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terça-feira, 27 de outubro de 2020

Enquanto militares se calam, diplomatas vão da perplexidade à indignação - Eliane Cantanhêde

O Estado de S. Paulo

Combater o bom combate

De um lado, militares são tidos como corajosos e durões e, de outro, diplomatas carregam a fama de medrosos e melífluos, mas esses preconceitos estão sendo colocados à prova no governo Jair Bolsonaro. Enquanto generais resmungam em privado contra humilhações impostas aos seus pares, embaixadores engrossam a crítica à política externa e aos delírios do chanceler Ernesto Araújo.

Militares e diplomatas são carreiras de Estado, com provas de acesso e cursos que vão deixando muita gente boa para trás, até afunilar nos melhores dos melhores. Ambas são baseadas em hierarquia, disciplina e... cuidado ao falar. O que mais se espera de militares e diplomatas, porém, é paixão pelo Brasil e prioridade ao interesse nacional, porque governos vêm e vão, o Estado fica.

São conhecidos a explicação dos militares de alta patente e o interesse dos de baixa patente ao apoiar o capitão para presidente. Uns, por ideologia. Os outros, pela expectativa de ter no poder quem passou a vida, na caserna e no Congresso, cuidando de privilégios corporativos. Agora, Bolsonaro humilha [sic] o general da ativa Eduardo Pazuello, que se submete candidamente: “um manda, o outro obedece”. Muito se lê que os militares ficaram indignados, mas só Santos Cruz lembrou, ou advertiu, que hierarquia e disciplina “não significam subserviência” e tudo não se resume a “mandar varrer a entrada do quartel”. O general da reserva Paulo Chagas fez coro, ensinando que a ética militar entre superiores e subordinados não pode ser o simples “um manda e o outro obedece”.

E como assimilar que Ricardo Salles chame o general da reserva Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e seja apoiado pelo filho do presidente? No fim, Salles pediu desculpas “pelo excesso”, ao que Ramos prontamente aquiesceu: “as diferenças estão apaziguadas”. “Diferenças”?
[queriam  uma guerra entre os dois? hierarquia e disciplina são palavras que não devem ser consideradas apenas pelo que consta dos dicionários; interpretá-las pelos dicionários é, para dizer o mínimo, falta de noção.] 
Com Pazuello, bastou uma visitinha do presidente. Com Ramos, uma volta de moto pelo DF. Assim, coube aos políticos, à frente Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, tomar as dores de Ramos e, por tabela, dos militares: “Não satisfeito em destruir o meio ambiente, (Salles) resolveu destruir o próprio governo”, desferiu Maia.[a sensatez e a aversão à traição recomendam: é preferível ser inimigo de um militar do que ter a amizade de um político;
- os dois parlamentares citados são arautos de que a Consituição deve ser cumprida e tentam a todo custo uma reeleição que a mesma Constituição proíbe - claro uma interpretação criativa resolve tudo.]

Assim como nas Forças Armadas, há no Itamaraty, ao lado da hierarquia e da disciplina, o instinto de sobrevivência e a disputa por postos e promoções. Mas cresce a fila de embaixadores “da reserva” dizendo o que precisa ser dito. No artigo “O grande despautério”, no Jornal do Brasil, o ex-embaixador na Itália Adhemar Bahadian resumiu o discurso do chanceler para os novos diplomatas: “as palavras foram como pedras mal-educadas, rudes e tingidas de ódio” e “a diplomacia brasileira (...) foi chicoteada como em navio negreiro”. 

(........)

O tom vai da perplexidade à indignação diante da subserviência ao governo Trump, a opção por um lado na guerra entre EUA e China, as caneladas em parceiros tradicionais, a prevalência da ideologia sobre o interesse nacional e o retrocesso em foros internacionais. Ao combater o bom combate, esses nossos embaixadores trazem luz e realidade não só para os diplomatas, mas para todos os corajosos e durões na defesa do Brasil.

Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo