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domingo, 21 de maio de 2023

Na nova concepção de democracia, criticar autoridades é proibido -Gazeta do Povo

 

Hugo Freitas - Ideias

 “Esse tempo da liberdade de expressão como um valor absoluto acabou no Brasil”- Flávio Dino

Flávio Dino, ministro da Justiça: “Esse tempo da liberdade de expressão como um valor absoluto, que é uma falcatrua, acabou no Brasil, foi sepultado. Se os senhores não derem respostas que consideramos compatíveis e ajustadas, tomaremos providências”| Foto: EFE/ Isaac Fontana

 

Caso Dallagnol

 

Na nova doutrina política, a democracia, ao invés de ser o regime do povo (demo + cracia), passa a ser visualizada como um sistema em que quem dita as regras é uma pequena elite qualificada -  Foto: Eli Vieira com Midjourney

Em 2022, a Justiça Eleitoral ordenou a derrubada de um vídeo de campanha do então candidato a deputado Deltan Dallagnol. O motivo foi ele ter dito no vídeo que, embora o STF fosse “uma casa essencial para a democracia”, tinha “infelizmente” se tornado “a casa da mãe Joana, uma mãe para os corruptos do nosso país, com a honrosa resistência de parte dos seus integrantes”, listando em seguida decisões do tribunal que considerava exemplos disso.

Esta crítica dura não se diferenciou em nada dos discursos hiperbólicos e exaltados que sempre caracterizaram as campanhas eleitorais em democracias (exceto, talvez, por ter feito questão de comprimir, dentro dos poucos segundos alocados para o candidato, muito mais parênteses e ressalvas para deixar claro que a crítica não era ao Tribunal como instituição, nem a todos os seus integrantes; propagandas eleitorais não costumam trazer tantas nuances). E, à semelhança de toda invectiva em propagandas eleitorais, esta não veio sem propósito: o candidato emendou logo em seguida um pedido de voto, com a promessa de que, se o eleitor lhe concedesse mandato, ele o usaria para reformar legislativamente os critérios de seleção de futuros ministros do STF, o que vendia como remédio.  
Tudo típico de uma campanha eleitoral em democracias: denúncia hiperbólica da situação presente, voto no candidato como solução, aurora prometida como consequência. Nada de novo.

No entanto, a Justiça Eleitoral não enxergou desta forma. Citou uma resolução instituída pelo TSE (a de n.º 23.610, de 2019) que proibia qualquer propaganda eleitoral de “atingir órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública”. Norma esta que (instituída, a meu ver, extrapolando os limites da lei a ser regulamentada) causa (ou deveria causar) choque a qualquer um que entenda a ideia de democracia.

Ocorre que há uma nova concepção de democracia em cena.

O que a democracia era
Antes de, aproximadamente, 2016, havia um consenso: a democracia é justamente, por definição, o lugar onde quem “exerce autoridade pública” pode ser legitimamente “atingido”, para usar o termo empregado pelo TSE na resolução (e idêntico ao usado pelo STF para definir o objeto do Inquérito das Fake News, que investiga críticos do Tribunal). 
Em democracias, aquele que exerce autoridade pública pode não só ser atingido moralmente em sua reputação, o que é o meio empregado (sendo nisto que consiste o debate público e campanha eleitoral), mas também atingido de forma ainda mais grave como objetivo disto, sendo apeado do poder, com os enormes danos que isso acarreta. A democracia é o regime onde o cidadão pode pretender livremente “atingir” os sistemas estabelecidos, com a esperança de que ruam e sejam substituídos por novos.
 
O fato de certos órgãos de Estado não serem eleitos não os torna imunes a isso, pois mesmo o funcionamento deles deriva das leis vigentes e está sujeito a reformas.  
Numerosos candidatos do PSOL, por exemplo, sempre defenderam a extinção da Polícia Militar no Brasil, denunciando-a e a seus integrantes como estruturalmente violentos – e deveriam ter toda a liberdade democrática de continuar a fazê-lo, mesmo “atingindo” e ofendendo órgãos e indivíduos que “exercem autoridade pública”, nas temerárias palavras do TSE. Ou o PSOL deveria ser proibido de “atingira Polícia Militar em suas propagandas?

