Gazeta do Povo - VOZESJustiça, política e fé
“Veneno
e remédio são frequentemente a mesma coisa, dadas em diferentes
proporções”, disse a romancista norte-americana Alice Sebold, a quem
voltaremos a seguir. O projeto de fake news que está sendo debatido no
Congresso tem uma boa intenção: suprimir conteúdos criminosos das redes
sociais.
As redes sociais permitiram a proliferação
de notícias falsas. Além disso, uma série de crimes podem ser praticados
no ambiente da internet e das redes, como, por exemplo, injúria,
calúnia, racismo, publicação de imagens de pedofilia e incitação a todo
tipo de crime: terrorismo, ataques a escolas e invasão de propriedades
rurais.
Contudo, como se diz, de boas intenções o
inferno está cheio. O projeto proposto pelo relator na última
terça-feira, mesmo já tendo sido aperfeiçoado em vários pontos, erra na
dose e, com isso, envenena e mata a liberdade de expressão.
Melhor seria
chamá-lo de projeto da censura.
Nesse sentido, as
últimas versões mostram um pouco dos riscos que ele representa neste
momento. Como alguns colegas alertaram, eventuais concessões e
aperfeiçoamentos neste momento final podem ser uma estratégia para
conseguir a aprovação do projeto e sua remessa ao Senado. Lá, ele
voltará a ser discutido e os textos que geraram grande temor, que
constavam na proposta do governo encampada pelo relator, poderão
ressurgir por influência desse mesmo governo e, se aprovados, enviados
diretamente para sanção presidencial.
Apontarei
7 razões centrais para que a Câmara recuse o projeto, com base na sua
versão apresentada na terça-feira, quando sua urgência foi aprovada, e
vigente até o início desta quinta-feira - e atualizarei este texto, ao
fim, com a avaliação da nova versão prometida para o fim do dia de
ontem, quinta-feira. Este é meu artigo mais longo nesta coluna semanal,
mas o assunto merece uma reflexão cuidadosa.
O projeto proposto pelo relator na última terça-feira, mesmo já tendo
sido aperfeiçoado em vários pontos, erra na dose e, com isso, envenena e
mata a liberdade de expressão
Primeira razão:
o conteúdo ilícito a ser excluído das redes é definido e forma vaga, o
que abre espaço para remoção em massa de conteúdo legítimo. De fato, a
proposta obriga as plataformas de redes sociais a controlar ou censurar
conteúdos que possam implicar riscos para “direitos fundamentais
previstos na Constituição”.
Na imensa lista de
direitos fundamentais está, por exemplo, o direito à honra, à dignidade e
à imagem.
Se alguém chamar uma mulher transgênero de homem, isso fere
sua dignidade ou honra?
Ou seria legítimo dentro da pluralidade de
opiniões numa democracia? Discursos conservadores sobre gênero serão
permitidos?
E
que tal críticas a autoridades? Já fui punido por criticar alguns
ministros do Supremo Tribunal Federal, afirmando que suas decisões
mandam uma mensagem de leniência em favor da corrupção. Ressalvei
expressamente que não imputava má-fé, mas avaliava o impacto das
decisões sobre investigações.
Esse conteúdo deverá ser derrubado por
atingir a honra dos ministros?
Nesta semana, fui
condenado a indenizar Renan Calheiros por ter postado notícias
jornalísticas sobre ele e por ter avaliado que sua eleição à presidência
do Senado em 2019 colocaria em xeque o avanço do combate à corrupção no
parlamento.
Não xinguei, não ofendi, não ataquei, mas a Justiça de
Alagoas entendeu que atingi seus direitos fundamentais.
Minha crítica
deveria ser censurada pelas plataformas?
As redes
sociais deverão ainda controlar ou censurar conteúdos que impactem a
dimensão coletiva dos direitos fundamentais em temas cívicos,
político-institucionais e eleitorais.
Críticas legítimas à corrupção do
governo que abalem a institucionalidade devem ser mitigadas pelas
plataformas?
Em 2015 e 2016, recorde-se que a esquerda chamava o
impeachment de “golpe”.
E quem julgará o que pode e o que não pode ser dito? O governo.
Críticas legítimas à corrupção do governo que abalem a
institucionalidade devem ser mitigadas pelas plataformas? Em 2015 e
2016, recorde-se que a esquerda chamava o impeachment de “golpe”
A segunda razão
é essa. Será o governo que regulamentará em detalhes o conteúdo da lei,
supervisionará as plataformas e avaliará se elas estão excluindo ou
limitando o alcance dos conteúdos adequadamente.
É o governo ainda que
poderá impor sobre as plataformas pesadas multas, as quais podem chegar a
R$ 50 milhões por infração, o que lhe dará controle indireto sobre os
conteúdos.
Assim, o projeto coloca poder excessivo
nas mãos do Estado para regular um direito tão essencial.
A liberdade de
expressão chega a ser chamada de “sobredireito” por ter primazia sobre
os demais direitos.
Isso acontece porque, além de direito básico de
personalidade individual, é um pilar essencial à vida em sociedade e à
democracia.
Ainda que o poder de censura fique nas
mãos de uma agência reguladora que tem alguma independência, não se
trata de avaliar critérios científicos de medicamentos como faz a
ANVISA, ou de regular critérios técnicos de redes de comunicação como
faz a ANATEL, mas de controlar discurso, algo muito mais subjetivo e
sujeito a disputas ideológicas.
Quando
se define com vagueza o conteúdo que deve ser removido ou ter seu
alcance limitado, e se coloca nas mãos do governo o poder de punir
pesadamente quem o remove, o resultado é óbvio: um imenso risco de
controle do discurso pelo governo, para censurar adversários e
ideologias a que se oponha.
Na Europa, a Diretiva
2022/2065 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia
determina que cada plataforma terá um setor de conformidade e atribui o
poder de supervisão das grandes redes sociais, dada a sua sensibilidade,
diretamente à Comissão Europeia, que é o órgão executivo da União
Europeia, subordinada ao Parlamento e ao Conselho.
É composta de 27
comissários indicados pelos vários governos europeus, o que lhe garante
pluralidade ideológica e independência em relação aos interesses de um
governo local.1 Nada parecido é proposto aqui.
É o governo ainda que poderá impor sobre as plataformas pesadas multas, as quais podem chegar a R$ 50 milhões por infração
Terceira razão:
o poder do governo sobre as plataformas é ampliado por uma previsão
genérica dos casos em que serão responsabilizadas: se não adotarem
“medidas de atenuação razoáveis, proporcionais e eficazes” em relação a
“riscos sistêmicos” de violação daquela extensa lista de direitos
fundamentais, elas estarão sujeitas a multas milionárias.
Debaixo
dessa ameaça, as redes sociais tenderão, por cautela, a restringir o
alcance de conteúdos que representem algum risco. O problema é que a
moderação não acontecerá após uma análise humana individualizada, mas
sim de modo robotizado e em massa, afetando o debate político legítimo
quando presentes palavras-chaves que representem perigo de punição de
acordo com as políticas do governo.
No início deste
artigo, citei a frase de Alice Sebold que distingue remédio e veneno
pela dose. O que não contei foi a história dramática de Alice. Em 1981,
quando jovem, ela foi estuprada por um desconhecido. Cinco meses depois,
seu caminho cruzou com o de Anthony Broadwater, que ela apontou como
seu estuprador. Ele cumpriu 16 anos de prisão. Ele sempre negou o crime,
o que impediu que recebesse sua liberdade condicional por cinco vezes.
No fim, foi reconhecido que foi condenado por erro judicial.
Se
até a justiça pode errar na interpretação dos fatos e da lei, após um
longo processo judicial em que é garantido o contraditório e a defesa,
como confiar no exame automatizado, instantâneo e em massa, feito pelas
plataformas, sobre o conteúdo que deve ser removido, ainda mais quando
estão debaixo da ameaça de punição? Certamente muito conteúdo inocente
será excluído por precaução.
É importante enfatizar
que, por conta da primazia constitucional da liberdade de expressão,
falas criminosas podem ser objeto de responsabilização após serem
realizadas, mas não antes. A censura prévia é, em regra, inadmissível.
Contudo, a atuação automatizada, rápida e em massa para excluir
conteúdos que possam ferir direitos, o que é definido de modo vago e
extenso, gera um risco grave e concreto de uma ampla censura prévia.
É
preciso reconhecer que as redes sociais passaram a constituir, junto
com a voz, um instrumento de expressão humana. Antes se ia a uma praça
pública, a um auditório ou a uma rádio. Hoje, em grande medida, as falas
circulam nas redes sociais, um auditório ou praça digital. Derrubar
postagens ou seu alcance previamente, sem uma análise individualizada e
sem que esteja em questão crimes graves, pode ser interpretado como o
equivalente a indevidamente amordaçar ou apertar a garganta da pessoa
para limitar o alcance da sua voz.
