A história se passa na Espanha do século XVI e os heróis parecem ter errado de século. Dom Quixote não realiza seus sonhos, a não ser em sonhos outra vez
Dom Quixote e Sancho Pança encantam leitores
há mais de quatro séculos. O livro de Miguel de Cervantes foi eleito o
melhor romance do mundo nos últimos 400 anos. A votação deu-se na
Noruega, em 2002, e o júri foi composto por 100 respeitados autores de
54 países. Dom Quixote obteve 50% a mais de votos do que o segundo colocado, Em busca do tempo perdido.
A pesquisa, realizada em 2002, integrou uma campanha dos editores
noruegueses para incentivar a leitura dos clássicos diante das atrações
da televisão, de vídeos e de jogos de computador.
Dez escritores tiveram mais do que um livro
de sua autoria na lista, como foi o caso dos russos Leon Tolstói e
Fiódor Dostoiéviski, do judeu-checo Franz Kafka, dos britânicos William
Shakespeare e Virgínia Woolf, do alemão Thomas Mann, dos franceses
Marcel Proust e Gustave Flaubert e do colombiano Gabriel García Márquez.
Do total dos eleitos, 75% eram europeus, 50% foram escritos no século
XX e 10% foram de autoria feminina. Os motivos para o sucesso multissecular de Dom Quixote
são muitos, mas um dos principais é a corda bamba em que razão e
loucura dialogam ao longo do livro por meio de curiosas proposições e
tramas bem engendradas, temperadas pela sátira aos romances de
cavalaria, em cartaz até o século anterior e que então desabaram para o
terreno do deboche e do riso.
Dom Quixote enlouquece de tanto ler
aqueles romances. E vive alucinado, em tudo contrariando a sabedoria
popular do camponês que entretanto aceitou ser seu escudeiro porque tem o
sonho de tornar-se governador de uma ilha. Quer dizer, os dois são
alucinados, cada um a seu modo. A história se passa na Espanha do século XVI
e os heróis parecem ter errado de século. Dom Quixote não realiza seus
sonhos, a não ser em sonhos outra vez. Mas Sancho Pança torna-se
governador perpétuo de uma ilha de mil habitantes. Deveria ser uma brincadeira dos senhores
locais, um duque e uma duquesa, mas os habitantes são mantidos na
ignorância disso justamente para que Sancho Pança seja mais
convenientemente enganado.
E o que acontece? O camponês rude e de modos
simples governa com sabedoria e bom senso, resolvendo vários problemas,
numa época em que o Legislativo, o Judiciário e o Executivo são poderes
na mão de um homem só.
Seu governo dura dez dias. Seus atos, alguns
dos quais muito rudes, são apoiados pelo povo. Muito satisfeito por ter
realizado o sonho que o tirou da placidez e da rotina de seus dias na
roça, Sancho escreve para a mulher Teresa Pança contando as boas
notícias. Escreve é modo de dizer, porque o governador é analfabeto. Ele
manda escrever… Tudo vai bem, mas de repente rebenta uma
guerra. Tal como sua investidura no governo, também a guerra é falsa.
Sancho, então, toma uma decisão muito sábia, como, aliás, foram as
anteriores para resolver problemas de assédio sexual e calote de
dívidas. Ele reconhece que não saberá liderar seu povo numa guerra e
renuncia. Sua renúncia não é como a de Jânio Quadros,
num simples bilhetinho. Ao contrário, faz um discurso dizendo que cada
um deve fazer aquilo que sabe e não ambicionar o que não sabe fazer.
E como ele reconhece que não sabe governar,
despede-se do duque e da duquesa com uma grandeza e um espírito público
extraordinários. Diz ele em sua despedida: “Cheguei a esse
governo por vossa grandeza, sem nenhum merecimento. Entrei pobre e
pobre saio. Nada ganhei, ao contrário dos governadores de outras
regiões. Enfrentei os inimigos com coragem e os venci pelo valor do meu
braço. Reconheço que governar é uma carga muito grande para mim. Volto a
servir a Dom Quixote”.
Fica demonstrado nas entrelinhas da renúncia
e da despedida de Sancho que governar é naquela época um ofício da
aristocracia que pessoas da condição de Sancho Pança não sabem exercer.
Quatro séculos depois, a sabedoria de um homem simples como Sancho Pança ainda é muito rara.
Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
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