Madeleine Lacsko
Identitarismo e Imbecilização
A
primeira alternativa para a mulher é mudar de país e cobrar os danos
morais e materiais de quem destruiu a vida da família por lucro. Não é
informação de utilidade pública, não é jornalismo. Como entretenimento
de baixíssimo calão, a entrevista do mendigo é um produto excelente.
Nesse mercado, no entanto, essas coisas são combinadas e a pessoa que
tem perda de imagem recebe antecipadamente a compensação financeira.
Suponhamos
que a mulher resolva abrir mão de todos os princípios morais ou isso
tudo tenha sido uma grande armação. Ela também pode virar deputada. Pode
engatar um feminismo pela liberação sexual da mulher casada misturado
com um "quem dá aos pobres empresta a Deus". Se juntar a defesa
da dignidade da população de rua e apelar ao privilégio e preconceito
de quem a criticou, o parque de areia antialérgica não só elege como
começa a namorar mendigo. Se vestir feito um, boa parte já faz.
Quais
as consequências para o jornalismo?
Foi certo ou errado fazer a
entrevista?
Errado não foi, só não era jornalismo. Lidar com esse
conteúdo seguindo a lógica jornalística produziu uma canalhice imensa e,
talvez, um enorme passivo jurídico. A indústria da baixaria tem
salvaguardas para comercializar a honra e a dignidade alheias. É o que
foi feito nesse caso, algo muito diferente de jornalismo.
Você
vai ver uma tentativa bizarra de defesa dizendo que muita gente se
divertiu com o conteúdo. Óbvio que sim. Não tem nada que venda mais do
que baixaria sexual. Os vídeos bateram a casa do milhão rapidinho, como
ocorre com a indústria pornográfica, por exemplo. Esse tipo de
engajamento não vem de noticiário ou credibilidade jornalística, mas de
fantasia sexual e bizarrice.
Existe público
consumidor disso e existe essa indústria, com regras próprias. Ao posar
de paladino da moral, o jornalismo se esquece de ser minimamente ético.
Se você vai expor completamente a intimidade de uma pessoa a ponto de
comprometer a dinâmica da família e da profissão dela, qual o motivo? No
caso, dinheiro e engajamento. Essas moedas seriam aceitas pela pessoa
como compensação? Ela é quem precisaria decidir, simples assim.
Eu não vou cair aqui no moralismo porque ele leva necessariamente à mais desavergonhada canalhice. "Por trás de todo paladino da moral vive um canalha",
cravou o mestre Nelson Rodrigues. O conto erótico do mendigo é uma
prova científica. Existe sim uma indústria da exploração da sexualidade e
da intimidade, inclusive de formas bem bizarras. É o que foi feito
aqui, só que da forma menos ética possível. E existe forma ética?
Explico.
Você pode gostar ou não da
indústria pornô, concordar ou não com a opressão e exploração das
mulheres, ponderar ou não que vicia os homens jovens num tipo de sexo
que não existe. Não é disso que eu estou falando aqui. Esses são
julgamentos de valores e moral, eu tenho os meus sobre o tema. Mas falo
de outro tema.
Digamos que alguém queira explorar
comercialmente a sexualidade e a intimidade. Esta pessoa sabe que há um
custo de honra e imagem a quem se expõe, é praticamente uma escolha de
vida e círculo social na maioria das sociedades. Com base na viabilidade
comercial e no que cada um empenha no processo, é feito um contrato que
prevê compensação financeira. As duas partes, adultos que consentem,
aceitam.
No caso concreto
seria, por exemplo, propor à mulher exibir o filme do flagrante no
carro com o mendigo e fazer a entrevista com ele em troca de uma
compensação financeira acertada entre as partes. Digamos que ela pedisse
um determinado valor e a empresa aceitasse. É correto? Pense antes de
responder. Pode não ser coincidente com os seus valores morais, mas é
correto e muito mais ético do que as reportagens feitas.
Qual seria a comparação então de algo não ético na indústria pornô? Tenho aqui o caso perfeito, que denunciei em um artigo de janeiro de 2020.
Há homens ficando milionários nas plataformas pornográficas filmando
secretamente abusos sexuais que cometem no transporte público. As
vítimas, muitas delas menores de idade, descobrem que estão num vídeo
pornô só depois que ele está no ar. Outros postam vídeos íntimos
próprios e de terceiros em que a mulher não foi consultada sobre a
publicação. No Brasil, os dois segmentos faturam milhões.
Sob
o ponto de vista da ética, a situação é muito parecida. É possível
alegar que os jornalistas não forjaram a situação entre a mulher e o
mendigo. Verdade. Ocorre que forjaram entrevistas em que ele fala
detalhadamente sobre a relação sexual que teria mantido com ela. Ninguém
nem sabe se é verdade aquilo, mas ela ficou sabendo da exposição depois
de feita, a não ser que seja tudo uma grande armação.
No
caso de efetivamente ser uma grande armação, eu me rendo. Realmente
escapa à minha capacidade humana de compreensão o que o jornalismo ganha
com isso. Talvez seja a maior reviravolta da história da comunicação e a
gente ainda fique sabendo que houve uma sacada de genialidade. Mas
sinto que, infelizmente, o fundo do poço chegou e a primeira coisa é
parar de cavar.
