Advogados de grandes traficantes estão condenados ou denunciados por ligações com quadrilhas
Lavagem de dinheiro e compra de armas são alguns dos crimes praticados pelos defensores
Centro
da disputa. Um condomínio de luxo é construído no terreno na Praia da Pipa cuja
posse foi reivindicada por Fernandinho Beira-Mar: ex-advogada teria sido
laranja - Gustavo Mitilene
Um
terreno de 17 mil metros quadrados pertinho do mar, em uma das praias mais
famosas do país — a da Pipa, no Rio Grande do Norte —, está no centro de uma
inusitada disputa entre Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, e a
advogada Cecília Mara Machado, ex-defensora do traficante. Vendido por R$ 1,2
milhão para a construção de um luxuoso empreendimento imobiliário, o imóvel é
considerado pelo Ministério Público Federal (MPF) uma evidência de que Cecília
atuou como laranja da organização criminosa de Beira-Mar.
Cecilia
Machado nega ter recebido terreno de Fernandinho Beira-Mar - Ailton de
Freitas - 27.03.2003
O
traficante, a advogada e o marido dela são denunciados por lavagem de dinheiro
e organização criminosa em processo que tramita em Rondônia. A denúncia foi
baseada em documentos apreendidos pela Polícia Federal durante a Operação
Epístola. Entre as provas, há um bilhete escrito a mão por Beira-Mar, no qual
ele reclama ser o dono do terreno, avalia o imóvel em R$ 1,5 milhão e determina
que a advogada devolva tudo que é dele. Segundo a denúncia, o bandido repassou
o imóvel a Cecília para esconder que era o verdadeiro dono. A advogada nega, e
diz que o terreno, revendido em 2016, já pertencia ao marido quando começou a
advogar para Beira-Mar.
A curiosa
disputa é apenas um dos casos em que advogados foram condenados, denunciados ou
estão respondendo a processos por envolvimento com os maiores criminosos do
país, para os quais trabalham ou já trabalharam. Lavagem de dinheiro é o crime
mais comum atribuído a eles. Além de Cecília, três defensores de Beira-Mar são
acusados de colaborar ativamente para que o mais perigoso condenado do país
derrubasse as rígidas barreiras do presídio federal de segurança máxima de
Porto Velho e expandisse seus negócios para Suriname, Bolívia e Paraguai
durante os cinco anos em que passou naquela unidade. Ele hoje está em Mossoró.
Em comum,
todos esses defensores continuam em situação regular junto à Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), autorizados a trabalhar normalmente, como se não
fossem investigados por crimes.
ADVOGADO
ENVOLVIDO EM COMPRA DE ARMAS
O
criminalista Alexandre Raggio Gritta Hage, chamado de Ítalo pela quadrilha de
Beira-Mar, responde a processo sob a acusação de ter atuado diretamente na compra
de armas e drogas no Paraguai para o traficante. A participação de Hage foi
descoberta após a confrontação dos dados das agendas dos aparelhos telefônicos
do filho de Beira-Mar, Luan Medeiros da Costa. Na Operação Epístola, a PF
obteve provas de que Hage, além de comprar armas, cuidava de entregas de
dinheiro para criminosos. Funcionaria como uma espécie de tesoureiro do bando.
No processo, o criminalista é tratado como uma espécie de relações-públicas do
grupo no tráfico internacional de drogas. “Embora
seja advogado, há, nos autos, provas suficientes de que realiza atividades que
transcendem o exercício da advocacia”, diz a denúncia do Ministério Público.
Curiosamente,
Hage é defendido na ação por Wellington Corrêa da Costa Júnior, um dos mais
antigos defensores de Beira-Mar, que também já figurou no rol de culpados. Ele
e o advogado Lydio da Hora, seu sócio em um escritório de advocacia no Rio,
foram presos em flagrante em novembro de 2004, quando pagavam R$ 100 mil em
espécie a policiais federais para impedir a prisão de Marcos José Monteiro
Carneiro, então tesoureiro da quadrilha. Condenado
inicialmente a dez anos de prisão, Wellington conseguiu a redução em um terço
e, depois, a prescrição de seu crime. Não deixou de advogar. Foi exatamente
Hage, que agora é réu na Operação Epístola, quem o defendeu na ocasião. Lydio
da Hora, que já morreu, também foi condenado por tentar subornar os policiais,
e conseguiu a prescrição do crime em razão da idade. Os dois constam como donos
de dois postos de gasolina em Itaguaí e Campo Grande, na Zona Oeste. A irmã de
Beira-Mar, Alessandra da Costa Portella Vanderlei, é outra que esteve presa.
Foi indiciada por lavagem de dinheiro em Rondônia, mas continua em situação
regular na OAB. Ela foi acusada de comandar, com a mulher de Beira-Mar,
Jacqueline Moraes da Costa, a administração dos bens do traficante que estão em
nome de laranjas.
Segundo o
MPF, o advogado Eliseu dos Santos Paulino também participa da hierarquia da
quadrilha. Ele foi identificado pelo setor de inteligência da Penitenciária de
Porto Velho como o Doutor Tamandaré, homem de confiança, responsável pela
comunicação do bandido com o núcleo duro da facção criminosa e pela articulação
entre os laranjas do bando para a lavagem de dinheiro.
Flagrante.
Lydio da Hora (à esquerda) e Costa Júnior: entrega de dinheiro a bando -
Reprodução de TV
Em todas
as passagens de Beira-Mar por unidades federais nos últimos 11 anos, os radares
da Polícia Federal e do Departamento Penitenciário Nacional (Depen)
interceptaram esforços de advogados para burlar a fiscalização. Nesse período,
pelo menos oito integrantes de seu estafe de defesa foram acusados de
envolvimento com o crime organizado: dois deles estão condenados, cinco
respondem a ações penais e um, João Kolling, se encontra desaparecido.
CONDENADA
COM CARTEIRINHA DA ORDEM
A
advogada Gersy Mary Menezes Evangelista, por exemplo, teve seu nome lançado no
rol dos culpados na passagem de Beira-Mar pela Penitenciária Federal de
Catanduvas, no Paraná. Ela foi presa como pombo-correio, em 22 de novembro de
2007, e sentenciada pelo juiz Sérgio Moro a quatro anos e oito meses de prisão
e 800 dias-multa. Segundo o juiz, ela “traiu gravemente os ditames legais e
éticos que norteiam o nobre ofício da advocacia, servindo-se de sua condição
privilegiada para a prática de crimes”.
Embora
exista um mandado de prisão contra a advogada em aberto desde maio do ano
passado, Gersy continua atuando como advogada para criminosos da mesma facção
de Beira-Mar. Ela e outros dois condenados nesse processo estão em situação
regular na OAB. Outros
chefes do tráfico do Comando Vermelho adotaram a mesma estratégia de usar
advogados para ocultar patrimônio. Beatriz da Silva Costa de Souza foi condenada
por servir de laranja para a compra, em 2011, de um imóvel no Méier para
Rosemeri Fernandes de Lima, mulher do traficante Marco Antônio Pereira Firmino,
o My Thor. Na época, o bandido estava preso na Penitenciária Federal de
Mossoró, no Rio Grande do Norte.
A polícia
provou que foi a mulher dele quem escolheu e passou a morar no apartamento,
que, na escritura, estava no nome da advogada. Beatriz foi condenada a quatro
anos de prisão em regime aberto, mas conseguiu permutar sua pena para albergue
domiciliar. Hoje, trabalha normalmente para criminosos da facção de My Thor.
O Globo