Nem o presidente Jair Bolsonaro tem condições de patrocinar um autogolpe nem a oposição tem forças para tirá-lo do governo
Nem o presidente Jair Bolsonaro tem condições de patrocinar um autogolpe nem a oposição tem forças para tirá-lo do governo. As lideranças que promovem manifestações apostam que o desempate vai se dar nas ruas. Podem ter razão, mas a ocupação das ruas que mais ameaça o governo hoje é aquela que se dá por aqueles que não têm e, cada vez mais, não terão, onde morar.
[Não existe oposição no Brasil.
O que chamam de oposição são alguns farrapos que sequer se entendem para marcar a data de uma reunião de tentativa de união e que caminha a passos largos para a mais completa autoextinção.]
Nas instituições capazes de conduzir a abreviação do mandato do
presidente cresce a percepção de que as condições para isso só estarão
dadas quando a curva dos despejados na rua se encontrar com aquela dos
amontoados nas valas da pandemia. Só o encontro dessas duas tragédias pode ser capaz de acender a fagulha
necessária à combustão do processo. Esta percepção disparou outra leva
de mensagens de robôs bolsonaristas colocando a culpa do desemprego
sobre governadores e prefeitos, manobra que ainda custa a se provar
eficaz, visto que é sobre os presidentes que a cobrança pela penúria
econômica costuma recair. [Por favor, não tentem mudar os fatos - por natureza eles são imutáveis:
quem comando o isolamento e distanciamento sociais foram os governadores e prefeitos; o presidente Bolsonaro tentou impedir o fechamento e promover a reabertura, só que foi proibido pelo Supremo de intervir - ficou tudo por conta do Poder Executivo dos estados e municípios.]
O ataque virtual, a saia justa dos governadores frente à atuação das
polícias militares na repressão aos manifestantes e, por fim, a ofensiva
da Polícia Federal que vai do desbaratamento de fraudes com
ventiladores à retirada da poeira de antigos aliados, como o governador
Wilson Witzel, debaixo do tapete, são parte da estratégia do presidente
de mitigar a frente ampla contra seu mandato.
O encontro marcado das duas curvas da tragédia social levou ainda o
presidente da República a trazer de volta à pauta a criação de um
programa de renda universal. Ao constatar que o auxílio emergencial
ajuda, de fato, a blindagem do que lhe resta de popularidade entre os
mais pobres, Bolsonaro quer um Bolsa Família pra chamar de seu, de valor
superior ao do programa petista e inferior ao benefício criado na
pandemia.
Pesam contra sua criação, além da inépcia gerencial do governo, capaz de
amontoar filas de espera enquanto agracia com o benefício oito milhões
de brasileiros de classe média, a crença quase religiosa de que só a
obsessão fiscal salva. Na contramão do resto do mundo, que além de não
poupar gastos para mitigar os efeitos da crise, já começa a encarar a
necessidade de tornar suas estruturas tributárias mais justas, o Brasil
resiste a um e a outro.
O governo parece iludido de que será capaz de instituir cobranças de
contribuições previdenciárias de aposentados e pensionistas que ganham
abaixo do teto do INSS ou mesmo reduzir salário do funcionalismo, como
se uma e outra medida fossem viáveis politicamente. O presidente da Câmara estimula o governo a avançar na proposta, desde
que atinja todo o funcionalismo. Rodrigo Maia retribui as armadilhas
colocadas pelo presidente no campo minado em que se transformou a
República. Se for adiante em sua proposta, o presidente corre o risco de
engrossar as manifestações com servidores e aposentados que se
transformaram, mais do que nunca, nesta pandemia de desempregados, em
arrimos de família.
Até aqui, Bolsonaro tem reagido às manifestações com a parcimônia de
quem aguarda que ganhem corpo e se descontrolem, espontânea ou
provocadamente. Se, no futuro, as manifestações podem vir a crescer e
desestabilizar o governo hoje elas revelam a prevalência da prática
política bolsonarista de dar primazia ao embate sobre o isolamento
social. A parcimônia bolsonarista não se restringiu à sua postura em relação aos
manifestantes. Aparenta recuo ao prestigiar ministros de tribunais
superiores. Marcou presença virtual na posse de Luis Roberto Barroso e
Alexandre de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral e no voto do ministro
Bruno Dantas sobre as contas de seu primeiro ano, no TCU.
O presidente ainda recuou no boicote do Ministério da Saúde à divulgação
dos dados da covid-19 e encenou uma reunião ministerial comportada.
Face a informações de pesquisas qualitativas, como aquelas colhidas por
detalhado estudo de Esther Solano, de que o erro imperdoável, para o
eleitor fiel, é a insensibilidade bolsonarista frente ao sofrimento da
pandemia, o presidente tentou se mostrar preocupado com a doença. Foi
ofuscado, no entanto, pelo desempenho do ministro da Saúde, Eduardo
Pazuello, que alinhou o Brasil setentrional ao regime climático do
Hemisfério Norte.
A estratégia de contenção do presidente passou ainda por duas operações
no front militar. A primeira foi o envio do ministro da Defesa à casa do
ministro Alexandre de Moraes, em São Paulo, onde Fernando Azevedo e
Silva teria demonstrado discordância da interpretação do artigo 142 da
Constituição feito pelo jurista Ives Gandra Martins sob o aplauso do
ministro Augusto Heleno. A segunda foi a revogação da portaria que liberava a operação de aviões
pelo Exército, medida que não apenas não foi capaz de cooptar os
generais da ativa, como despertou reação da Aeronáutica, jogando por
terra a fantasia de um apoio militar a um autogolpe.
A operação-recuo se completou com o envio do ministro da
secretaria-geral da Presidência, Jorge Oliveira, à casa de Rodrigo Maia e
de Alexandre de Moraes. Candidato à primeira vaga do Supremo, o
ministro tem hoje o cargo mais cobiçado da Esplanada. Ao nomear Walter
Braga Netto para a Casa Civil, Bolsonaro também chancelou a mudança que
tirou do seu gabinete e transferiu para o da Secretaria-Geral, a
Subsecretaria de Assuntos Jurídicos. É lá que são preparados os atos e nomeações que o presidente assina. E
cabe ao ministro que a chefia a atribuição de traduzir para o presidente
as nuances daquilo que terá sua chancela. Para muitos daqueles que
ocupam a cúpula das instituições, o exercício do poder não se completa
sem a capacidade de influenciar nomeações que dependem da assinatura
presidencial.
Ao recuo presidencial também correspondeu uma reação de compasso de
espera dos Poderes, principalmente daquele que está com a bola no pé. O
presidente do Supremo, Dias Toffoli, aproveitou uma pequena cirurgia
para drenagem de um abcesso e sumiu de cena por duas semanas. Ao voltar,
pôs água na fervura.
Durante sua convalescença, no entanto, Toffoli compareceu a um jantar na
casa de um advogado em Brasília. O encontro, que também reuniu Rodrigo
Maia, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e os ministros Luis
Roberto Barroso (TSE) e Bruno Dantas (TCU), convergiu na avaliação de
que este recuo do presidente é tático e que o impeachment ainda não está
maduro. Concordaram não apenas que a porta de saída do TSE deve se
manter aberta quanto na percepção de que o vice-presidente Hamilton
Mourão articula-se intensamente para fechá-la. Como estão sob o mesmo diapasão, devem, como costuma dizer Barroso,
empurrar a história no mesmo rumo. Mas tem um semestre inteiro para ser
consumido em encontros do gênero. O futuro demora muito.