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sábado, 19 de março de 2022

AGU pede suspensão do bloqueio do Telegram

Moraes ordenou que aplicativo de mensagens seja bloqueado no Brasil por descumprimento de decisão judicial

A AGU (Advocacia Geral da União) entrou com um pedido contra a decisão do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes de bloquear temporariamente o aplicativo Telegram. Eis a íntegra do documento assinado pelo advogado-geral da União, Bruno Bianco (2 MB).

No texto endereçado à ministra Rosa Weber, a AGU argumenta que o Marco Civil da Internet, usado por Moraes para justificar a sua decisão, garante a suspensão de aplicativos de mensagens somente caso seja comprovada a violação do direito à proteção de registros, de dados pessoais e de comunicações privadas. Todavia, referidos dispositivos legais apontados não respaldam a conclusão tomadapelo STF, disse Bianco, citando parecer da própria relatora.

Weber é relatora de uma ação contra decisões de 1º Instância que determinam a quebra de sigilo de mensagens de investigados no WhatsApp e a suspensão do aplicativo por algumas horas em todo o território nacional.

O advogado-geral da União argumentou que:

  • as sanções previstas no Marco Civil são de natureza administrativa, a ser aplicadas, portanto, após processo administrativo, e não no âmbito judicial”;
  • o bloqueio temporário ou definitivo de aplicativos de mensagem é previsto no caso dedesrespeito aos direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”, mas não é válido no caso de descumprirem uma ordem judicial”, como aconteceu com o Telegram;
  • as atividades que poderão ser suspensas ou mesmo proibidas não são as atividades do aplicativo em si (sua funcionalidade para os usuários), mas apenas as atividades de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, ‘de dados pessoais ou de comunicações’”.

Bianco acrescentou que os usuários do Telegram não pode ser punidos. Ele citou os microempreendedores, “que dependem da utilização de ferramentas como o Telegram para a execução de seus pequenos negócios, ou seja, para suas próprias subsistênciascomo os mais prejudicados pela decisão de Moraes.

Decisões desse teor restará por impor efeitos danosos que não se pode, ainda, mensurar, agregando aos reflexos da crise sanitária [de covid-19], ao menos, insegurança econômica e jurídica”, concluiu Bianco.

DECISÃO DE MORAES
O Telegram entrou na mira da Justiça por não responder a tentativas de contato feitas pelo TSE e não ter representantes comerciais no Brasil.

Na 5ª feira (17.mar), Moraes determinou que o aplicativo de mensagens seja bloqueado no Brasil por descumprimento de decisão judicial. Deu um prazo de 24 horas para as providências necessárias para o bloqueio por parte da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).

Leia também:Decisão de Moraes sobre o Telegram é inadmissível, diz Bolsonaro

  Novo repudia decisão de Moraes de bloquear Telegram

Moraes abre investigação sobre vazamento

A decisão também fixou multa diária de R$ 100 mil contra pessoas físicas e jurídicas que burlarem o bloqueio.

Poder 360 



domingo, 7 de novembro de 2021

De tudo um porco - Revista Oeste

Evaristo de Miranda

Em 2021, o abate de suínos no segundo trimestre foi o maior desde 1997: 13 milhões de cabeças abatidas, aumento de 8% em relação ao mesmo período de 2020

Presunto ou pernil, costela ou lombo, salame ou mortadela, salsicha ou linguiça, presunto cru ou cozido, paio ou salpicão, panceta ou carne de lata, torresmo ou bacon, codeguim ou chouriço… A carne de porco, consumida in natura ou processada, habita o cotidiano dos brasileiros. Ela é uma das maiores marcas da Península Ibérica na cultura culinária nacional e gera riquezas de Norte a Sul do Brasil. 
 

Ilustração: Revista Oeste/Shutterstock 
 
A carne de porco não oferece risco à saúde, como imaginado décadas atrás. Nas granjas, o porco brasileiro está magro e saudável. A Embrapa até desenvolveu o “porco light”, produzido na região de Passos, em Minas Gerais. Ele tem 31% menos de gordura na carne e no toucinho e 10% a menos de colesterol. A carne suína é a mais consumida no mundo. Supera a bovina e a de frango, apesar da proibição de seu consumo pelo islamismo e judaísmo. 
 
De onde vem essa proibição? Quando o Islã surgiu, no século 7, o porco não era um animal abundante na Península Arábica. O livro sagrado dos muçulmanos, o Corão, incorporou regras dietéticas da lei mosaica. A proibição da carne de porco é mais marcada no Islã. Para alguns, a decisão contra os suínos foi de ordem tática: dar ao Islã um ponto de vista claramente distinto do cristianismo, seu principal adversário. Isso lhe permitiria ganhar apoio dos vizinhos judeus do Oriente Médio. E uma eventual conversão dos judeus ao Islã poderia ser encorajada pela manutenção desse tabu. 
 

 Criação de suínos | Foto: Worawut Saewong/Shutterstock
 
Seja qual tenha sido a razão, o porco na Bíblia é desvalorizado. No Antigo Testamento, ele é tratado como animal impuro, símbolo do mundo pagão e dos inimigos de Israel. 
No Novo Testamento, na parábola do filho pródigo, o jovem, depois de dilapidar todos os seus bens, se torna guardião de porcos, algo estritamente proibido aos hebreus, imagem da sua decadência suprema (Lucas 15:11-32). 
Em outro episódio, sobre uma vara 2 mil de porcos (sic), Jesus lança uma legião de demônios, atendendo ao pedido dos mesmos (Marcos 5:12). E mata por afogamento, demônios e porcos. Uma tragédia, sem falar do impacto ambiental: 2 mil porcos apodrecendo nas águas (Mateus 8:28-34). 
 
Seguindo suas raízes gregas e romanas, os cristãos reabilitaram os suínos. E deles fizeram uma arma para combater o Islã, sobretudo na Península Ibérica. Em Espanha e Portugal, os cristãos atacaram os mouros com a espada numa mão e um presunto, ibérico, na outra. De 711 a 1492, as fronteiras sempre se moveram entre a Espanha cristã e a muçulmana. Nada de grandes explicações teológicas para diferenciar os cristãos. Nessa disputatio bastava dizer: “Criamos e comemos porcos!”. Presuntos, linguiças e pernis eram pièces de résistance. Alguns atribuem essa adesão profunda da culinária ibérica aos suínos e cochinillos a uma identidade cultural de resistência à expansão moura, na qual le plat de résistance foi o suíno. Como os suínos nunca decepcionaram, chegaram aos altares. Na iconografia cristã, um simpático e róseo porquinho é representado ao lado de Santo Antão Abade. Como esse leitão foi parar ali, ao lado do Pai de Todos os Monges? Outra história. 
 
Na Terra de Santa Cruz, os porcos trazidos pelos lusitanos sentiram-se em casa. Produção, consumo e exportação de carne suína vão muito bem, obrigado. O abate em 2020 foi de 49,3 milhões de suínos, um aumento de 6,4% (mais 3 milhões de cabeças) em relação a 2019. O agro brasileiro não improvisa: cria e abate quase 50 milhões de porcos por ano!
 
Evaristo de Miranda - Revista Oeste

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Poder Judiciário pressiona por aumento de despesas – Editorial

Valor Econômico

A Justiça brasileira continua morosa e a situação é pior na fase de execução, em especial em questões fiscais

A Câmara dos Deputados aprovou a criação de mais um tribunal federal regional, que será exclusivo para Minas Gerais, na semana passada, apenas um dia depois de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ter divulgado que as despesas do Poder Judiciário superaram os R$ 100 bilhões pela primeira vez na história, em 2019. O levantamento é do relatório “Justiça em Números”, elaborado anualmente pelo CNJ. Como comparação, o gasto foi um pouco inferior aos orçamentos da Educação e da Saúde, de R$ 117 bilhões e R$ 122,6 bilhões, respectivamente, para o ano passado.

Proposta do presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ministro João Otávio Noronha, que está prestes a deixar o cargo, e da bancada de deputados de Minas Gerais, a instalação do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) foi criticada pelo impacto nos gastos do governo em momento de sérios constrangimentos fiscais, quando faltam recursos até para a continuidade do auxílio emergencial, que vem ajudando a população carente durante a pandemia.

Os defensores do novo tribunal federal argumentam que o pleito tem 10 anos e não vai aumentar despesas porque a sede já existe em Belo Horizonte e os cargos serão remanejados da 1ª Região, que atualmente cuida também de Minas Gerais. Difícil acreditar. Emenda apresentada para o projeto, determinando que os gastos de todos os tribunais no próximo ano sejam equivalentes aos valores deste ano, corrigidos apenas pela inflação, acabou rejeitada em votação simbólica. O projeto segue agora para o Senado.

Na sequência, confirmando as suspeitas de aumento de gastos, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que transforma cargos vagos de juiz federal substituto em cargos de juiz de tribunais regionais federais (TRFs), certamente com contracheques maiores e os incontáveis benefícios. A proposta foi aprovada por quase todos os partidos, com exceção do Novo, Psol e Cidadania, os mesmos que se posicionaram conta a criação do TRF-6 neste momento de pandemia.

Os dados do CNJ mostram que os gastos do Judiciário vêm superando a inflação. No ano passado, o aumento foi de 6,7% em comparação com as despesas de R$ 93,7 bilhões de 2018, resultando em um aumento de 2,6% acima da inflação. Os números não incluem o Superior Tribunal Federal (STF). O crescimento foi puxado principalmente pelas despesas com pessoal (2,2% reais). Do total, nada menos do que 90,6% foi destinado ao pagamento de pessoal. O relatório do CNJ explica que os gastos com pessoal compreendem, além da remuneração com magistrados, servidores, inativos, terceirizados e estagiários, todos os demais auxílios e assistências, tais como auxílio-alimentação, diárias, passagens, além da previdência. Apesar de serem apenas 4,1% do quadro de pessoal do Judiciário, juízes, desembargadores e ministros representam 10% de todo o gasto do Judiciário.

Com essa folha, o relatório Justiça em Números calcula que o Judiciário custa R$ 479,16 para cada brasileiro. O número é superior ao registrado na média dos países da Comunidade Europeia, calculado pela Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (Cepej). Pela cotação atual do euro, ficaria ao redor de € 75 por brasileiro, quando a média dos países da Comunidade Europeia era de € 53,57 por habitante, em 2016, o mais recente disponível. Nessa base de comparação, o custo do Judiciário brasileiro é exatamente igual ao do italiano, ligeiramente menor do que o espanhol (€ 79) e mais caro do que o francês (€ 65,88).

O Justiça em Números registrou, também, a maior queda de estoque de processos da série histórica contabilizada pelo CNJ, com início a partir de 2009. O Judiciário chegou, ao fim de 2019, com 77,1 milhões aguardando alguma solução definitiva. O número representa uma redução de 1,5 milhão de processos em trâmite, em relação a 2018. Foi o segundo ano consecutivo em que o relatório mostra uma queda. Apesar disso tudo, a Justiça brasileira continua morosa e a situação é pior na fase de execução, em especial em questões fiscais. Os processos de execução fiscal representam 39% do total de casos pendentes e 70% das execuções pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 87%. O prazo médio de solução desses casos é de 6,5 anos. Já Justiça comum, a taxa de congestionamento é de 68,5%. Uma decisão em primeiro grau leva 2 anos e seis meses; já em segundo grau, 10 meses, ou 300 dias. A média total na Comunidade Europeia era de 192 dias, ou pouco mais de seis meses.

Valor - Editorial


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Os dissidentes da esquerda - Nas entrelinhas

“Acabaram como estranhos no ninho, pois tanto o PDT como o PSB são partidos da esquerda tradicional, com uma lógica de funcionamento que não acolhe as ideias do grupo”


Sete parlamentares do PDT e do PSB protocolaram, ontem, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um processo de reivindicação de mandato. São dissidentes programáticos das respectivas legendas, porque votaram a favor da reforma da Previdência durante a tramitação da matéria na Câmara dos Deputados. Como a legislação determina que o mandato fique com o partido, caso o parlamentar deixe a legenda fora da janela temporária, mas prevê exceções, como a perseguição política, é exatamente este quesito que alegam para mudar de partindo.

Tábata Amaral (SP), Marlon Santos (RS), Flávio Nogueira (PI) e Gil Cutrim (MA), do PDT, e Rodrigo Coelho (SC), Jefferson Campos (SP) e Felipe Rigoni (ES), do PSB, fazem parte de uma nova esquerda que surge na Câmara, democrática e reformista. Tábata, de 25 anos, é uma jovem da periferia de São Paulo que foi estudar ciências sociais em Harvard e voltou militante dos movimentos sociais, principalmente na Educação. Com um discurso político liberal, é a principal estrela do grupo. Logo ao chegar à Câmara, notabilizou-se por interpelar o então ministro da Educação, Ricardo Vélez, numa audiência pública, mas logo entrou em rota de colisão com o PDT, herdeiro do velho trabalhismo de Leonel Brizola.

Foi suspensa pelo comando do partido, com a previsão de que seu caso de infidelidade fosse julgado internamente em dois meses. “Já se passaram mais de três. Não tenho mais diálogo com o PDT. Enviei uma carta ao presidente (Carlos) Lupi pedindo que fosse julgada. Sou ignorada. Não estou podendo atuar de forma efetiva na Câmara, não sou indicada para comissões, nada. Estou suspensa sem previsão de julgamento. É perseguição política”, reclama.

Cego desde os 15 anos, o capixaba Felipe Rigoni é outro ponto fora da curva. Formado em engenharia de produção na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com mestrado em Oxford, na Inglaterra, aos 27 anos também pressionou o ex-ministro Ricardo Vélez por propostas concretas na pasta. Brilhou ao discursar pela primeira vez da tribuna da Câmara. É o primeiro parlamentar com deficiência visual total na Casa.

Quando se filiou ao PSB, havia assinado uma carta conjunta que lhe garantia independência, mas esse acordo não foi cumprido. Segundo ele, o PSB fechou questão contra a proposta da Previdência enviada pelo governo. Depois das modificações no texto feitas durante a tramitação na Câmara, Rigoni decidiu mudar de posição: “Eu tinha minhas ressalvas contra a proposta inicial enviada pelo governo, mas, depois das alterações na Câmara, a reforma ficou muito mais justa.”

Novo bloco
Os sete deputados fazem parte de um movimento de renovação política que surgiu a partir das manifestações de 2013, desaguando na campanha do impeachment de Dilma Rousseff e no tsunami eleitoral que varreu o Congresso, além de eleger o presidente Jair Bolsonaro. Escolheram seus respectivos partidos por certa afinidade política e muita conveniência eleitoral, mas nunca esconderam o desejo de realizar mandatos diferenciados do ponto de vista da atuação parlamentar. Acabaram como estranhos no ninho, pois tanto o PDT como o PSB são partidos da esquerda tradicional, com uma lógica de funcionamento que não acolhe as ideias do grupo.

O Novo, a Rede e o Cidadania disputarão o passe dos dissidentes, mas nenhum dos parlamentares abre o jogo do destino que pretendem tomar. É possível que façam isso em grupo, mas há uma variável nesse processo muito importante: pretendem escolher uma legenda que tenha regras de funcionamento mais democráticas e transparentes. Tábata quer conversar com todas as legendas, mas pleiteia liberdade para defender sua visão de mundo, regras de compliance e prévias para escolher candidatos.

De certa forma, todos são potenciais candidatos a prefeito de suas cidades, pois obtiveram votação para isso, mas quem conhece o funcionamento dos partidos sabe que existe fila para quase tudo. A precedência é uma regra do jogo que precisa ser respeitada. Se essa for a pretensão de alguns, influenciará a escolha da legenda de destino. Ao recorrer à Justiça, os dissidentes também estão estabelecendo um novo paradigma de relacionamento dos parlamentares com os caciques dos partidos.
Caso o pleito seja aceito pelo TSE, se abrirá uma janela de oportunidade para outros insatisfeitos. Tanto no PDT como no PSB, dirigentes atacam os dissidentes, acusando-os de estarem migrando para a direita. Na verdade, está ocorrendo um processo de formação de um novo bloco de centro-esquerda na Câmara, com parlamentares de diversos partidos, cuja influência nas decisões da Casa vem aumentando.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense

 

sábado, 12 de janeiro de 2019

Charada em construção

Profissões inteiras vão se tornando obsoletas por conta dos avanços da inteligência artificial, da impressão em 3D, da robotização e outras mudanças

(Publicado na edição impressa de VEJA)

As coisas seriam relativamente simples no Brasil se todas as preocupações, dúvidas e problemas a resolver se resumissem ao novo governo do presidente Jair Bolsonaro. Mas aí é que está: a vida nem sempre nos dá a oportunidade de lidar só com uma questão de cada vez. Além de tudo o que precisa dar certo aqui dentro, hoje em dia é preciso encarar, também, uma quantidade ainda maior de coisas que têm de dar certo lá fora – e essas coisas, positivamente, não parecem estar a caminho de acabar bem. Trata-se das exigências do “novo pensamento mundial”, ou do “globalismo”, ou alguma outra combinação de palavras parecida – uma espécie de consenso ainda frouxo, mas cada vez mais ativo, que vai se criando na elite europeia e americana sobre como o planeta deveria ser ordenado daqui para frente.

A nova ordem que prescrevem para o mundo vai mal, e nem daria mesmo para esperar que fosse bem, levando-se em conta que inclui praticamente tudo o que deveria estar indo melhor com a humanidade. Mas a complicação realmente não parece estar na quantidade de problemas existentes. Parece, isso sim, estar na qualidade geral das soluções com as quais se pretende tornar o mundo e o homem melhores do que são hoje.

É uma sinuca, no caso particular do Brasil deste momento. O governo Bolsonaro, definitivamente, se declara disposto a fazer o contrário do que o pensamento mundial recomenda para resolver os problemas do universo. Do outro lado, o consenso ora em formação entre os intelectuais, burocratas, governantes e outros “influenciadores” da vida diária do primeiro mundo demonstra um aberto horror a tudo o que o governo brasileiro imagina que vai fazer nos próximos quatro anos. De Bolsonaro já sabemos o que é preciso saber. Do outro lado, porém, o que existe é uma charada em construção. Quando você começa a achar que entendeu alguma coisa na lista de deveres a ser obedecida hoje por pessoas e nações, os deveres mudam, ou entram em choque entre si, ou exigem ações que você não sabe como executar, ou sequer imagina como podem ser executadas. É mais ou menos natural, porque os propositores do novo pensamento não sabem direito, eles próprios, o que querem. 

Nem todos querem as mesmas coisas. A maioria não calcula direito as consequências das propostas que fazem. Acreditam-se capazes de organizar fatos que estão acima e além do seu controle. Não seguem, no fundo, uma ideologia, mesmo porque ainda não se identificou nenhuma ideia de verdade em nada do que prescrevem para o bem geral. Há apenas uma tumultuada coleção de desejos – e a exigência de que sejam removidas do mundo, em geral por atos do governo, todas as situações de frustração, carência e ressentimento que hoje incomodam as consciências.

Não é fácil enxergar com clareza no meio desse nevoeiro. Dá para dizer, em todo caso, que o grande traço de união entre as diversas seitas do novo pensamento é a certeza de que a mãe de todos os pecados do mundo de hoje é a falta de igualdade – tanto entre as pessoas, individualmente, quanto entre as nações. Tudo que há de errado na vida atual se deve, de uma forma ou de outra, à desigualdade; por via de consequência, de acordo com as crenças básicas do consenso mundial que está se formando no mundo rico, a redução ou a eliminação das diferenças levará à solução de todos os problemas que estão aí e não sabemos como resolver – dos quebra-quebras em Paris ao derretimento das geleiras no sul da Patagônia. Quase tudo pode entrar na lista. Guerras tribais na África, massacres de civis na Síria ou a fome no Congo não têm, por exemplo, nenhuma relação com as forças e governos que provocam essas desgraças. São, pelo novo sistema de pensar o universo, resultado da desigualdade e, portanto, têm de ser curadas com mais igualdade. Imigração ilegal em massa para os países bem sucedidos? Escassez de água? Emissões de carbono? É tudo mais ou menos a mesma coisa. Se o mundo fosse mais igual, nada disso existiria.

Como muito pouca gente está disposta a argumentar em favor da desigualdade, basicamente lembrando que esforços desiguais devem resultar em recompensas diferentes, nada mais fácil hoje em dia do que encontrar combatentes da igualdade. Estão por toda a parte. Em geral, acham que a redução do número de pobres se fará através da redução do número de ricos, e nunca da criação de riqueza entre os pobres. Têm uma mal definida hostilidade ao progresso, visto que o progresso não conseguiu eliminar a desigualdade; acham que mais eletricidade ou mais estradas, por exemplo, trazem benefícios desiguais, e portanto são desaconselháveis, sobretudo quando você já tem as duas.

O novo pensamento não gosta da ciência – não admite mais pesquisas e investigações sobre fenômenos considerados fatos já definitivos pelas suas crenças, como o aquecimento global ou a destruição das florestas brasileiras. Não gosta de religião, a não ser do islamismo, que deve ter estímulo, inclusive oficial, para se propagar nos países cristãos do primeiro mundo e aumentar com isso os índices de igualdade religiosa. Não gosta de hábitos nacionais; a grande virtude de hoje é a “diversidade cultural”, que torna um país tanto mais correto quanto mais ele substituir sua cultura pela cultura de outros países. Não gosta das liberdades individuais. Naturalmente, há um declarado horror pelo “agronegócio”, que, segundo a sabedoria predominante, destrói a natureza, produz carne de boi e faz muita gente ganhar dinheiro.

O New York Times e outros centros da nova inteligência mundial estão convencidos, por exemplo, que praticamente toda a produção da agricultura brasileira poderia ser substituída no futuro, e com vantagens, pelo consumo de insetos, capazes de fornecer todos os nutrientes necessários ao organismo humano. Com isso, seria possível eliminar fazendas nocivas ao meio ambiente, que hoje desperdiçam com a produção de alimentos terras que deveriam estar destinadas à florestas. Além disso, utilizam “agrotóxicos” e, eventualmente, perturbam a vida indígena. É mais ou menos a mesma visão que atribui aos “direitos dos animais” importância equivalente aos direitos humanos – isso para não falar nos direitos dos vegetais e da camada de gelo do Polo Norte. De modo geral, consideram a sobrevivência do meio ambiente mais importante que a sobrevivência das pessoas de carne e osso. Numa espécie de cavalo-de-pau filosófico, acham natural que os recursos naturais não devam ser utilizados em favor do bem estar humano; ao contrário, estão convencidos que é obrigação do homem e dos governos não tocar em nada que esteja presente na natureza.

Nada disso parece ter alguma coisa diretamente relacionada com a redução das desigualdades – mas o fato é que todas essas crenças, de um modo ou de outro, são apresentados como parte do mesmo pacote de salvação do mundo que vai sendo embrulhado hoje em dia por funcionários de burocracias como a ONU, Comissão Europeia e outros organismos internacionais, governos de países ricos, universidades do primeiro mundo, a mídia em geral, o cantor Bono Vox e por aí afora. Como de costume, as dificuldades mais complicadas que a construção da igualdade enfrenta estão nas suas incompatibilidades com o mundo real. Desde o início, o movimento parece cada vez mais tentado a aceitar a ideia de que é possível obter o bem estar independente do trabalho. Há bem estar na Alemanha, por exemplo, e miséria na África? A solução é abrir a Alemanha à imigração dos africanos – onde se espera que passem a desfrutar da mesma prosperidade sem ter feito os últimos 100 anos de trabalho que os alemães fizeram para chegar até onde estão hoje. É essa, por sinal, a grande ideia que sustentou a aprovação do recente acordo internacional declarando que todos os habitantes do planeta têm agora o direito legal de imigrarem para o país que quiserem.

Pouca ou nenhuma atenção é dedicada nisso tudo à criação de mecanismos de produção capazes de gerar as riquezas a serem distribuídas para eliminar a desigualdade. Distribuir a fortuna dos ricos parece ser uma ótima ideia até você ver que só dá para fazer essa distribuição uma vez – depois que é consumida a riqueza acaba, e é preciso criar outra em seu lugar, para continuar havendo alguma coisa a distribuir. Não está claro quem vai ficar encarregado dessa tarefa. Outro problema é a tecnologia – quanto mais progresso se cria, mais se aumenta a desigualdade, e a menos que se declare uma moratória no avanço tecnológico o futuro promete a multiplicação acelerada de desiguais. Hoje as revoluções industriais se sucedem mais de pressa que as fases da Lava Jato; na verdade, ninguém sabe direito em qual revolução, exatamente, estamos hoje. Quarta? Quinta?

O certo é que a cada avanço mais gente se vê excluída dos benefícios do progresso; nem todos têm capacidade para ocupar um emprego no Silicon Valley ou seus equivalentes através do mundo. Os que não têm cacife para isso se veem, cada vez mais, relegados às ocupações menos atraentes, mais frustrantes, pior remuneradas. Profissões inteiras vão se tornando obsoletas, por conta dos avanços da inteligência artificial, da impressão em terceira dimensão, da robotização e outras mudanças desagregadoras do mundo profissional como ele é hoje. Para que pilotos de jato se os aviões voarão sozinhos, e com muito maior segurança, de Nova York a Tóquio? Para que médicos, se o computador vai fazer um transplante de coração melhor do que eles? Para que o marceneiro, se a impressão em 3D lhe entrega sua cadeira pronta e sem defeito nenhum?