A derrocada moral das redações jornalísticasO conto erótico que ganhou status de notícia é o resultado da ideologia que dominou o jornalismo, quase uma religião, o Woke ou Identitarismo. Você divide o mundo entre bons e maus de acordo com o grau de opressão. O valor humano vem do sofrimento.
Aqui temos, de um
lado, um casal branco, evangélico e com situação financeira
aparentemente estável. De outro lado, um mendigo negro. Quem representa o
bem e quem representa o mal na história? Dentro da ideologia
imbecilizante que tomou conta da imprensa brasileira, obviamente o
mendigo está certo por ser oprimido. O casal está errado por ter o
privilégio branco, apoiar o patriarcado e, pior de tudo, ser evangélico.
Agora
que já dividimos a realidade entre oprimido e opressor, vem o moralismo
de quinta categoria: toda proteção ao oprimido e vale tudo contra o
opressor. Símbolos e estética importam mais do que ação. Eu,
privilegiada, já seria apedrejada por chamar mendigo de mendigo. É
ofensivo, ele é morador de rua. Quem fala morador de rua, no entanto,
pode fazer um relato sexual detalhado sobre uma mulher e colocar na
imprensa. Pior, ainda pode dizer que é jornalismo. Então tá.
O
jornalismo está colhendo os frutos de fingir ser isento e, por isso,
não ter princípios. Não existe isenção humana, existe honestidade. Você
sabe quais são os princípios e valores de alguém, essa pessoa ou essa
instituição deixam claro, então você sabe onde pisa. Se alguém te diz
que é objetivo ou isento, pode até acreditar nisso mas, na realidade, é
picareta.
A
indústria da comunicação vive uma mudança gigantesca desde o surgimento
da internet e, mais ainda, com a chegada das redes sociais. Aqui entra
um alerta feito ao jornalismo por Daniel Boorstin, diretor da biblioteca
do Congresso dos EUA, por meio do livro The Image lançado na década de
1960. "O pior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento". O jornalista brasileiro tem certeza de que entende a sociedade digital.
É
uma certeza patética e que levará cada um que a acalenta a quebrar a
cara. Eu sei porque quebrei. Só que tomei vergonha na cara e fui estudar
para compreender esse novo universo em que vivemos. Aprender sobre
redes sociais, internet, algoritmos e impulsionamento é só o início.
Precisamos aprender é sobre comportamento humano, cognição e ética. Sem
isso, é impossível sobreviver à mudança digital.
As
redes sociais nos levam a viver em grupos. Redações são geralmente
dominadas pelos canceladores, gente que acha bonito apoiar projetos de
bullying virtual como Sleeping Giants por alegar que briga contra o
ódio. Não vai demorar muito para todo mundo aprimorar o discursinho
moralista e passar a agir como canalha. É o que aconteceu aqui.
Conhecer
sobre comportamento humano é ter a consciência de quem somos e de quem
gostaríamos de ser. O moralista se apresenta publicamente como se fosse
quem gostaria de ser. É essa confusão que extrapola para a natureza do
negócio jornalístico. Jornalismo não é uma jihad contra a opressão, é
credibilidade. Por isso, o jornalista não é inerentemente bom e ético,
precisa ter disciplina.
Não
pense que eu agora caí na armadilha do moralismo barato também. Tenho
consciência dos meus defeitos, por isso faço um reexame com disciplina.
Ocorre que confundir a natureza do negócio torna o jornalismo
insustentável.
Digamos que os cliques sejam
necessários e seja feita uma opção por um bom polemista ou uma boa
polêmica. De certa forma, é o caso. Isso é shownalismo, um tipo de
negócio que atrai cliques. Ele é viável economicamente quando prevê uma
série de salvaguardas. No caso dos polemistas, eles têm o limite da lei
em contrato. Além disso, os editores dão a palavra final.
No
caso das polêmicas, é preciso avaliar caso a caso. Se alguém sair
lesado, quanto seria o passivo judicial e em quanto tempo sairia a
cobrança? Seria possível negociar antes da publicação? Caso seja,
compensa o lucro com a publicação?
Parece cínico e é.
Só que a gente não gosta de ser pragmático, cínico, piorar o mundo para
melhorar as finanças. Então, qual a opção? Não fazer? De maneira
nenhuma. Faz igual só que arruma justificativa moral. Ia cair na opinião
pública de qualquer jeito, ele é oprimido porque é negro, você é
racista porque chamou de mendigo em vez de morador de rua.
Esse
tipo de coisa nunca colou, mas calou as pessoas durante muito tempo. O
medo de ser cancelado fez com que a lacração dominasse a comunicação e a
publicidade. Ela se instalou, agora mostra a que veio. Nem os machistas
mais antiquados e porcos da história da comunicação pensariam em expor
uma mulher desse jeito. Hipocrisia é bicho que come o dono. Comeu.
Madeleine Lacsko, colunista - Gazeta do Povo - VOZES