J. R. Guzzo
Suprema Corte não poderia ter cárcere nenhum, nem estar envolvida, nunca, num episódio como esse
A morte de Cleriston Pereira da Cunha, um dos presos nos tumultos do dia 8 de janeiro em Brasília, é o sinal mais alarmante da situação de desordem que o STF criou no País com sua decisão de tornar-se um braço da justiça penal, delegacia de polícia e guarda penitenciária, tudo ao mesmo tempo.
Cleriston
estava preso há quase onze meses no presídio da Papuda, sem julgamento,
por força de uma prisão preventiva que nunca foi encerrada. Precisava
de cuidados médicos urgentes, com internação em hospital, pelo menos
desde o fim de fevereiro; uma médica de Brasília, em laudo oficial,
informou à autoridade, no dia 27 daquele mês, que o preso corria “risco de morte” se continuasse na prisão.
Seu advogado, com base nesse atestado, pediu que fosse liberado para
fazer tratamento urgente de saúde. O próprio Ministério Público, enfim,
pediu no dia 1º. de setembro a soltura de Cleriston, alarmado com a
deterioração do seu estado de saúde.
O relator do processo, o ministro Alexandre de Moraes,
ignorou o laudo, o pedido da defesa e a solicitação do MP.
Na última
segunda-feira, aos 45 anos de idade e com duas filhas, Cleriston morreu
no pátio da Papuda.
Existe
algo profundamente errado numa sociedade quando um cidadão morre num
cárcere da Suprema Corte de justiça. Ela não poderia ter cárcere nenhum,
nem estar envolvida, nunca, num episódio como esse.
Mas o STF se tornou
responsável pela gestão do Código Penal, comanda o processo de cidadãos
que legalmente não pode processar e decide se um preso tem ou não tem
problemas de saúde – ou se deve ou não ir para o hospital. Fica também
responsável, aí, pela sobrevivência física dos seus presos, como se
fosse uma diretoria de presídio.
Como
poderia ser diferente?
A única pessoa no mundo que pode tomar qualquer
decisão sobre os mais de 1.000 réus do quebra-quebra de janeiro,
transformado pelo STF em “tentativa de golpe de Estado”, é o ministro
Alexandre de Moraes – nem o Papa Francisco pode fazer alguma coisa a
respeito.
O resultado obrigatório de uma situação dessas é que a culpa
por tudo o que acontecer de errado com qualquer pessoa sob a sua
custódia vai ser unicamente do STF, sempre.
É uma aberração – a mais
chocante que o Poder Judiciário já impôs ao Brasil.
A
tentativa de defesa do STF neste caso é mais um rompimento flagrante
com o raciocínio lógico – algo que se tornou comum, aliás, no julgamento
das perturbações que o Supremo vem causando há anos na ordem do país.
Os argumentos, basicamente, se resumem a sustentar que a culpa pela
morte de Cleriston é do próprio Cleriston.
Ao participar dos “atos
golpistas” - coisa jamais demonstrada, pois ele nunca chegou a ser
julgado – a vítima “assumiu os riscos” de morrer na prisão.
Como
assim? Cleriston não morreu por ter sido acusado de tomar parte na
baderna de Brasília, ou porque foi preso.
Morreu porque o STF não deixou
que ele saísse da cadeia para fazer tratamento médico indispensável.
Também não estava pedindo privilégio nenhum: bicicleta ergométrica
privada, menu especial, home theater na cela, nada disso.
Só
queria ir para o hospital, com base num laudo médico oficial - o que era
seu direito e obrigação dos carcereiros.
Alexandre de Moraes não deu
permissão; ninguém mais poderia ter dado, no mecanismo de demência
criado no Brasil de hoje pelo STF.
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A
sociedade brasileira está tomada por uma doença séria – a convicção de
que os “bolsonaristas” não são seres humanos, ou cidadãos como os
demais, e, portanto, não devem ter direitos civis.
Ninguém diz que é
assim, mas é exatamente assim que muita gente pensa, e é com essas
crenças que age. A própria palavra foi transformada num insulto. No caso
de Cleriston, o procedimento-padrão foi dizer: “Morreu um
bolsonarista”. Não morreu um cidadão brasileiro a quem o STF estava
obrigado a prestar atendimento médico de emergência.
Foi só mais um
“bolsonarista”, ou “fascista”, ou “golpista”. Aí vale tudo, e nada está
errado. Um país que aceita como normal esse tipo de deformação está, de
fato, precisando de tratamento urgente.
J. R. Guzzo, colunista - O Estado de S. Paulo