Se até a justiça pode errar na interpretação dos fatos e da lei, após
um longo processo judicial em que é garantido o contraditório e a
defesa, como confiar no exame automatizado, instantâneo e em massa
Mas não é só isso. A quarta razão
para que o projeto da censura seja rejeitado é a figura do “protocolo
de segurança”, que poderá ser decretado como uma espécie de estado de
defesa ou de sítio nas redes sociais. Entretanto, as hipóteses em que
poderá haver essa imensa restrição aos direitos fundamentais são, mais
uma vez, vagas: “quando configurado risco iminente de danos à dimensão
coletiva de direitos fundamentais”.
Não se sabe
exatamente quando essas situações estão presentes... poderá ser invocado
o protocolo quando houver, por exemplo, dano difuso a consumidores,
meio ambiente, educação, saúde, segurança ou, talvez, críticas
contundentes ao governo ou turbulência econômica ou política.
A
ideia foi importada da regulação europeia, mas sem as salvaguardas
existentes lá. A Diretiva 2022/2065 prevê um mecanismo de resposta a
crises, contudo só pode ser adotada pela Comissão Europeia, com base em
recomendação do Comitê Europeu dos Serviços Digitais, um grupo
consultivo também de apoio à Comissão Europeia, constituído um
coordenador digital de cada país membro da União Europeia. A composição
tanto da Comissão como do Comitê lhes dão pluralidade e independência em
relação aos interesses de um dado governo local.
Além
disso, a regulação do protocolo por lá é muito mais exigente. Só pode
ser decretado, por exemplo, se houver uma “grave ameaça para a segurança
pública ou a saúde pública na União ou em partes significativas de seu
território”. Há, ainda, uma série de medidas necessárias determinadas
pela Diretiva que conferem maior proteção à liberdade dos cidadãos,
inexistentes no projeto brasileiro.
A ideia foi importada da regulação europeia, mas sem as salvaguardas existentes lá
A quinta razão
para rejeitar o projeto da censura são as circunstâncias. O Brasil não é
a União Europeia em termos de respeito às liberdades fundamentais. Há
muito que avançar por aqui. Além disso, o projeto brasileiro é uma
caricatura dantesca da regulação adotada na Europa. Infla o poder do
governo, derruba salvaguardas e amplia as hipóteses de restrição de
conteúdos nas mídias sociais de modo a permitir ingerências de caráter
ideológico.
Nessas
circunstâncias, com maior razão é imprudente colocar um cheque em
branco para restringir liberdades nas mãos de um governo, seja de
direita ou de esquerda. E não se pode deixar de mencionar que hoje temos
um governo amigo de ditaduras como Venezuela, China, Cuba, Nicarágua e
Rússia, notórias por restringirem liberdades.
A hora
de abortar o ovo da serpente é agora. É o mesmo governo que criou um
ministério da verdade para tentar controlar narrativas e impor sua visão
de mundo ao país.
Como esperar boa fé na regulação das liberdades do
governo do PT, responsável por articular Mensalões e Lava Jatos para
perpetuar o seu poder?
Além disso, o projeto brasileiro é uma caricatura dantesca da regulação adotada na Europa
A sexta razão contra o projeto é a delimitação do seu âmbito às redes sociais e o fortalecimento de sites e blogs que divulgam fake news.
Com
efeito, a regulação europeia trata de modo muito mais amplo a regulação
da internet.
Se o risco está na internet, por que o foco restrito nas
redes sociais e não mais amplo?
Tenho certeza de que a imprensa jamais
permitiria que fosse regulada nos mesmos termos dessa proposta.
Gritaria, e com razão, que o projeto coloca em risco a liberdade de
expressão.
O silêncio da grande mídia pode ser
atribuído a duas razões: seus sites não estão incluídos na regulação
restritiva e o projeto prevê a remuneração da imprensa pelas plataformas
em virtude da circulação nelas de notícias jornalísticas.
Tem o
incentivo, sem ter o desestímulo, para apoiar o projeto.
Veículos de
comunicação também são empresas e sua sobrevivência e expansão depende
do lucro.
A ideia de remunerar conteúdo jornalístico
nacional é boa. Se plataformas lucram com seu conteúdo, parece justo que
sejam compensadas, ainda que se possa discutir o critério e o valor da
compensação. Além disso, mais recursos ficarão no Brasil e serão
investidos em um trabalho profissional de reportagem e crítica dos
fatos.
Contudo, essa matéria mereceria ser debatida
em separado, para não prejudicar a livre discussão sobre a qualidade da
regulação.
Some-se que grande parte das fake news é gestada e
nasce em blogs e sites da mídia marrom.
