Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER
Mostrando postagens com marcador Dom Quixote de La Mancha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Dom Quixote de La Mancha. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 11 de março de 2019

Quem governa melhor: Sancho Pança ou Dom Quixote?

A história se passa na Espanha do século XVI e os heróis parecem ter errado de século. Dom Quixote não realiza seus sonhos, a não ser em sonhos outra vez


Dom Quixote e Sancho Pança encantam leitores há mais de quatro séculos. O livro de Miguel de Cervantes foi eleito o melhor romance do mundo nos últimos 400 anos. A votação deu-se na Noruega, em 2002, e o júri foi composto por 100 respeitados autores de 54 países. Dom Quixote obteve 50% a mais de votos do que o segundo colocado, Em busca do tempo perdido. A pesquisa, realizada em 2002, integrou uma campanha dos editores noruegueses para incentivar a leitura dos clássicos diante das atrações da televisão, de vídeos e de jogos de computador.

Dez escritores tiveram mais do que um livro de sua autoria na lista, como foi o caso dos russos Leon Tolstói e Fiódor Dostoiéviski, do judeu-checo Franz Kafka, dos britânicos William Shakespeare e Virgínia Woolf, do alemão Thomas Mann, dos franceses Marcel Proust e Gustave Flaubert e do colombiano Gabriel García Márquez. Do total dos eleitos, 75% eram europeus, 50% foram escritos no século XX e 10% foram de autoria feminina. Os motivos para o sucesso multissecular de Dom Quixote são muitos, mas um dos principais é a corda bamba em que razão e loucura dialogam ao longo do livro por meio de curiosas proposições e tramas bem engendradas, temperadas pela sátira aos romances de cavalaria, em cartaz até o século anterior e que então desabaram para o terreno do deboche e do riso.

Dom Quixote enlouquece de tanto ler aqueles romances. E vive alucinado, em tudo contrariando a sabedoria popular do camponês que entretanto aceitou ser seu escudeiro porque tem o sonho de tornar-se governador de uma ilha. Quer dizer, os dois são alucinados, cada um a seu modo.  A história se passa na Espanha do século XVI e os heróis parecem ter errado de século. Dom Quixote não realiza seus sonhos, a não ser em sonhos outra vez. Mas Sancho Pança torna-se governador perpétuo de uma ilha de mil habitantes. Deveria ser uma brincadeira dos senhores locais, um duque e uma duquesa, mas os habitantes são mantidos na ignorância disso justamente para que Sancho Pança seja mais convenientemente enganado.
E o que acontece? O camponês rude e de modos simples governa com sabedoria e bom senso, resolvendo vários problemas, numa época em que o Legislativo, o Judiciário e o Executivo são poderes na mão de um homem só.

Seu governo dura dez dias. Seus atos, alguns dos quais muito rudes, são apoiados pelo povo. Muito satisfeito por ter realizado o sonho que o tirou da placidez e da rotina de seus dias na roça, Sancho escreve para a mulher Teresa Pança contando as boas notícias. Escreve é modo de dizer, porque o governador é analfabeto. Ele manda escrever…  Tudo vai bem, mas de repente rebenta uma guerra. Tal como sua investidura no governo, também a guerra é falsa. Sancho, então, toma uma decisão muito sábia, como, aliás, foram as anteriores para resolver problemas de assédio sexual e calote de dívidas. Ele reconhece que não saberá liderar seu povo numa guerra e renuncia.  Sua renúncia não é como a de Jânio Quadros, num simples bilhetinho. Ao contrário, faz um discurso dizendo que cada um deve fazer aquilo que sabe e não ambicionar o que não sabe fazer.

E como ele reconhece que não sabe governar, despede-se do duque e da duquesa com uma grandeza e um espírito público extraordinários. Diz ele em sua despedida: “Cheguei a esse governo por vossa grandeza, sem nenhum merecimento. Entrei pobre e pobre saio. Nada ganhei, ao contrário dos governadores de outras regiões. Enfrentei os inimigos com coragem e os venci pelo valor do meu braço. Reconheço que governar é uma carga muito grande para mim. Volto a servir a Dom Quixote”.
Fica demonstrado nas entrelinhas da renúncia e da despedida de Sancho que governar é naquela época um ofício da aristocracia que pessoas da condição de Sancho Pança não sabem exercer.
Quatro séculos depois, a sabedoria de um homem simples como Sancho Pança ainda é muito rara.

Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra



terça-feira, 20 de março de 2018

Balas traiçoeiras

No submundo da segurança no Rio de Janeiro, as regras de sobrevivência são as mesmas da lei da selva 

O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, estão começando a se enrolar nas próprias declarações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), no Rio de Janeiro. Jungmann resolveu segurar um fio desencapado ao dar explicações sobre as cápsulas das balas encontradas no local do crime, supostamente desviadas de um lote comprado pela Polícia Federal, que podem ter sido usadas exatamente para embaralhar as investigações e pôr na berlinda a Polícia Federal. Etchegoyen descartou de pronto a possibilidade de o crime ser uma retaliação à intervenção federal na segurança fluminense, quando também pode ser exatamente o contrário.

Todo crime deixa um rastro e tem uma motivação, é o beabá de qualquer investigação. A partir daí, o escritor noir tanto pode ter a trama de um mistério (quando ninguém sabe quem é o assassino), como pode construir o roteiro de um triller (quando todo mundo sabe, mas o mocinho, não). Em 1944, o escritor norte-americano Raymond Chandler, um dos craques dos romances policiais, escreveu um ensaio intitulado A simples arte de matar, que consta do primeiro volume de uma coletânea de contos de sua autoria, publicada pela L&PM. Nele explica o fascínio do herói noir.  “Nas ruas sórdidas da cidade grande, precisa andar um homem que não é sórdido, que não se deixa abater e que não tem medo. Neste tipo de história, o detetive deve ser esse homem. Ele é o herói; ele é tudo. Ele deve ser um homem completo e um homem comum e, contudo, um homem fora do comum. (…) Se houvesse outros como ele, o mundo seria um lugar mais seguro para se viver, sem que com isso se tornasse desinteressante a ponto de não valer a pena viver nele.” É o perfil de seu personagem mais conhecido, o detetive durão Philip Marlowe.

Jungmann e Etchegoyen não têm perfil do herói noir. Os ministros não vão desvendar o mistério. Aliás, é mais provável que o submundo do crime no Rio de Janeiro conheça os assassinos e os mandantes do crime, como nos roteiros de suspense. Foi tudo muito planejado, muito profissional, não houve sequer simulação de latrocínio, que é padrão dos crimes de mando. Quem mandou matar, no contexto da intervenção, desafiou o interventor federal, general Braga Netto, e os dois ministros, que já entraram naquela fase em que é melhor não falar mais nada sobre o que aconteceu, até que se tenha uma resposta efetiva quanto à autoria do crime.

Longo caminho
Foi longo o caminho para se chegar aos romances policiais noir. Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, que Milan Kundera considera a cortina que se abriu para a realidade na Idade Média, foi escrito 1.500 anos depois de Satíricon, de Petrônio. Chandler publicou seu primeiro grande romance policial, O sono eterno, em 1939, aos 50 anos. Como outros escritores norte-americanos, foi soldado, jornalista, empresário e detetive, entre outras atividades. Seu mestre foi Dashiell Hammett, o autor de Falcão Maltês.


Chandler, como outros de seus colegas expulsos de Hollywood pelo macartismo, fez a crítica dos maus costumes políticos e da corrupção policial nos Estados Unidos. Não há pessoas boas e inocentes envolvidas no mundo do crime. E o herói noir não é um cara todo certinho. A diferença é que não vendeu a alma ao diabo. Ele também é um predador, que a cada passo calcula a vantagem de se aproximar da presa sem perder o elemento surpresa. No mundo animal, quando o perigo de ter sua presença notada já não supera a vantagem de chegar mais perto, o predador ataca. Esse é um mecanismo fisiológico que visa obter o máximo de chance de sucesso para qualquer tipo de terreno ou de presa.

No submundo da segurança no Rio de Janeiro, as regras de sobrevivência são as mesmas da lei da selva. Quanto mais perto chegar sem despertar suspeita, maior a chance de ser bem-sucedido na caçada. No livro Informações sobre a vítima (Companhia das Letras), o ex-delegado paulista Joaquim Nogueira conta a história de um policial movido pelo desejo de justiça, que investiga por conta própria o assassinato de um colega. Suas diligências rastreiam os propósitos secretos de uma dezena de suspeitos no submundo paulistano, entre os quais um padrasto estuprador, o traficante e sua mãe hipertensa, o bicheiro generoso, a escrivã sexy, para ao final descobrir que um amigo comum da vítima era o mandante do crime. Quase que também morre por causa disso.

Luiz Carlos Azedo - CB