IstoÉ
Quem não está lá nem desconfia da sinopse de angústias desses humildes desvalidos, o contingente populacional classificado por institutos oficiais na condição de carência alimentar extrema, consumidos pela privação, cujas vidas são uma experiência de risco em alta cadência, rotineiramente. As crianças desnutridas, que mais sofrem, com seus corpos miúdos, pernas mirradas, braços de tão magros estendidos como asas sem serventia, remela nos olhos entre insetos, reclamam no choro instintivo (manhã, tarde e noite) por um prato de alimento sólido.
Uma refeição honesta, quem sabe! No amplo universo dos desesperados sociais brasileiros, viver com fome é realidade constante. Ao menos 10,3 milhões deles estão no momento sem nada para comer, segundo a mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada semana passada. Uma barbaridade! Número que tende a piorar com a pandemia, depois de um incremento recente de mais de 3,1 milhões de necessitados na mesma condição, agravando um quadro que já é vergonhoso e inaceitável no País que se autoproclama “celeiro do mundo”, detentor do maior cinturão verde planetário, onde tudo que planta dá, com área cultivável de dimensões continentais. A verdade do evento trágico é deveras pior. Atualmente, segundo o levantamento, 36,7% dos lares brasileiros — isso mesmo! — têm dificuldade para garantir qualidade e quantidade de alimentos a todos os integrantes da família. Atente para o drama: está se falando de mais de um terço, quase a metade das casas no País, onde falta comida suficiente para seus membros.
É suportável aceitar tamanha indigência? Talvez até para não chocar em demasia uma sociedade acostumada ao descaso, os famintos são, eufemisticamente, enquadrados em três níveis de “insegurança alimentar” — todas elas abomináveis, mas que tendem a abrandar o choque de quem não compreende a dimensão do desastre social, de proporções épicas, agora em curso. Na escala, existem as famílias que não podem comprar o suficiente para sustento e passam aperto.
No pelotão intermediário é considerado restrição alimentar “moderada” o constrangedor estratagema de pular refeições.
E no grau extremo, não há mesmo nada o que comer, muitas vezes por dias, e a mendicância, apelando nas ruas, segue como ultimo subterfúgio. É desolador aceitar, mas a fome por aqui adquire rosto e move um Brasil mais comum do que muitos imaginam. Por que falhamos em providências essenciais e prementes para boa parte da população? Como pudemos chegar a esse grau de desamparo? A face mais arrasadora e ultrajante da calamidade alimentar está no contraste da consciência de líderes, senhores do Estado, que negam o destino comum a tantos brasileiros. O mandatário Jair Bolsonaro, por exemplo, é o primeiro a desdenhar do infortúnio: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, disse recentemente, desconsiderando as evidências e até chacoteando dos desvalidos. “Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético”. Provavelmente, o parvo chefe da Nação não está frequentando as ruas que devia na condição que o cargo lhe exigiria. Todos sabem, sanha corrente, Bolsonaro não desperdiça uma chance de errar, como confirmam as baboseiras lançadas em qualquer direção. Foi agraciado pelo Congresso [???; o presidente da República bancou os R$ 600,00 e faltou ao Maia e Alcolumbre a coragem de derrubar os R$ 600,00 - REPETIMOS: proposto pelo presidente JAIR BOLSONARO.
No inicio o Congresso era contra, quando recebeu a proposta do Poder Executivo, R$ 300 por mês, decidiu fazer política e tirar vantagem optando por R$500,00, tendo o presidente Bolsonaro batido o martelo em R$ 600,00.]
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O vendaval de aflitos não pode esperar muito tempo, na crueza da escassez, para saciar suas necessidades. Na calada da noite, nos barracos construídos ilegalmente ou na cobertura de papelão cercada por pneus velhos, debaixo do viaduto, em palafitas rudimentares, tentando sobreviver por meios insanos, são seres humanos, cidadãos, favelados ou não, invasores de terras e de imóveis abandonados, “pobres e paupérrimos” — na lembrança, essa sim providencial, do presidente — que acalentam e esperam diariamente resposta para a fome. João, Genésia, José, Francisca, são tantos os nomes e rostos dessa tragédia que machuca até encará-los. O pequeno Gerson, da comunidade paulista de Paraisópolis, deitado no chão, numa miserável confraternização com seu vira-lata, é todo dia engabelado pela mãe para sair às brincadeiras, tentando driblar a fome. É dor que não passa assistir à cena. Qualquer um, no mínimo de discernimento humanitário, vergaria lágrimas.
A miséria mostra seu código de necessidade mais evidente na fome. Ela atinge e faz vítimas em escala bíblica no Norte e no Nordeste, que abrigam a parcela prevalente dos domicílios com privação alimentar. As carências, no caso, são mais sentidas em áreas rurais, regiões ribeirinhas, lares chefiados por mulheres, por negros ou pessoas autodeclaradas pardas. É a fome reforçando o preconceito. Perceba, também, o tamanho da frequência do drama enfrentado pelo rebento Gerson, acima citado: metade das crianças com menos de cinco anos (6,5 milhões ao todo no País) cresce em residências com algum grau de insegurança alimentar. O que tamanha chaga representa no desenvolvimento do País a maioria desconfia. A alimentação adequada é condição “sine qua non” para o aprendizado e desempenho escolar. Parte majoritária do público de pequeninos encontrava o que comer nas escolas e entidades de ensino.
Com o fechamento dos estabelecimentos, em meio à quarentena, nem isso. A merenda de crianças e adolescentes sumiu da rotina e a leitura lógica sinaliza que a pandemia intensificou a vulnerabilidade dos que não comem, numa escalada sensivelmente agravada pelo aumento conjuntural dos preços dos alimentos. Na pororoca de situações inesperadas, todas conspirando para o mal, o desperdício de bilhões de sacas de grãos, frutas e vegetais — que se deixam cair nos transportes de safra, nos equívocos de escoamento ou de armazenamento indevido — parece inconcebível e poderia reparar ao menos parte do drama. Restam ainda a autoestima e esperança dos desvalidos e o caminho da solidariedade, capaz de fazer milagres. Há ainda um Brasil capaz de oferecer um prato a mais para uma boca a mais. Não apenas por meio das entidades filantrópicas e mutirões assistenciais. Cada um pode e deve fazer a sua parte, começando ontem, para legitimar a erradicação dessa doença da fome, que teimou em maltratar logo o povo habitante do celeiro do mundo.