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domingo, 7 de novembro de 2021

De tudo um porco - Revista Oeste

Evaristo de Miranda

Em 2021, o abate de suínos no segundo trimestre foi o maior desde 1997: 13 milhões de cabeças abatidas, aumento de 8% em relação ao mesmo período de 2020

Presunto ou pernil, costela ou lombo, salame ou mortadela, salsicha ou linguiça, presunto cru ou cozido, paio ou salpicão, panceta ou carne de lata, torresmo ou bacon, codeguim ou chouriço… A carne de porco, consumida in natura ou processada, habita o cotidiano dos brasileiros. Ela é uma das maiores marcas da Península Ibérica na cultura culinária nacional e gera riquezas de Norte a Sul do Brasil. 
 

Ilustração: Revista Oeste/Shutterstock 
 
A carne de porco não oferece risco à saúde, como imaginado décadas atrás. Nas granjas, o porco brasileiro está magro e saudável. A Embrapa até desenvolveu o “porco light”, produzido na região de Passos, em Minas Gerais. Ele tem 31% menos de gordura na carne e no toucinho e 10% a menos de colesterol. A carne suína é a mais consumida no mundo. Supera a bovina e a de frango, apesar da proibição de seu consumo pelo islamismo e judaísmo. 
 
De onde vem essa proibição? Quando o Islã surgiu, no século 7, o porco não era um animal abundante na Península Arábica. O livro sagrado dos muçulmanos, o Corão, incorporou regras dietéticas da lei mosaica. A proibição da carne de porco é mais marcada no Islã. Para alguns, a decisão contra os suínos foi de ordem tática: dar ao Islã um ponto de vista claramente distinto do cristianismo, seu principal adversário. Isso lhe permitiria ganhar apoio dos vizinhos judeus do Oriente Médio. E uma eventual conversão dos judeus ao Islã poderia ser encorajada pela manutenção desse tabu. 
 

 Criação de suínos | Foto: Worawut Saewong/Shutterstock
 
Seja qual tenha sido a razão, o porco na Bíblia é desvalorizado. No Antigo Testamento, ele é tratado como animal impuro, símbolo do mundo pagão e dos inimigos de Israel. 
No Novo Testamento, na parábola do filho pródigo, o jovem, depois de dilapidar todos os seus bens, se torna guardião de porcos, algo estritamente proibido aos hebreus, imagem da sua decadência suprema (Lucas 15:11-32). 
Em outro episódio, sobre uma vara 2 mil de porcos (sic), Jesus lança uma legião de demônios, atendendo ao pedido dos mesmos (Marcos 5:12). E mata por afogamento, demônios e porcos. Uma tragédia, sem falar do impacto ambiental: 2 mil porcos apodrecendo nas águas (Mateus 8:28-34). 
 
Seguindo suas raízes gregas e romanas, os cristãos reabilitaram os suínos. E deles fizeram uma arma para combater o Islã, sobretudo na Península Ibérica. Em Espanha e Portugal, os cristãos atacaram os mouros com a espada numa mão e um presunto, ibérico, na outra. De 711 a 1492, as fronteiras sempre se moveram entre a Espanha cristã e a muçulmana. Nada de grandes explicações teológicas para diferenciar os cristãos. Nessa disputatio bastava dizer: “Criamos e comemos porcos!”. Presuntos, linguiças e pernis eram pièces de résistance. Alguns atribuem essa adesão profunda da culinária ibérica aos suínos e cochinillos a uma identidade cultural de resistência à expansão moura, na qual le plat de résistance foi o suíno. Como os suínos nunca decepcionaram, chegaram aos altares. Na iconografia cristã, um simpático e róseo porquinho é representado ao lado de Santo Antão Abade. Como esse leitão foi parar ali, ao lado do Pai de Todos os Monges? Outra história. 
 
Na Terra de Santa Cruz, os porcos trazidos pelos lusitanos sentiram-se em casa. Produção, consumo e exportação de carne suína vão muito bem, obrigado. O abate em 2020 foi de 49,3 milhões de suínos, um aumento de 6,4% (mais 3 milhões de cabeças) em relação a 2019. O agro brasileiro não improvisa: cria e abate quase 50 milhões de porcos por ano!
 
Evaristo de Miranda - Revista Oeste