É um mundo no qual só as pessoas com alto grau de conhecimento serão realmente cidadãos de primeira classe. Por mais que as leis digam que todos são iguais, e por mais que as elites pensantes escrevam programas estabelecendo regras de igualdade, as diferenças estarão cada vez mais evidentes. É para essas realidades que o Brasil tem de se preparar. Será preciso, nesta caminhada, contar com ideias muito melhores do que as que apareceram até agora.

J R Guzzo - Publicado na Edição Impressa de Veja  
Edição da semana 2617 16/01/2019 
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terça-feira, 9 de maio de 2017

Fim de ciclo

Em maio de 1982, PT fez comício de Lula em Curitiba. Ele continua candidato, 35 anos depois. Antes novidade política, agora é autodefesa em praça pública de um réu por corrupção

A banda passou devagar na Rua das Flores, calçadão central de Curitiba, abrindo caminho para um grupo com faixas e cartazes improvisados de um partido desconhecido (contava dois meses de registro). Surgiu, então, a comitiva com um barbudo sorridente no meio. Seguiram para o comício na Boca Maldita, onde a tradição curitibana recomenda que se fale mal de tudo e de todos, num exercício de liberdade. Na estridência daquele ajuntamento havia novidade, o prelúdio do ocaso da ditadura.

Nesta semana completam-se 35 anos dessa manifestação de Lula e do PT, em Curitiba. Outra, mais ruidosa, está prevista para amanhã. Entre ambas sobram evidências de uma estética do desalento. Naquele maio de 1982, desfilavam em defesa de utopias do igualitarismo, sempre vitais à política, sufocadas pelo regime ditatorial. Desta vez, a marcha é para comício de autodefesa de um político réu por corrupção, um direito na democracia. Mudaram o país e o mundo, e Lula continua candidato no mesmo palanque de 12 mil dias atrás. É caso singular de concentração de poder dentro de um partido: já gastou 49% dos seus 71 anos de vida impondo-se como única alternativa ao PT, até para escolha do substituto eventual, como foi com Dilma Rousseff. 

O PT reduziu-se ao papel de alavanca da defesa de Lula num processo criminal. A mais organizada máquina partidária acaba de completar três décadas e meia de história prisioneira de candidato único. Tornou-se símbolo de um sistema falido de organização e método de se fazer política. Fixou-se no ponto extremo da monotonia de um sistema partidário fragmentado e impeditivo à formação e renovação de lideranças. Há indícios da petrificação petista. Pela primeira vez, por exemplo, o partido amarga uma estagnação no número de filiações. O 1,5 milhão de alistados que possuía em março do ano passado, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, continuou imutável no último abril. Agregou somente 3,8 mil novos seguidores, nove vezes menos que o PSDB e o PMDB no período. 

No mesmo palanque há 35 anos, Lula agora lidera a repulsa nas pesquisas eleitorais. Com 45% de rejeição, segundo o Datafolha, só é superado por Michel Temer, chefe de um governo-tampão, que ele e o PT escolheram duas vezes como vice-presidente, num pacto eleitoral com o PMDB de Eduardo Cunha, Renan Calheiros e Romero Jucá, entre outros.[e Temer não tem a menor pretensão, o menor interesse,  em ser candidato em 2018.]
 
A mesma pesquisa indica que prevalece a percepção (32%) de que Lula comandou o mais corrupto dos governos. Injusta ou não, é indicativa da corrosão da imagem do eterno candidato numa democracia que, em três décadas, só elegeu quatro presidentes pelo voto direto (Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma) metade deposta por impeachment. 

A obsolescência do que está aí se torna ainda mais evidente na proliferação de novos partidos, organizações e movimentos, como é o caso do Agora!, Novo, Nova Democracia, Muitos, Acredito, Brasil 21, Livres, Ativistas, entre outros. Procuram reduzir o distanciamento do eleitorado, com uso de tecnologias para participação direta — inclusive para projetos de leis de iniciativa popular, como permite o aplicativo recém-desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade, do Rio. 

O tempo passou na janela. Aparentemente, vem aí um mandado de despejo aos antigos mandarins da política brasileira.

Fonte: José Casado, jornalista - O Globo