Eugênio Bucci
A partidárias e que veicucobertura ampla das conversas impróprias foi um acerto de boa parte da imprensa, mas há também um saldo negativo a ser contabilizado
Depois de projetar para o primeiro escalão da República o ministro mais
popular da Esplanada, Sergio Moro, da Justiça, a Lava Jato atravessou um
ano amargo. As revelações do Intercept Brasil, publicadas em conjunto
com outros órgãos de imprensa - Veja e Folha de S. Paulo entre eles -,
fez os mais notórios expoentes da operação serem chamados explicar as
evidências de jogo combinado entre integrantes do Ministério Público e
do Poder Judiciário para prejudicar réus escolhidos a dedo. Foi um ano
ruim para eles. Sua aura de liga de heróis investido de uma missão
sacrossanta avinagrou.
A perda de prestígio não se deu sem, como anda na moda dizer, disputa de
narrativas. Uma breve recapitulação nas páginas dos jornais mostra como
foi. No começo, algumas das personagens flagradas nas conversas
expostas pelo Intercept e pelos veículos a ele associados saíram dizendo
que não reconheciam a autenticidade dos diálogos, mas, alegavam
preventivamente, caso fossem verídicos não viam nada “de mais” no que
estava ali. Essa primeira tática teve fôlego curto. A desconversa
defensiva durou pouco, não só porque o material se mostrou autêntico
(tal como foi atestado por diversas verificações feitas por diversos
repórteres que apareciam nos registros vazados), mas principalmente
porque as falas de uns e outros tinham, sim, muita coisa “de mais”. [não esperávamos que as mentiras advindas do material roubado e repassado ao site intercePTação, voltasse a ser veiculado - não é notícia, está apenas sendo destacado como se notícia fosse;
Afinal, foi apenas o 'escândalo que encolheu' - na sábia e adequada classificação efetuada pelo colunista do Estadão, Eliane Cantanhêde.
apenas para lembrar aos que por não darem importância a assuntos menores possam ter esquecido:
- o material, que alguns chamam de conversas, repassado por criminosos (alguns estão presos e já começam a falar, admitindo a prática do ato criminoso) ao site intercePTação e por esses a órgãos da grande imprensa, continua:
- material roubado, seja ouro em pó ou fezes e outras coisas do tipo, se roubados se tornam produtos de crimes e quem os recebe pratica o crime de receptação;
- a Constituição Federal continua estabelecendo que provas obtidas de modo ilicito sequer podem ser anexadas ao processo;
- o material não foi submetido a uma cadeia de custódia para ser submetido a uma perícia oficial e ter sua autenticidade confirmada ou não - afirmação de jornalista se reconhecendo em trecho de uma suposta conversa, não tem fé pública e nem autentica nada;
- o fato de um dos supostos interlocutores deixar em aberto a possibilidade de ter participado na conversa e que nada de mais foi conversado é perfeitamente aceitável - fossem verdadeiras as conversas obtidas por meios ilícitos, mesmo assim seriam conversas privadas e expressar opinião não é crime.
Isto posto, vamos em frente.]
Em seguida, vieram as acusações de que o Intercept se teria beneficiado
de material roubado por um hacker, o que constituiria vício jornalístico
equivalente ao crime de receptação, previsto no Código Penal. Outra vez
o argumento logo caiu no vazio. As reportagens não surripiaram nada de
ninguém; ao contrário, entregaram ao público e à Justiça o conhecimento
de condutas que jamais deveriam ter sido adotadas às escondidas. Em
outras palavras, o trabalho jornalístico liderado pelo Intercept
devolveu ao público o que era do público e retirou dos porões da
clandestinidade o que nunca deveria ter estado lá. O público tinha o
direito de saber; as autoridades é que não tinha o direito de esconder o
que tentaram esconder.
Com os meses, passadas as escaramuças verbais (ou não apenas verbais), o
saldo para a Lava Jato ficou ruim, mas o saldo para o jornalismo é
positivo. A cobertura ampla das conversas impróprias foi um acerto de
boa parte da imprensa - aí não devemos contar apenas os veículos que se
associaram ao Intercept, mas também os que repercutiram e debateram, de
boa-fé, sem parti pris, as revelações apresentadas.
