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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Terror, jornalismo e propaganda



Na sociedade do espetáculo, as democracias enfrentam o desafio de equilibrar o direito à informação com a segurança pública e o combate ao terrorismo
Comecemos pelo que não é novidade: o terrorismo é uma forma de propaganda. Sempre foi. O terrorismo dos vietcongues contra o imperialismo americano nos anos 1960 era propaganda. Trinta anos antes dos vietcongues, os terroristas que se reivindicavam do sionismo para explodir bombas em defesa da criação do Estado de Israel também faziam propaganda. No Brasil, no final da década de 1960, Carlos Marighela escreveu em seu Manual do guerrilheiro urbano: “O terrorismo é uma arma que o revolucionário não pode abandonar. (...) A coordenação das ações da guerrilha urbana, incluindo cada ação armada, é a principal forma de fazer propaganda armada”.

Hoje não é diferente. O terrorismo dos tempos atuais, que quer destruir toda a democracia ocidental, também é propaganda, mas apresenta uma novidade: sua propaganda se serve dos meios de comunicação da democracia que ele pretende dizimar. Ao promover chacinas, os terroristas conseguem se promover nos órgãos de imprensa da sociedade que declaram ser sua inimiga. Se você gosta de contradições, eis aqui uma das maiores do nosso tempo.

Em meio a tanto horror, há uma boa notícia. Finalmente, quando já são passados 15 anos no atentado contra o World Trade Center, em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001 – transmitido ao vivo, por horas e horas, nas televisões do mundo inteiro –, a imprensa de boa qualidade, tanto na Europa quanto na América, começa a se perguntar o que é que se pode fazer a respeito. É positivo que as redações se questionem se publicar a foto do autor de um atentado não contribui para glorificá-lo. A ficha caiu. Os jornalistas já sabem que vêm sendo instrumentalizados pela propaganda do terror. A má notícia é que o jornalismo sozinho não dará conta de resolver uma contradição de dimensões muito maiores que a própria instituição da imprensa. Estamos falando aqui de uma contradição maior, muito maior, que uma rede mundial de televisão ou mesmo que a internet inteira. Na verdade, uma contradição é do tamanho da democracia ocidental.

Essa democracia se assenta sobre uma balança de equilíbrio difícil entre liberdades e proteções à privacidade, entre direito à informação e segurança pública, entre a livre expressão e as restrições necessárias ao discurso do ódio. O cidadão tem o direito de saber nome e sobrenome de quem está por trás dos atos terroristas. Acontece que todo direito atendido cobra seu preço e, nesse caso, o preço pode ser a difusão das causas dos agressores. A notícia bombástica de um atentado se converte em campanha promocional a favor de seus autores.

Resolver isso não será fácil. A contradição entre liberdade e ordem, como vai ficando evidente, não se resume aos domínios do jornalismo. Ela alcança e se instala na base do estado de direito. Quando bem resolvida, a contradição resulta num balanceamento virtuoso. Quando mal resolvida, vira um fator de atraso (como nos regimes autoritários) ou de caos (como nas coletividades desgovernadas).

O pior é que essa contradição não se esgota aí. Ela vai muito além do ordenamento jurídico, vai além do equilíbrio entre princípios fundamentais e abarca os domínios daquilo a que Vargas Llosa deu o nome de “civilização do espetáculo” (e, antes dele, com mais precisão, Guy Debord denominou de “sociedade do espetáculo”). No espetáculo contemporâneo, a imagem é tudo e, sem exagero, vale mais do que a vida. Na sociedade do espetáculo, ser invisível ou sentir-se invisível é o mesmo que não existir. Quando um adolescente mata outro para roubar-lhe um par de tênis não quer proteger os pés do asfalto escaldante. O que ele busca é uma marca que o torne alguém digno de ser notado, admirado e desejado. Ao tomar posse daquela marca, daquela mercadoria idolatrada, sente que escapou da invisibilidade e conquistou a glória de ser visível.

Agora, pensemos esses adolescentes que fuzilam seus colegas de classe, semana sim, semana não, em atos que são terroristas em sua forma e desprovidos de sentido político em seu conteúdo. O perfil dos criminosos é recorrente: são garotos mais ou menos crescidos, que se sentem desprezados, e que descobrem que, se matarem muita gente de uma vez só, quebrarão o cerco da invisibilidade e serão consagrados pelos holofotes. Trocarão sua vida por isso – quase todos se matam no final. Para eles, além da morte, existe o estrelato.

O terror decifrou esse segredo maligno de nossas democracias e aprendeu a recrutar para suas fileiras esse tipo de voluntários. Graças a sua propaganda, que também opera pelas redes sociais com maestria notável, o terror se abastece da frustração, do desamparo e da invisibilidade torturante a que as cintilantes sociedades ocidentais condenam muitos de seus adolescentes sem futuro. Alguns desses acreditam que, se virarem terroristas suicidas, atingirão o estrelato na mesma mídia que os ignorava de modo tão prepotente. 

Como ironia suplementar, as vítimas do terror potencializam a propaganda por meio de uma profusão de imagens que reforçam o culto dos criminosos. O paradoxo parece insolúvel.  Pelo menos, o debate começou. Até aqui, os jornalistas estão fazendo perguntas mais básicas, que levam a respostas mais ou menos fáceis. A cobertura sensacionalista ajuda a impulsionar a propaganda terrorista e ajuda a fabricar novos militantes do terror? É claro que sim. A saída, então, seria parar de noticiar esses atentados e omitir completamente a identidade de seus autores? A resposta é não. E aí? O que fazer?

Do ponto de vista do jornalismo, a solução passa por dar mais – e não menos – cobertura ao terrorismo. Essa cobertura, porém, há de ser crítica, e não conduzida por imagens (involuntariamente) laudatórias. A partir de agora, a cobertura deveria incluir a crítica não apenas da imprensa, mas também da “civilização do espetáculo” e, principalmente, do “respeitável público”, que adora aplaudir shows excitantes de destruição e de sangue nas telas eletrônicas assim como adora votar em candidatos que prometem segurança absoluta e que prometem entregar para as massas uma “vida real” previsível e fora do alcance dos terroristas. O jornalismo está desafiado a ser menos barulhento e mais inteligente.

Não será simples. A mídia está enredada por essa imensa contradição, a tal contradição que é muito maior que o jornalismo. Ao primeiro sinal de fumaça, o circo das câmeras se instala, em histeria progressiva, como quem saboreia e serve um manjar de inebriantes emoções e sabores. As telas eletrônicas mordem e oferecem a isca do terror, com apetite, sem refletir.

Tomara que, ao menos a partir de agora, se tiver coragem de se pôr em xeque, a imprensa ajude a sociedade a se pensar um pouco. Pensar, eis o verbo do princípio, o verbo mais potente. A democracia se fez por obra do pensamento – não por obra da violência, como muitos acreditam. Agora, a única solução contra o terror – essa forma pura da violência – passa pelo pensamento destemido.

Fonte: Época -  Eugênio Bucci é jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP