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segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Amazônia ‘internacional’ - O Estado de S. Paulo

Denis Lerrer Rosenfield


O presidente Macron, ao responder ao presidente brasileiro, criou um problema geopolítico de dimensão inusitada


Muitas impropriedades foram cometidas a propósito dos debates sobre a questão da Floresta Amazônica, uma celeuma que se tornou um problema geopolítico, diplomático, comercial e militar. Uma questão de comunicação, de pouca eficácia do lado brasileiro ganhou dimensão propriamente amazônica. Note-se que o mundo da política, e também o do comércio exterior e da diplomacia, é o das percepções, muitas vezes os fatos e a verdade ficam a reboque. 

Tanto uma percepção falsa quanto uma verdadeira orientam a ação, que se fará numa ou noutra direção. Eis por que o trabalho de comunicação e esclarecimento dos fatos é da máxima importância, pois de sua falta seguirá um tipo ou outro de ação. Ou seja, a comunicação social, tanto a tradicional quanto a digital, faz parte da ação humana e, portanto, dos governos, empresas e entidades de classe. Dela dependerá a orientação do comportamento e da ação humana. Nesse jogo de percepções e de apostas arriscadas, no que tange às impropriedades o presidente francês ganhou o campeonato, embora o brasileiro se tenha referido à primeira-dama da França de forma inadequada e desrespeitosa. Isto é, o presidente Macron, ao responder ao presidente brasileiro, criou um problema geopolítico de dimensão inusitada.

Picado pela boutade imprópria de Bolsonaro, declarou que a Amazônia teria status internacional, não devendo, portanto, estar submetida à soberania brasileira.
O caminho é deveras longo da primeira-dama à ameaça de velada intervenção externa, certamente “comandada” e “inspirada” pela França. É bem verdade que o presidente Macron procura agradar aos agricultores franceses, refratários à competição internacional, vivendo de subsídios e temendo fortemente a concorrência da agropecuária brasileira. Sua intenção é evidente: torpedear o recém-assinado acordo Mercosul-União Europeia. Está à procura de votos e tenta para isso criar uma crise internacional.

Seus colegas europeus não caíram na armadilha, ressaltando, corretamente, que o próprio acordo contém salvaguardas ambientais e a negociação é o melhor caminho. Mas o dano ao Brasil já foi causado e o objetivo, alcançado: queimar a imagem do País e do agronegócio.
Mais de 80% do bioma amazônico é preservado pelas terras indígenas, áreas de preservação ambiental, áreas militares e 80% das propriedades privadas. Ou seja, o coeficiente de preservação ambiental é altíssimo. Não haveria motivo para nenhuma espetacularização, porém, considerando a inação da comunicação governamental, dados desse tipo nem alcançam os meios de comunicação mundiais, em particular na Europa. Paradoxo: um dos países mais conservacionistas é tido como responsável pela poluição planetária!

Veja-se o despropósito. A Amazônia não seria mais exclusivamente brasileira. Amanhã ou depois poderiam alguns governantes lunáticos propor uma intervenção militar em nosso território. Por que não propõem algo semelhante nos cinco países mais poluidores do planeta: Estados Unidos, China, Índia, Rússia e Japão? Ou entre os dez, incluindo Alemanha, Canadá e o Reino Unido? 

 Estão preocupados com o planeta ou com os seus interesses?

Ademais, o presidente francês, ao afirmar que a França tem extensa fronteira com o Brasil, “esqueceu” um pequeno dado histórico. A Guiana Francesa é, na verdade, uma colônia, resquício do passado colonial francês. Ser hoje denominada “departamento francês ultramarino” não muda a História. A Holanda e o Reino Unido também tiveram suas “Guianas” e levaram a término um trabalho de descolonização. O Brasil não tem “fronteiras” com esses países europeus. Não seria o momento de a França fazer seu dever de casa?

Dito isto, o Brasil deve enfrentar seus próprios problemas. Um dos principais consiste na regularização fundiária, bem assinalada pelo ministro Ricardo Salles. Há uma questão envolvendo terras que não são de ninguém, para utilizar uma expressão corrente, numa confusão entre a titularidade da União e a posse dos que lá vivem e trabalham. Ou seja, não há responsabilidade nenhuma, de tal maneira que, no caso de uma queimada, o crime não tem titular. Se houvesse uma regularização, a lei deveria ser seguida por aquele que detém a propriedade da terra. Assim como está, ninguém é responsável por nada. Os criminosos desaparecem.

Em torno de 74% da área da Amazônia é constituída por terras públicas, cabem apenas 26% à iniciativa privada. E esta deve obedecer ao limite legal de exploração em somente 20% da área. Leve-se também em consideração que, anteriormente à lei em vigor, 50% podiam ser desmatados. Logo, quando se fala em “queimadas”, dever-se-ia determinar se ela ocorreu em área pública ou privada, responsabilizando-se lá quem de direito. A exploração da agricultura e da pecuária no Brasil, atualmente, não utiliza a queimada como instrumento de preparação de cultivo da terra, salvo em casos marginais e sem expressão. Em consequência, não há como responsabilizar a agricultura e a pecuária brasileiras pelo desmatamento, como está sendo feito internacionalmente.

Há uma distinção capital a ser feita entre desmatamento legal e ilegal. O legal corresponde ao direito de cultivo e produção de alimentos relativo aos 20% que podem ser desmatados. Tudo conforme a lei. Outra coisa totalmente diferente é o desmatamento ilegal, que não segue nenhuma regra e nem limites. E é esse que se utiliza de queimadas! Na verdade, trata-se de grilagem de terras, garimpos, exploradores de madeira, que deixam as terras devastadas. Esses casos deveriam ser tratados com todo o rigor da lei, com uso de policiais e, se for o caso, de militares. Ações de repressão aí são fundamentais, pois se não forem realizadas passarão a mensagem de que tudo é permitido e a impunidade faz o crime valer a pena.

Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na UFRGS - O Estado de S. Paulo