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quarta-feira, 7 de abril de 2021

Governadores e prefeitos disputam quem supera o outro em matéria de disparate - O Estado de S. Paulo

J. R. Guzzo

De surto em surto

Diante de tantas patologias que a “gestão” da covid criou no Brasil neste último ano de repressão aos direitos individuais, agressão às liberdades públicas e fracasso diante do vírus, vai ficando cada vez mais difícil selecionar qual é de fato a pior – são tantas, mas tantas, que mal dá, sequer, para manter uma lista atualizada de tudo o que está sendo feito de ruim. Governadores e prefeitos disputam entre si, decreto por decreto, quem consegue superar o outro em matéria de disparate. Há de tudo – da interdição de prateleiras nos supermercados, que só podem vender o que o governador local autoriza, à exigência de exame médico para ir do ponto “A” ao ponto “B”, passando por manobras de guerra para reprimir uma degustação de esfihas. 

Lembra, remotamente, os tempos em que os militares brasileiros combatiam o comunismo fazendo objeções ao consumo de cuba libre e confiscando livros de jardinagem de Burle Marx. Bons tempos aqueles, em que a estupidez não tinha vida útil muito longa, e em geral se dissolvia numa explosão de gargalhadas. Hoje, ao contrário, os governadores são levados terrivelmente a sério em seus surtos de Luís XV de escola de samba pelo mundo político, pela mídia e pelos economistas de centro-esquerda que assinam manifestos em favor da salvação nacional. Não importa o que façam. É contra a “pandemia”? Então eles estão certos. 

O último a entrar na roda é o governador de Sergipe, que conseguiu assinar um decreto dando a si próprio o direito de requisitar bens “móveis ou imóveis” – ou seja, de máscaras de proteção e aventais hospitalares até, pelo que está escrito, a casa onde o sujeito mora ou a loja em que tem o seu negócio. Não estão falando em “bem imóvel”
Então: bem imóvel é isso – casa, loja, por aí. Mais: o governador também pode requisitar “os serviços” das pessoas, quando achar que alguém tem de trabalhar para o governo – supostamente, no combate à covid. Mais: pode apreender “materiais” nas sedes de “fabricantes, distribuidores e varejistas”. Mais: fala em “bens apropriados”. Daria na mesma se falasse “expropriados”. 

É um prodígio, jamais visto em qualquer das ditaduras que este país já teve em seus 520 anos de história. No Brasil comandado pela Confederação Nacional Pró-Distanciamento Social não é mais o Congresso Nacional, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, que hoje pode tudo, quem está legislando sobre direito de propriedade. É o governador de Sergipe. O mais curioso é que ninguém que faz parte das entidades pensantes, democráticas e civilizadas do País acha nada de estranho nisso. Ao contrário: a mera menção deste despropósito gerou manifestos irados dos grupos de vigilantes de “fake news”, que se apressaram em dizer que eram “falsas” as notícias dos eventos de Sergipe. Seu argumento: o decreto do governador não fala em “abolir a propriedade privada”. Não, não fala – fala em “requisição administrativa”. A quem se pretende enganar? Só aos que querem ser enganados. 

No momento em que o ministro da Defesa e os três comandantes das Forças Armadas vão embora, muito se falou – agora já estão falando menos – das possíveis nuvens negras que esses estalos poderiam trazer para o nosso Estado de direito democrático. Parece ter sido mais trovoada do que tempestade. 
Quem está barateando cada vez mais a legalidade são os governadores. Já chegaram à fase de requisitar “bens móveis e imóveis”. Qual será a próxima atração? 
A indiferença geral diante dessa desarrumação só promete mais do mesmo; quando se perde a capacidade de distinguir entre lei e desordem, ou entre moeda falsa e verdadeira, o sistema está indo para a UTI.  
J. R. Guzzo, jornalista  - O Estado de S. Paulo