Vítima da letal combinação entre falência do Estado e crescente domínio do tráfico, a Cidade Maravilhosa se torna refém da violência e do medo que se espalha por todas as classes sociais. Como esse inferno foi criado e o que pode ser feito para resgatar a paz
A rotina da sociedade carioca mudou completamente nas últimas semanas. Tanques de guerra e homens vestidos para a batalha se impõem ostensivamente, alterando as paisagens da segunda maior cidade brasileira e cartão postal do País. Soldados com máscaras de caveira anunciam o horror do confronto com traficantes. Marcas de bala em muros de residências antes seguras são um termômetro da frequência dos tiroteios.
CONTROLE Forças Armadas entram na Rocinha para tentar
conter a guerra entre traficantes. Na última década, o governo recorreu a
essa solução 12 vezes (Crédito: Leo Correa)
Estabelecimentos fechados interrompem o fluxo do comércio e até a tradicional boemia associada ao estilo de vida dos cariocas tem hora para acabar, com bares e restaurantes tradicionais de bairros como a Lapa fechados ao escurecer para segurança da clientela.
Crianças impedidas de ir às aulas veem seu futuro comprometido. Refém do crime, do medo e da inércia do poder público, a cidade agoniza em um triste retrato da supremacia da violência. Das 1.025 comunidades da capital, 843 estão sob domínio de traficantes ou de milicianos. Só nos três primeiros meses deste ano, houve 1.867 vítimas de homicídios, roubos, agressões e operações policiais. Nas últimas semanas, com a disputa pelo controle do tráfico na Rocinha, a tensão extrapolou os limites do morro e atingiu todas as camadas da sociedade. Sinais de que se trata de uma guerra se alastram pela cidade que hoje, antes de fazer jus ao título de maravilhosa, se apresenta ao mundo como devastada.
As consequências desse poderio se mostram das formas mais perversas no dia a dia. O crime passou a controlar a circulação de carros e ônibus nas comunidades. Na quarta-feira 27, embora sete das nove escolas da Rocinha tivessem voltado funcionar, poucos alunos foram às aulas. Uma massagista foi demitida do emprego em uma clínica de Ipanema por ter faltado. “O patrão não está nem aí se eu tinha com quem deixar minha filha pequena ou não”, disse, chorando.
Muitos coletivos não conseguiram transitar nas ruas tomadas pelo Exército, impedindo que moradores pudessem sair para trabalhar. Um motorista de Uber que não quis se identificar disse à ISTOÉ que vigilantes armados identificam a luz do celular acoplado ao painel do carro e o interceptam. “Mesmo com filtro nos vidros, eles mandam o carro parar exigindo pagamento. Estão sempre com uma arma na cintura”, afirma ele, que já teve de pagar R$ 50 para buscar uma passageira na zona norte. Segundo registros em delegacias, cinco motoristas são vítimas de extorsão por dia.
Em meio às intensas trocas de tiros, instituições de ensino próximas às comunidades vêm tomando precauções sem esperar pelas autoridades. A Escola Alemã Corcovado, em Botafogo, no mesmo bairro em que está localizado o Morro Dona Marta, primeiro a receber uma UPP, providenciou uma passagem subterrânea para os alunos caminharem do estacionamento às salas de aulas. Trata-se de uma garagem no subsolo usada para a saída de alunos e funcionários em situações adversas. A escola já chegou a suspender o recreio dos alunos em função dos tiroteios. Medidas como essas não são exageradas quando se toma por base o caso de duas crianças e um bebê atingidos por balas perdidas em julho desse ano. Mesmo fora das regiões de confronto, muitos cariocas deixam de sair à noite por medo, e a vida noturna na cidade sofre um violento baque.
MASCARADOS Soldados utilizaram bataclavas com imagens
de caveira: política de confronto se sobrepõe aos investimentos em
inteligência (Crédito:Fernando Frazão/Agência Brasil)
O restaurante Frontera, no Jardim Botânico, teve redução de 50% no movimento. Na sexta-feira 22, o Braseiro, “point” do Baixo Gávea, no bairro homônimo, vendeu dois barris de chope ao invés dos habituais sete. Outros pontos que outrora ferviam na noite carioca, como a Lapa, no Centro, e a Rua Conde de Bernadotte, no Leblon, agora sobrevivem apenas. Na Lapa, o centenário restaurante Nova Capela passou a fechar as portas mais cedo devido à violência da área. Ninguém do estabelecimento quis dar entrevista. “Com o movimento em baixa e sem segurança, quem pode aguentar?”, questiona o garçom de um bar vizinho, na região mais boêmia do Rio.
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FORÇAS ARMADAS
Ao longo da última década, o governo do estado do Rio recorreu 12 vezes a intervenções das Forças Armadas. “A situação mostra uma crise periódica e permanente. Faz-se uso de um modelo militarizado que não resolve o problema”, diz Ignácio Cano, sociólogo e coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.n “A preseça dos militares tem um custo muito alto e não representa uma mudança de cenário no longo prazo.” Entre 2014 e 2015, a presença de soldados no Complexo da Maré por 15 meses custou aos cofres públicos R$ 600 milhões e a favela até hoje sofre com os mesmos problemas. Por trás da falência no combate ao crime está também a falta de investimento. Contas do governo estadual revelaram que gastos com “informação e inteligência”, fundamentais para o combate ao crime, foram reduzidos a zero no ano passado, quando a despesa com a segurança pública consumiu R$ 9,1 bilhões.
EXÉRCITO A atuação das Forças Armadas na Rocinha teve
duração de oito dias. Segundo o ministro da Defesa, Raul Jungmann, a
favela está estabilizada (Crédito:Bruno Itan / Parceiro / Agência O
Globo)
Do total, R$ 7,68 bilhões foram destinados à administração geral, ou seja, pagamento de salários. “Policiais acreditam que o trabalho se restringe à lógica de confronto e dão pouca importância à inteligência”, diz Silvia. Para ela, com a entrada massiva de fuzis nas favelas, houve uma “bopetização” da polícia, neologismo que se refere à atuação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), famoso pelos métodos violentos. Os policiais que usam máscaras de caveira ao subir o morro são prova.
A predominância de fuzis no arsenal dos traficantes de drogas revela o quanto o comércio de armas avançou no Rio. Em junho desse ano, policiais apreenderam 60 fuzis de guerra no Aeroporto Internacional Tom Jobim, o Galeão. “Isso mostra que as armas estão entrando pela porta da frente do País”, afirma Bruno Langeani, gerente de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz. “O aumento de munições apreendidas de calibre restrito, armas de maior poder de fogo, não tem comparação com nenhum outro estado brasileiro.” Segundo ele, a grande parte dos fuzis é vendida legalmente dos Estados Unidos para países como Bolívia e Paraguai e contrabandeadas para o Brasil.
Um dado revelado pelo relatório é que 42% das munições apreendidas em 2014 são de uma fabricante nacional. “Isso expõe as fragilidades no controle das munições brasileiras”, diz. Com uma média de 430 munições apreendidas por dia, é possível imaginar a disponibilidade bélica dos grupos de criminosos. Mais que uma reserva de balas para sustentar intensos tiroteios, eles dão demonstrações de seu poder de fogo disparando rajadas de tiros. Estima-se que cada bala de fuzil chegue a custar R$ 50. Para reverter esse cenário seria necessário aumentar a fiscalização da Polícia Rodoviária Federal, evitar que armas e munições fiquem por muito tempo nas delegacias e monitorar seus deslocamentos para acabar com canais de desvio.
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Há um vácuo no poder que agrava a violência em todo o Rio de Janeiro. O diagnóstico da socióloga do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, Julita Lembruger, explica-se pela ausência de declarações e ações efetivas do governador Luiz Fernando Pezão e do prefeito Marcelo Crivella diante do caos que dominou a favela da Rocinha nas últimas semanas. No dia 22, no estopim da crise, enquanto moradores viviam momentos de pânicos com o confronto entre traficantes e homens das Forças Federais, o prefeito demorou quinze horas para se manifestar por meio de nota.
Limitou-se a pedir que as pessoas evitassem áreas onde estivessem ocorrendo ações militares. Na quarta-feira 27, dez dias após o início dos conflitos, aos gritos de “sumido”, o prefeito visitou a Rocinha. O governador Pezão também se pronunciou apenas para dizer que sabia da invasão de traficantes, mas por cautela, desautorizou qualquer ação da polícia. “São afirmações inócuas, sem projetos, sem ideias. As favelas vivem um verdadeiro apagão”, diz Silvia Ramos, cientista social.
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