Mas há também um saldo negativo a ser contabilizado. Sinais claros de
abusos da Lava Jato já se mostravam desde antes da publicação dos
diálogos escabrosos e não tiveram a cobertura aprofundada. Lembremos
alguns deles.
Em setembro de 2016, um fatídico powerpoint do Ministério Público
mostrou uma tela em que o nome de Lula aparecia como o centro de uma
constelação de ilícitos, sem provas da ligação dos ilícitos a Lula. No
powerpoint aparecia a palavra “propinocracia”, que não consta dos tipos
penais previstos na legislação. Apontei essas e outras inconsistências
numa coluna da revista Época, em 20/9/2016. O que estava por trás
daquele delírio de data show? Não se descobriu a tempo.
Em outro artigo, publicado aqui em 27/10/2016, relembrei outras duas
tratoradas da operação: a desnecessária condução coercitiva pela qual
Lula foi levado a depor no Aeroporto de Congonhas em 4 março de 2016 e a
divulgação, por ato do então juiz Sergio Moro, em 16 de março, de falas
telefônicas entre Lula e Dilma. As falas tinham sido gravadas depois de
expirado o prazo da autorização judicial para a escuta telefônica e,
por isso, no final daquele mês Moro teve de se explicar ao ministro
Teori Zavascki, a quem pediu “respeitosas escusas”. [furtar - furto qualificado - material composto que dizem ser conversas entre o juiz Sérgio Moro e membros da Lava-jato, é apresentado como ato lícito, já que o material era do público e estava sendo a ele devolvido pelos ladrões e receptadores = estes são os que receberam o produto do furto diretamente dos ladrões.
Mas, divulgar uma conversa autêntica, divulgação efetuada por quem autorizou a escuta, havendo apenas o pequeno inconveniente do diálogo divulgado, ter ocorrido minutos após a autorização expirar - se a autoridade fizesse um adendo mantendo a validade da permissão por mais dez minutos estava tudo legal. ]
No mesmo artigo procurei chamar atenção para outros indícios de
autoritarismo. Em carta enviada à Folha de S.Paulo (12 de outubro, pág.
A3) em que protestava contra alguém que o criticara, Moro afirmou que “a
publicação de opiniões panfletárias-partidárias e que veiveriam ser evitadas”.
Ora, que visão era aquela de liberdade de imprensa? Por acaso a opinião
de um juiz federal sobre o que sejam causas “panfletárias-partidárias”,
“preconceito”, “rancor” e “base factual” deveria orientar critérios
editoriais na imprensa? O que ele quis dizer com “deveriam ser
evitadas”? Pretenderia ele censurar a pauta? Ou tudo não teria passado
de um ato falho do juiz que meses depois, em março 2017, usou seus
poderes para constranger um blogueiro a revelar sua fonte?
De novo as interrogações ficaram sem resposta. Não mereceram maiores
investigações jornalísticas. Por quê? De minha parte, tenho uma hipótese
- que, como hipótese que é, terá de ser ainda testada com metodologias e
parâmetros mais finos. Minha hipótese é a seguinte: durante longo
período o tom geral dos principais órgãos de imprensa, com poucas
exceções, tratava as autoridades da Lava Jato não como representantes de
poderes (aos quais o jornalismo tem o dever de lançar um olhar crítico e
investigativo), mas como aliados das redações ou mesmo como sucursais
avançadas das redações no interior da máquina estatal. Como essas
autoridades presenteavam as redações com furos semanais - e eram furos
relevantes, que escancararam capítulos de uma corrupção faraônica, na
casa dos bilhões de dólares -, ganhavam em troca uma simpatia inercial.
Se a hipótese se mostrar verdadeira, o núcleo da chamada imprensa de
qualidade no Brasil terá aderido acriticamente (e, talvez,
inadvertidamente) à estratégia gerenciada pelos líderes da Lava Jato,
uma operação que, sim, ajudou o Brasil contra uma parte da corrupção
sistêmica, mas, como ficaria claro ao final de 2018, abrigava no seu DNA
uma plataforma oculta de ambições partidárias.[?????] Terá havido, então, um
erro de método. Deveríamos dedicar-nos a estudar o assunto.