O Estado de S.Paulo
Medo da morte, medo da insegurança social e econômica. Como viver sob tais circunstâncias?
Talvez não nos tenhamos dado conta devidamente de que o mundo mudou. O
que vivíamos antes não se faz mais presente senão sob o modo da
lembrança e do anseio, enquanto o que nos espera está sendo apenas
vislumbrado. Falamos uma linguagem fruto de nossa condição anterior,
como quando verbalizamos a nossa situação sob o modo da pré e da
pós-pandemia, como se este período atual fosse passageiro, a ser apenas
atravessado. Se há, estrito senso, um pós-pandemia, ele se situa posteriormente à
descoberta, industrialização e distribuição maciça de uma nova vacina,
capaz de controlar esta doença, se é que não teremos no futuro outros
eventos do mesmo tipo.
Religiosos diriam que voltamos a ter pandemias, tempestades, pragas
bíblicas como a dos gafanhotos e mortes que se acumulam em escala
planetária. Moralmente, as relações humanas estão mudando, seja na
quarentena, seja no desrespeito a regras que sejam melhores para a saúde
de todos. A transgressão não deixa de ser um reconhecimento de que há
uma nova normalidade, por mais que possamos ter dificuldades de
admiti-la.
Seria tentado a dizer que antes de um “pós-pandemia” viveremos ainda
bons meses, nãos se sabe quantos, de um lento e doloroso processo de
saída, em que os caminhos a serem trilhados estão sendo somente
vislumbrados. E nesta travessia as relações humanas estão sendo
transformadas, comparecendo outros valores e formas de comportamento. A
pandemia nos põe diante dos limites da condição humana e do seu próprio
significado.
A finitude da condição humana, enquanto questão, surge com a irrupção do
coronavírus, atingindo o corpo mesmo das pessoas e confrontando-as com a
ameaça da morte súbita, imprevista. As pessoas são extraídas do seu
cotidiano, passam a viver uma reclusão forçada e são levadas, queiram ou
não, à introspecção. Algumas se voltam para a solidariedade, o
fortalecimento da família, outras se sentem desorientadas ou mesmo
abandonadas. Dentre elas aparecem diferentes demandas, como a ajuda
familiar, o apoio dos amigos, até as mais propriamente “políticas”,
decorrentes de pedidos de maior intervenção estatal.
A sociedade foi atingida por um inimigo presente e invisível, que tudo
controla e ameaça, não deixa nenhum espaço para o descuido. Qualquer um
pode ser atingido, sem sequer se dar conta de que o seu destino pode ter
mudado, quiçá para sempre. Milhões de pessoas são afetadas pela crise
econômica, o desemprego é estratosférico, a renda familiar cai
vertiginosamente, as empresas menores não têm como se sustentar, cria-se
um clima geral de insegurança. De um lado, o medo da morte; de outro, a
insegurança social e econômica. Como viver sob tais circunstâncias?
Atentemos para o uso de máscaras e a relação que assim se estabelece com
o outro. Crianças nas escolas, na volta às aulas, serão obrigadas a
usar máscaras e a guardar uma distância sanitária dos colegas. O que
isso significa? Significa que o outro não é uma companheira ou um
companheiro, mas uma ameaça, nela e nele serão vistas a doença e a
morte. Num shopping, num comércio, numa empresa, numa repartição pública
surge o medo do outro, o sentimento de uma ameaça constante. Os valores
morais sofrem uma grande transformação, seja ela consciente ou não. Em
todo caso, as relações humanas estão sendo profundamente alteradas.
Pensa-se hoje na retomada da economia, como se estivéssemos na iminência
de uma volta à normalidade anterior, com, por exemplo, os mesmos
patamares de renda e de consumo. Há uma questão que se impõe: será que
as pessoas voltarão a consumir da mesma maneira? Será que o consumo como
valor não teria ele mesmo se tornado problemático? Talvez não baste a
reabertura de shoppings e de comércios se essa mudança de valores e de
comportamentos não for pensada e outras mensagens não forem
transmitidas, baseadas na vida e na valorização dos outros.
Na quarentena as pessoas aprenderam a viver com menos bens materiais e
apreciando mais as relações humanas nos microcosmos em que foram
obrigadas a se inserir, como a família, o casamento, as relações
amorosas e os amigos. Desapareceu a noção do entretenimento como era
antes: ida a bares, restaurantes, lojas, shoppings, cinemas. Surgiram
outros entretenimentos, como os streamings, a leitura de livros e a
conversa – ou mesmo o silêncio – com o próximo. Todavia, para além
desses entretenimentos, perguntas relativas à doença, à morte e à vida
ganharam relevância. Sentimentos como o medo e a insegurança tomaram
conta das pessoas.
Nos Salmos já aparecia a ideia de que “o início da sabedoria é o medo do
Senhor”, que pode também ser lida em nosso contexto como uma indagação
sobre o sentido mesmo da condição humana no recurso a um Senhor que
venha em nosso auxílio se o soubermos reconhecer. Em Hegel aparece a
mesma ideia: o “início da sabedoria é o medo (da morte violenta)”; em
nossa condição, o medo da morte que pode irromper a qualquer momento sob
a forma do coronavírus. Não caberia uma indagação sobre o saber e os
nossos valores?
Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia - O Estado de S. Paulo