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Mostrando postagens com marcador norueguês Svein Arne Hansen. Mostrar todas as postagens
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domingo, 22 de maio de 2016

Acabou a farra?

Em Sochi, químico teria fornecido um coquetel de três esteroides fabricado sob medida a 15 medalhados russos

Berlinger era apenas um nome de boa tradição na Suíça. Seis gerações atrás, a família estabelecera-se no Vale Toggenburg, no noroeste do país, e ali fundara uma sólida tecelagem de algodão. Mas foi um frasco de vidro de 5cm de largura x 12cm de altura, que a família começou a produzir nos anos 1990, que lhe deu projeção mundial e agora lhe provoca dores de cabeça incalculáveis.

Desde os Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, os frascos Berlinger são os únicos chancelados pelo Comitê Olímpico Internacional para a coleta e armazenamento de amostras de urina de atletas em testes antidoping. E por um bom motivo: eram considerados simplesmente invioláveis, de tão perfeitos. Ao americano Don Catlin, ex-chefe do laboratório de análises da Ucla, por exemplo, pareciam à prova de bala. Eram apelidados de “cofres-fortes” — impossível serem abertos sem que ficasse a marca do crime.

Faltou combinar com os russos. Em denúncia feita duas semanas atrás no “New York Times”, o químico Grigory Rodchenkov, ex-diretor do Laboratório Antidoping de Moscou, contou que os agentes dos serviços especiais de inteligência russos decifraram o enigma e participaram da manipulação de testes durante os Jogos de Inverno de Sochi, em 2014.

A história contada por Rodchenkov, que fugiu para os Estados Unidos meio ano atrás levando apenas uma muda de roupa e o laptop que usou em Sochi, soaria fantasiosa não tivessem os russos a folha corrida que têm. Em novembro passado, descobriu-se a primeira ponta da extensão do envolvimento oficial no acobertamento de doping entre atletas de elite do país.

Naquele escândalo de dimensões pantagruélicas e embaraço indigesto para o governo de Vladimir Putin, Rodchenkov fora demitido e transformado em bode expiatório — havia admitido ter destruído mais de 1.400 amostras estocadas no laboratório de Moscou.  Os detalhes das revelações eram tão cabeludos que a Federação Internacional de Atletismo e a Agência Mundial Antidoping (Wada) se viu compelida a suspender a Rússia de competições internacionais (inclusive da Rio 2016) até nova avaliação, em 17 de junho próximo. À época, o ministro do Esporte russo, Vitaly Mutko, com a confiabilidade de um vendedor de carros usados, assegurava que “em 60 dias” haveria uma renovação total do sistema antidoping no país.

A julgar pelas revelações mais recentes de Rodchenkov, nada mudou muito. Em Sochi, o próprio químico teria fornecido um coquetel de três esteroides fabricado sob medida a 15 medalhados russos. Numa operação clandestina feita durante a noite, ele e um fechado grupo de ajudantes substituíam os frascos de urina contaminada pelos de urina limpa colhida meses antes. A troca era feita através de um pequeno orifício camuflado na parede do laboratório dos Jogos, no qual Rodchenkov tinha função oficial. Segundo seu relato, as amostras A e B de pelo menos desses 15 medalhados foram substituídas antes de serem analisadas, sem que os lacres contendo seus códigos únicos de sete dígitos apontassem qualquer sinal de violação. Trabalho de mestre de quem recebia os frascos através do furo na parede e os devolvia em duas horas e que Rodchenkov acredita ser agente do serviço de inteligência.

Esta sexta feira, finalmente, a Wada decidiu enviar uma equipe de investigadores a Los Angeles para avaliar a seriedade das denúncias do russo, com promessa de concluir um relatório em seis semanas — portanto, a apenas 33 dias do início dos Jogos no Rio. Também o presidente do COI, Thomas Bach, tratou de se posicionar. “Caso fique provada a veracidade das denúncias, isto representa uma nova e revoltante dimensão no doping, com um nível até então inédito de criminalidade”, escreveu em artigo publicado simultaneamente em vários jornais.

Nos próximos dias serão conhecidas as identidades de 31 atletas de 12 países pegos no exame antidoping nos Jogos de Pequim em 2008 e se saberá o resultado dos testes que serão refeitos em 250 amostras colhidas nos Jogos de Londres, em 2012. Cabe a pergunta: por que apenas 250, e não todas as amostras, serão retestadas? Embora o fator custo seja a resposta óbvia, pode-se argumentar, como o faz o britânico Greg Rutherford, atual campeão mundial e olímpico do salto em distância, que está passando da hora de a entidade se interessar por isso. “Em qualquer outro ramo de atividade, os corruptos seriam afastados e suas chances de encontrar emprego seriam poucas, mas parece que as coisas não são assim no esporte”, lamenta ele. (Na política brasileira também não, acrescente-se).

Diante de quadro tão pantanoso, a Associação Europeia de Atletismo tomou uma decisão arrojada esta semana: vai avaliar a credibilidade de cada um dos recordes obtidos em suas competições. O norueguês Svein Arne Hansen, novo presidente da entidade continental, reagiu assim à notícia de que haveria mais 31 casos positivos de doping nos Jogos de Pequim: “Nunca é tarde demais para corrigir erros do passado e garantir que atletas limpos sejam legitimamente recompensados. Apoio inteiramente a remoção de todos os fraudadores dos livros de história, não importa quanto tempo transcorreu desde as datas originais das competições”. Para isso, aprovou a instituição de um grupo de trabalho que julgará a probidade dos resultados avalizados pela entidade.

Isso equivale a se dispor a mexer num vespeiro. Logo de cara, seria preciso retificar os recordes em massa estabelecidos por atletas da antiga Alemanha Oriental (RDA), cujo criminoso programa estatal 14.25 administrou anabolizantes a perto de dez mil atletas ao longo de um quarto de século.

Um caminho apontado por Pierre-Jean Vazel no “Le Monde” poderia ser considerar que os recordes anteriores às técnicas de controle antidoping modernas não devem mais corresponder aos critérios atuais de homologação — algo como quando recordes marcados com cronômetros manuais deixaram de ser validados após a introdução de seus sucessores elétricos, em 1977.

Em matéria de polêmica, essa promete ser das grandes. Mas se é para fazer face à ficção olímpica de que vence o melhor, vale a pena acabar com a farra.

Por: Dorrit Harazim é jornalista