O que agora dizem que a democracia é
No entanto, em data recente, o antigo consenso parece ter sido abandonado subitamente pelo consenso inverso. Um dos marcos desta mudança é o livro “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicado em 2018, embora haja outros expoentes. Por esta nova doutrina política, a democracia, ao invés de ser o regime do povo (demo + cracia), passa a ser visualizada como um sistema em que quem dita as regras é uma pequena elite qualificada, sistema este que se preserva graças à louvável ação de gatekeepers (guarda-portões ou guardiães de entrada) que filtram os inputs da plebe para que só as medidas desejáveis pela elite sejam implantadas.

Um exemplo disto seriam as elites dirigentes partidárias, que, segundo os autores, deveriam ter o poder para vetar candidatos a presidente desejados pelo povo, mas que não fossem do seu agrado; ou a imprensa profissional, que deveria restringir a entrada, no debate de ideias, apenas às ideias adequadas.

Ainda conforme esta doutrina, um novo agente político que conseguir trespassar os portões e penetrar-se na estrutura (facilitado por novos meios de comunicação diretos com o povo e alheios ao controle pelos gatekeepers, como a internet, os smartphones e as redes sociais, popularizados justamente em meados da década de 2010) e invectivar verbalmente contra os demais agentes de tal sistema (isto é, tentar “atingi-los”) é, tendencialmente, antidemocrático e deve ser removido. A situação justificaria que a competição democrática usual fosse suspensa, e toda divergência, abandonada, em nome da formação de um grande cartel atravessando o espectro político – uma “frente ampla”, como se passou a chamar no Brasil –, com o objetivo de expulsar o intruso e obter um retorno ao status quo ante.

Criminalização da crítica
Quaisquer que sejam os méritos deste modelo teórico, o fato é que o livro de Levitsky e Ziblatt foi mais uma lenha numa grande fogueira teórica contemporânea – que inclui também a teoria do “discurso de ódio” – voltada aos perigos da palavra. Ao afirmarem um distante nexo causal entre a palavra proferida e um dano futuro, estas teorias têm legitimado, na prática, a repressão da fala em vários âmbitos.

Ziblatt e Levitsky, em seu livro, ressalvaram que a reação à força intrusa deveria agir sempre dentro da legalidade
No entanto, aconteceu o que sói acontecer com as bíblias, que é terem algumas de suas prescrições sumamente ignoradas pelos que se dizem seus maiores devotos. 
Assim sendo, no Brasil, inquéritos ilegais preexistentes contra falas, os quais, até então, não tinham sido justificados à luz desta doutrina (mas sim por alegações muito mais prosaicas, como defender a honra de ministros do STF), passaram a receber apoio efusivo dos setores letrados do Brasil – os antigos gatekeepers produzindo muitas vítimas, tudo justificado em nome da democracia.
 
A própria resolução já mencionada do TSE pode ser citada como exemplo pontual de inúmeras iniciativas desde então em torno de uma mesma tendência: a de criminalizar a crítica
O exemplo mais recente é a ordem de oitiva de representantes do Telegram em delegacia, em razão de uma mensagem crítica da empresa contra o PL 2.630, de 2020 (PL da Censura). 
O ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou sumariamente a remoção da mensagem, sob pena de suspensão das atividades do Telegram em território nacional. Uma de suas justificativas foi de que a crítica veiculada representava “agravamento dos riscos à segurança [...] do próprio Estado Democrático de Direito”.

O ministro não esclareceu o suposto nexo causal. Em contraste, é bastante fácil enxergar nexo causal entre censurar conteúdos críticos a atos do Estado, submetendo em seguida os responsáveis a persecução penal, e uma redução da capacidade do povo de se manifestar e influir nos rumos do país.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. - Coluna Gazeta do Povo - IDEIAS

 

quarta-feira, 10 de julho de 2019

A Moro tudo, menos o papel de bobo


O ex-juiz e o coletivo da Lava Jato repetem o erro do PT e insistem na desqualificação das informações

[vedação constitucional ao tipo de 'provas' apresentadas, conflito cronológico, entre outras 'falhas', desqualificam as informações.]

O ministro Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato decidiram se defender das acusações que derivam das mensagens divulgadas pelo The Intercept Brasil desqualificando o seu conjunto. Como os textos teriam sido obtidos a partir de uma ação ilegal, não mereceriam crédito. Falta combinar com quem lê os diálogos e não acredita que o fim justifica os meios. O ministro Edson Fachin pode não ter acreditado na autenticidade do “aha uhu o Fachin é nosso” atribuído ao procurador Deltan Dallagnol. Mesmo duvidando, Fachin parece ter-lhe dado uma resposta hiperbólica:
“Juízes também cometem ilícitos e também devem ser punidos. (...) E assim se aplica a todos os atores dos Poderes e das instituições brasileiras, incluindo o Ministério Público.” 


[com o devido respeito ao ilustre articulista, destaco que o inciso LVI, artigo 5º da CF somado à primeira frase do penúltimo parágrafo dessa matéria - com o reforço da inexistência de cadeia de custódia a garantir a integridade e originalidade do material divulgado - desqualificam as 'informações' - tornando até desnecessário aprofundar o desmonte do que já nasceu desmontado, ou seja, 'o escândalo que encolheu'.

Há conflito cronológico no material divulgado. O jornalista José Nêumanne em seu Blog publicado no Estado de S. Paulo, segunda dia 1º, em Post intitulado 'o barco pirata de Verdevaldo', informa:   No sábado, 29, o blogueiro ianque meteu os pés pelas mãos e atribuiu a uma das mensagens “reveladas” data que ainda não havia transcorrido'. 
Informação que não teve o devido destaque na grande imprensa, exceto sua republicação na Revista Veja, Blog do Augusto Nunes.]
 
A estratégia negacionista destina-se a evitar a discussão do conteúdo das mensagens que se transformaram em denúncia de parcialidade. Coisa parecida fez o PT quando a Lava Jato começou a expor seus malfeitos. Não só o fim justificava os meios, como era tudo uma conspiração que chegava ao braço clandestino do governo americano. Lula acabou na cadeia e continua repetindo a mesma cantilena. Trata-se de converter todas as questões a um jogo de sim ou não. Se a pessoa acredita em Lula, deve acreditar numa conspiração. Se uma pessoa acredita em Moro e no coletivo da Lava Jato, deve acreditar noutra conspiração. A ideia deu errado para o PT e está dando errado para Moro. Cinquenta e oito por cento dos entrevistados pelo Datafolha consideraram inadequada sua conduta. Enquanto isso, a percentagem de pessoas que consideram justa a condenação de Lula está em 54%, o mesmo patamar de abril, quando as armações reveladas pelo Intercept eram desconhecidas. Muita gente concorda com as sentenças e condena o comportamento de Moro. O mundo de sim e não só existe na cabeça de quem quer receber atestados de onipotência ou de infalibilidade.

Até hoje não apareceu um só fato relevante que permita duvidar da autenticidade das mensagens reveladas pelo Intercept. Verificações parciais confirmaram a veracidade de alguns textos. Num caso, uma procuradora disse que não se reconhecia num diálogo. O Intercept mostrou de forma convincente como conseguiu identificá-la. Até agora o material divulgado reuniu centenas de informações que poderiam demonstrar uma fraude. Bastaria um conflito cronológico para que a névoa que hoje paira sobre Moro se mudasse para cima do Intercept. Em 1983 a revista alemã Stern comprou por milhões de marcos os “Diários de Hitler”. Um renomado historiador atestou a autenticidade dos manuscritos. Na primeira hora surgiu uma pergunta: como Hitler poderia ter escrito as entradas dos dias seguintes ao 20 de julho de 1944, quando sofreu um atentado e foi ferido no braço? Daí em diante, testes químicos e investigações paralelas mostraram que o diário era uma fraude.

No caso das mensagens do Intercept não há um manuscrito, e as conversas poderiam ter sido editadas. Vá lá, que seja. Mas Moro não lembra de nada, nadinha. Como ministro da Justiça, tornou-se um figurante de eventos, até mesmo vestindo camisas de um time de futebol. (Apesar da amnésia, Moro lembrou-se de pedir desculpas ao Movimento Brasil Livre por causa de uma indelicadeza.) Nenhum procurador se lembra de coisa alguma. O apagão coletivo zomba da inteligência alheia quando se sabe que diversas pessoas já se reconheceram nos diálogos. (O PT também não sabia das roubalheiras.)

Nunca é demais lembrar, pode-se fazer de tudo pela Lava Jato e por Sergio Moro, até mesmo sustentar ele foi imparcial. O que não se pode fazer é papel de bobo.


Elio Gaspari, jornalista - O Globo e Folha de S. Paulo