Tudo indica que realmente está havendo uma segunda onda da pandemia
na Europa — principalmente na Inglaterra, na Espanha e na Itália —, mas
não se pode afirmar, ainda, que o mesmo esteja ocorrendo no Amapá, no
Amazonas e em Roraima, onde o número de casos voltou a subir. A média
nacional de transmissão da pandemia abaixo de 1/1 indica que o pior já
passou, realmente, embora o número de casos confirmados continue muito
alto. A sensação é de que estamos no meio de uma montanha russa, que
parece não tem fim. São 142, 2 mil mortes e 4,7 milhões de casos
confirmados até ontem, número só ultrapassado pelos Estados Unidos.
A média móvel de mortes nos últimos sete dias foi de 678 óbitos, o
que dá uma média de 28 mortos por hora. Mas é um número 15% menor do que
o da semana anterior, o que realmente representa um alento. O
presidente Jair Bolsonaro não está nem aí para essa discussão sobre
segunda onda, naturalizou o número de mortes como fizeram os generais e
políticos italianos em Trento e Trieste, até que a História, muitos anos
depois, cobrou-lhes a responsabilidade. Já comentei esse assunto por aqui, mas não custa relembrar. Quando a
Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da “Entente”
(aliança entre França, Inglaterra e Rússia), os políticos e militares
italianos acreditavam que seria uma oportunidade de libertar Trento e
Trieste do jugo estrangeiro e declararam guerra ao Império
Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram recrutados e
lançados à batalha.
No primeiro confronto, porém, o exército inimigo manteve as suas
linhas de defesa de Izonso e o ataque foi contido. Morreram 15 mil
italianos. Na segunda batalha, foram 40 mil mortos; na terceira, 60 mil.
Os italianos lutaram “por Trento e por Trieste” em mais oito batalhas,
até que, em Caporreto, na décima-segunda, foram derrotados
fragorosamente e empurrados pelas forças austro-húngaras às portas de
Veneza. Citado no livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari (Companhia das
Letras), o episódio ficou conhecido como a síndrome “Nossos rapazes não
morreram em vão”. Foram contabilizados 700 mil italianos mortos e mais
de 1 milhão de feridos ao final da guerra.
Por que isso aconteceu? Por que a autocrítica não é o forte dos
militares nem dos políticos. Depois de perder a primeira batalha de
Izonzo, havia duas opções: admitir o erro e assinar um tratado de paz
com o Império Austro-Húngaro, que enfrentava outros três exércitos
poderosos; ou continuar a guerra e apelar para o patriotismo. Prevaleceu
a segunda, porque a primeira tinha o ônus de ter que explicar para os
pais, as viúvas e os filhos dos 15 mil mortos de Izonso por que eles
morreram em vão.
Bolsonaro não teme um segundo ciclo da covid-19, já anda criticando o
prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), que estuda fazer um
novo lockdown para conter o aumento do número de casos na capital do
Amazonas, que desmente a tese de que já haveria “imunização de rebanho”
no estado. [destaques:
- nos países em que está ocorrendo a 'imunidade de rebanho, o crescimento de casos é constante - já o de Manaus é sobe e desce, típico dos ajustes de contagem que, percentualmente, são relevantes, dado o reduzido número absoluto de casos;
- ainda não há vacina, o fecha tudo, para tudo, já acabou e os números começaram a cair = IMUNIDADE DE REBANHO.
Com uma participação mais efetiva de medicação preventiva e curativa - neste caso nos primeiros dias.] não surgiu vacina,
O presidente da República naturalizou as mortes por covid-19,
a “gripezinha”, e culpa governadores e prefeitos pelo desemprego em
massa. Na sua avaliação, a política de isolamento social é responsável
pela desorganização da economia e não o novo coronavírus, como acreditam
sanitaristas e economistas.
Renda Cidadã
Na verdade, teme — com razão — uma segunda onda de desemprego, maior
do que a primeira, em decorrência da recessão e do fim do auxílio
emergencial. Mesmo com a flexibilização do isolamento social na maioria
das cidades — a razão da lenta queda do número de casos e de mortes —, a
atividade econômica não se recuperou nos níveis esperados. O governo
arrecada menos, os investidores foram embora, e muitas atividades
econômicas deixaram de existir, por falta de consumidores. Houve uma
revolução nos hábitos pessoais, com grande impacto na mobilidade urbana,
fazendo com que muitos negócios desaparecessem.
É nesse contexto que a discussão sobre o Renda Cidadã, o programa que
Bolsonaro pretende lançar para substituir o Bolsa Família, está sendo
posta. Existe um ingrediente eleitoral inequívoco, cuja digital é a
extinção do Bolsa Família, mas a preocupação de Bolsonaro com a situação
das pessoas que ficaram sem trabalho e perderão toda a renda faz
sentido. Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à
população mais pobre do país no próximo ano, e o Congresso precisa
encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne,
reduzindo gastos desnecessários — está mais do que provado que existem —
e privilégios do serviço público; prefere meter a mão nos precatórios,
empurrando as dívidas judiciais para as calendas, e pongar o Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educaçao Básica (Fundeb), desviando
recursos para o Renda Cidadã.
[Post um tanto quanto pessimista; felizmente, a competência, lucidez e sobriedade do articulista, o mantiveram na linha da verdade, não atribuindo ao presidente Bolsonaro a responsabilidade pela secura e incêndios no cerrado do DF, tentação a que grande parte da mídia não resistiu].
O curioso nessa história é que o ministro da Economia, Paulo Guedes,
passou de cavalo a burro. Antes, era a política econômica que ditava as
propostas do governo, aos políticos cabia defendê-las no Congresso;
agora, são os líderes do governo na Câmara e no Senado que dão as
cartas, a equipe econômica corre atrás de soluções técnicas para
viabilizá-las, o que geralmente não acontece. As reformas tributária e
administrativa colapsaram. O mercado está reagindo: alta do dólar e
queda na Bovespa. Os investidores estão cada vez mais cabreiros com o
Brasil.
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense