irmã ao colégio. Quando entrávamos
no carro, ele pedia para sintonizar em uma rádio de notícia.
Principalmente, às segundas, às quintas e às sextas-feiras. Queria saber
os resultados dos jogos de futebol do dia anterior e os comentários.
Quando decidi voltar ao trabalho, na segunda passada, entrei no carro e
não vi o Victor ao meu lado, o meu coração doeu muito”, conta Íris. Ele
também lembra da paixão do filho pela Aeronáutica. “Desde pequeno, o
Victor não falava em outra coisa, queria servir às Forças Armadas,
seguir carreira na Aeronáutica. Como ele faria 17 anos daqui a pouco,
estava ansioso pela oportunidade.”
Dor e burocracia
Além
de não ver o sonho do filho realizado, Íris teve frustrada outra
vontade de toda a família, a de cremar o corpo do garoto. “Todos em casa
concordamos com esse procedimento. Acreditamos que, com ele, podemos
deixar o ente querido em um lugar belo, em paz. Mas não pôde ser assim
com o Victor por causa da burocracia do Estado e da máfia das
funerárias”, reclama. Depois de ver o filho morto no Parque da Cidade,
na noite de sábado, o empresário voltou ao IML na manhã de domingo
acreditando que, por meio de um trâmite rápido, poderia levar o corpo
para uma cerimônia em Valparaíso, onde ocorreria a desejada cremação.
Mas,
por se tratar de morte violenta, funcionários do instituto alegaram que
seria necessária a autorização de um promotor de Justiça plantonista.
“Nesse momento, o Estado não pensa na dor da família. O que mais queria
era pular aquela etapa do luto, mas ela foi só se arrastando, enquanto
apareciam funcionários de funerárias oferecendo os serviços e a
administração (privada) dos cemitérios de Brasília aceitava só vender
jazigo para três corpos. Não era o que a minha família queria”, observa
Íris.
Com a falta de resposta do promotor, o
domingo acabou, e os familiares de Victor passaram mais uma noite sem
cremação nem enterro. O calvário se repetiu na segunda-feira. “Quando
foi na terça-feira, vendo a minha família estraçalhada, decidi me render
à máfia das funerárias. Mas optamos por um enterro na Cidade Ocidental
(GO), onde poderíamos comprar uma cova simples para, quando tivermos
cabeça e a Justiça permitir, fazermos uma exumação e realizar a desejada
cremação, para deixar os restos mortais do Victor em um local de
descanso, mas lindo”, comentou o pai do adolescente. “Por isso, quase
ninguém soube de velório. Fizemos uma cerimônia rápida e simples, que
reuniu poucos familiares”, afirma.
Desde o
enterro, só Íris saiu de casa. “Tinha de trabalhar. Muita gente depende
do meu trabalho”, frisa. Sedada, Valdineia não conseguiu sair do quarto.
Recebe o amparo da irmã, única parente em Brasília. A irmã do menino só
chora. “Ela fala do irmão o tempo inteiro. Lembra do que faziam
juntos”, conta Íris. Talvez a menina volte à aula amanhã. O irmão mais
velho também segue recluso. Pouco fala. O quarto de Victor continua
intacto, como ele deixou em seu último dia de vida. Do que Victor saiu
carregando de casa naquele trágico sábado, a família recebeu de volta
apenas os documentos dele. Jogados por cima do muro da casa por um
anônimo. Alguém que provavelmente estava na cena do crime.
197Serviço telefônico da Polícia Civil para denúncias
DenuncieQuem
tiver informações sobre os autores do linchamento no Parque da Cidade
pode denunciar. Não é obrigado a revelar a identidade. A Polícia Civil
tem quatro meios para os relatos, além do telefone 197. São eles:
site
www.pcdf.df.gov.br; e-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br
WhatsApp 98626-1197
Adolescente se contradiz
Os investigadores
do caso duvidam que Victor Martins Melo roubou algo na festa do Parque
da Cidade.
Conclusão tirada após ouvir sete testemunhas, inclusive a
adolescente de 16 anos dona do celular levado por desconhecidos
.................
Em um dos depoimentos,
a garota afirmou que não se lembrava de tudo, porque estava sob forte efeito de álcool.
..................
Responsável pela gestão do Parque da Cidade, a Secretaria de Esporte,
Turismo e Lazer do DF
confirmou que o encontro não tinha permissão
pública, mas não explicou por que durou pelo menos quatro horas. Apenas
afirmou ter acionado a Polícia Militar assim que soube do evento. Quando
a primeira equipe da PM chegou ao local, o linchamento havia
acontecido.
CONTINUAR LENDO: Correio Braziliense