Por incrível que pareça, esses
blogs que injetam notícias falsas e criminosas sairão fortalecidos com o
projeto, por três razões.
De
fato, o projeto prevê, o que incluirá a remuneração desses sites e
blogs que se autointitulam jornalísticos. A sua remuneração, aliás, será
ampliada, pois estudos demonstram que a replicação das notícias falsas
por usuários é maior do que a das notícias verdadeiras.
Em
segundo lugar, para evitar que as plataformas retirem as notícias
jornalísticas do ar com o objetivo de evitarem ter que remunerar os
veículos de comunicação, o projeto de lei impede que as notícias tenham
seu alcance limitado pelas plataformas. Com isso, os blogs sujos
receberão salvo conduto para disseminação de suas narrativas mentirosas
nas redes.
Por fim, embora o projeto seja intitulado como uma proposta contra as “fake news”, ele não trata de desinformação, salvo num único artigo que prevê um crime específico de desinformação para fins eleitorais.
Tenho certeza de que a imprensa jamais permitiria que fosse regulada
nos mesmos termos dessa proposta. Gritaria, e com razão, que o projeto
coloca em risco a liberdade de expressão
Em sétimo lugar,
o projeto está sendo examinado em um regime de urgência que prejudica
seu debate e aperfeiçoamento no próprio Congresso e na sociedade. De
fato, embora o assunto esteja sendo discutido há mais de ano, os novos
deputados foram empossados há menos de três meses e não puderam
discuti-lo de modo profundo nas comissões. Aliás, o próprio fato de que o
projeto tramita há mais de ano afasta a alegação de tremenda urgência
para sua apreciação.
Além disso, a constante mudança
do texto realizada ao longo dos últimos dias, sem que seja publicado ou
divulgado nos sites do Congresso ou em repositório oficial, impediu a
participação da sociedade nos debates. Várias entidades da sociedade
civil não foram devidamente consultadas ou ouvidas. A sociedade terá
apenas cinco dias, sendo dois deles em fim de semana e um deles em
feriado, para opinar em matéria de tamanha relevância.
Em
conclusão, o remédio com que o Congresso pretende tratar a liberdade de
expressão está prescrito em uma quantidade que fulmina o próprio
paciente. A regulação das mídias é importante, mas deve seguir modelos
testados e que protejam os brasileiros, os quais não devem ser feitos de
cobaias num experimento que pode terminar em censura e mordaça. Lutarei
contra isso e conto com a sua ajuda.
De fato, embora o assunto esteja sendo discutido há mais de ano, os
novos deputados foram empossados há menos de três meses e não puderam
discuti-lo de modo profundo nas comissões
Atualização após
ser compartilhada a nova versão do projeto, apresentada no fim da noite
dessa quinta-feira: a nova versão do projeto apresentou avanços. Foram
atenuadas preocupações relativas à abrangência da definição do
comportamento ilícito e à censura prévia relacionada a riscos
sistêmicos.
Contudo, o texto continua precisando de
vários aperfeiçoamentos. Ele segue regulando redes sociais e não a
internet como um todo, diferentemente da regulação europeia, o que deixa
de atacar o problema de modo mais abrangente, deixando de fora blogs,
sites e veículos de comunicação.
Além disso, a proposta mantém o fortalecimento de sites e blogs de fake news,
da imprensa marrom, porque obriga as redes sociais a pagarem pelo
conteúdo, ainda que seja desinformação. De forma um tanto irônica, o
projeto das fake news recompensa financeiramente fake news que sejam veiculadas por esses sites.
O
texto mantém ainda o protocolo de segurança, sem mencionar quem o
instaura, e estabelece como órgão supervisor, ainda que com poderes
menores, o Comitê Gestor da Internet, cujos membros são indicados pelo
governo, sendo suscetível, portanto, ao aparelhamento político.
Uma
regra perigosa que foi mantida, mas não mencionada no artigo acima, é a
medida cautelar de retirada ou suspensão de conteúdo ou perfil de rede
social, o que equivale à censura prévia.
A medida é de duvidosa
constitucionalidade e em alguma medida desnecessária porque se houver
uso reiterado das redes sociais para prática de crimes pode se
justificar, em pelo menos parte dos casos, a prisão preventiva.
Considerando
isso tudo e os risco de que os perigos tratados neste artigo voltem a
surgir no Senado Federal, por influência do governo, seguimos entendendo
que a melhor opção, neste momento, é defender a rejeição do projeto,
sem prejuízo de a discussão ser retomada, com seu necessário
amadurecimento em uma comissão especial e a devida participação da
sociedade.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima