Na sociedade do espetáculo, as democracias enfrentam o
desafio de equilibrar o direito à informação com a segurança pública e o
combate ao terrorismo
Comecemos pelo que não é novidade: o terrorismo é uma forma de propaganda.
Sempre foi. O terrorismo dos vietcongues
contra o imperialismo americano nos anos 1960 era propaganda. Trinta anos
antes dos vietcongues, os terroristas que se reivindicavam do sionismo para
explodir bombas em defesa da criação do Estado de Israel também faziam
propaganda. No Brasil, no final da década de 1960, Carlos Marighela
escreveu em seu Manual do guerrilheiro urbano:
“O terrorismo é uma arma que o
revolucionário não pode abandonar. (...) A coordenação das ações da guerrilha
urbana, incluindo cada ação armada, é a principal forma de fazer propaganda
armada”.
Hoje não é diferente. O terrorismo dos
tempos atuais, que quer destruir toda a democracia
ocidental, também é propaganda, mas apresenta uma novidade: sua
propaganda se serve dos meios de comunicação da democracia que ele pretende
dizimar. Ao promover
chacinas, os terroristas conseguem se promover nos órgãos de imprensa da
sociedade que declaram ser sua inimiga. Se você gosta de
contradições, eis aqui uma das maiores do nosso tempo.
Em meio a tanto horror, há uma boa
notícia. Finalmente, quando já são passados 15 anos
no atentado contra o World
Trade Center, em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001
– transmitido ao vivo, por horas e
horas, nas televisões do mundo inteiro –, a
imprensa de boa qualidade, tanto na Europa quanto na América, começa a se
perguntar o que é que se pode fazer a respeito. É positivo que as redações se questionem se publicar a foto do autor de
um atentado não contribui para glorificá-lo. A ficha caiu. Os jornalistas
já sabem que vêm sendo instrumentalizados pela propaganda do terror. A má
notícia é que o jornalismo sozinho não dará conta de resolver uma contradição
de dimensões muito maiores que a própria instituição da imprensa. Estamos
falando aqui de uma contradição maior, muito maior, que uma rede mundial de
televisão ou mesmo que a internet inteira. Na verdade, uma contradição é do tamanho da democracia ocidental.
Essa democracia se assenta sobre uma balança de
equilíbrio difícil entre liberdades e proteções à privacidade, entre
direito à informação e segurança pública, entre a livre expressão e as
restrições necessárias ao discurso do ódio. O cidadão tem o direito de saber nome e sobrenome de quem
está por trás dos atos terroristas. Acontece que todo direito
atendido cobra seu preço e, nesse caso, o
preço pode ser a difusão das causas dos agressores. A notícia bombástica de um atentado se converte em campanha
promocional a favor de seus autores.
Resolver isso não será fácil. A
contradição entre liberdade e ordem, como vai ficando evidente, não se resume
aos domínios do jornalismo. Ela alcança e se instala na base do estado de
direito. Quando bem resolvida, a contradição resulta num
balanceamento virtuoso. Quando mal resolvida, vira um fator de atraso (como nos
regimes autoritários) ou de caos (como nas coletividades desgovernadas).
O pior é que essa contradição não se esgota aí. Ela vai muito além do
ordenamento jurídico, vai além do equilíbrio entre princípios fundamentais e
abarca os domínios daquilo a que Vargas Llosa deu o nome de “civilização do espetáculo”
(e, antes dele, com mais precisão, Guy Debord denominou de “sociedade do
espetáculo”). No
espetáculo contemporâneo, a imagem é tudo e, sem exagero, vale mais do que a
vida. Na sociedade do espetáculo, ser invisível ou sentir-se
invisível é o mesmo que não existir. Quando um adolescente mata outro para
roubar-lhe um par de tênis não quer proteger os pés do asfalto escaldante. O
que ele busca é uma marca que o torne alguém digno de ser notado, admirado e
desejado. Ao tomar posse daquela marca, daquela mercadoria idolatrada, sente
que escapou da invisibilidade e conquistou a glória de ser visível.
Agora, pensemos esses adolescentes que fuzilam seus colegas de classe, semana
sim, semana não, em atos que são terroristas em sua forma e desprovidos de
sentido político em seu conteúdo. O
perfil dos criminosos é recorrente: são
garotos mais ou menos crescidos, que se sentem desprezados, e que descobrem que, se matarem muita gente de uma vez só,
quebrarão o cerco da invisibilidade e serão consagrados pelos holofotes. Trocarão
sua vida por isso – quase todos se matam no final. Para eles, além da morte, existe o
estrelato.
O terror decifrou esse segredo maligno
de nossas democracias e aprendeu a recrutar para suas fileiras esse tipo de
voluntários. Graças a sua propaganda, que também opera pelas redes sociais
com maestria notável, o terror se abastece da
frustração, do desamparo e da invisibilidade torturante a que as cintilantes
sociedades ocidentais condenam muitos de seus adolescentes sem futuro.
Alguns desses acreditam que, se virarem terroristas suicidas, atingirão o
estrelato na mesma mídia que os ignorava de modo tão prepotente.
Como ironia
suplementar, as vítimas
do terror potencializam a propaganda por meio de uma profusão de imagens que
reforçam o culto dos criminosos. O paradoxo parece insolúvel. Pelo menos, o debate começou. Até aqui, os
jornalistas estão fazendo perguntas mais básicas, que levam a respostas mais ou
menos fáceis. A
cobertura sensacionalista ajuda a impulsionar a propaganda terrorista e ajuda a
fabricar novos militantes do terror? É claro que sim. A saída,
então, seria parar de noticiar esses atentados e omitir completamente a
identidade de seus autores? A resposta é não. E aí? O
que fazer?
Do ponto de vista do
jornalismo, a solução passa por dar mais – e
não menos – cobertura ao terrorismo. Essa
cobertura, porém, há de ser crítica, e não conduzida por imagens (involuntariamente) laudatórias. A partir de agora, a cobertura deveria incluir a crítica
não apenas da imprensa, mas também da “civilização
do espetáculo” e, principalmente, do “respeitável
público”, que adora aplaudir shows excitantes de destruição e de sangue nas
telas eletrônicas assim como adora votar em candidatos que
prometem segurança absoluta e que prometem entregar para as massas uma “vida real” previsível e fora do alcance
dos terroristas. O jornalismo está desafiado a ser menos barulhento e mais
inteligente.
Não será simples. A mídia está enredada
por essa imensa contradição, a tal contradição que é muito maior que o
jornalismo. Ao primeiro sinal de fumaça, o circo das câmeras se instala, em
histeria progressiva, como quem saboreia e serve um manjar de inebriantes
emoções e sabores. As telas eletrônicas mordem e oferecem a isca do terror, com
apetite, sem refletir.
Tomara
que, ao menos a partir de agora, se tiver coragem de se pôr em xeque, a
imprensa ajude a sociedade a se pensar um pouco. Pensar, eis o verbo
do princípio, o verbo mais potente. A democracia se fez por obra do
pensamento – não por obra da violência, como muitos
acreditam. Agora, a única solução contra o terror – essa forma pura da
violência – passa pelo pensamento destemido.
Fonte:
Época - Eugênio Bucci é jornalista e professor da ESPM
e da ECA-USP