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domingo, 20 de março de 2022

O surreal baile de máscaras - Revista Oeste

Augusto Nunes - Paula Leal

Recado do Brasil sensato aos governantes assustados com a pandemia agonizante: basta de covardia

Foto: Shutterstock
Foto: Shutterstock

Confrontados neste março com evidências robustas de que a pandemia agoniza, governadores e prefeitos promovidos pelo Supremo Tribunal Federal a condutores do combate à covid-19 vêm confirmando que só lhes sobram autoconfiança e insolência quando ordenam outra retirada. Durante dois anos, enquanto debitavam na conta do “presidente genocida” mortes provocadas pelo vírus chinês, esses guerreiros de araque recorreram a sucessivos recuos, disfarçados de isolamentos verticais e horizontais, quarentenas, lockdowns, pontapés na Constituição e restrições autoritárias. 
A estratégia que mistura intolerância e pusilanimidade contou com a orientação e o endosso de sumidades de botequim que fingem ser capazes de, simultaneamente, ouvir a voz da Ciência, enxergar a luz da Verdade e enfrentar a morte em defesa da Vida dos outros. Além de Jair Bolsonaro, só negacionistas sem cura se atreviam a discordar dessa tribo de iluminados.

A farsa acabou. Exemplarmente harmoniosa durante a temporada de fugas, a imensidão de generais e coronéis engajados na guerra sanitária vem espancando a partitura desde que pressentiu a chegada da hora da contraofensiva. O persistente declínio da curva de óbitos, a estabilidade do número de novas contaminações e a notável expansão da população vacinada dispensam consultas a sábios de jaleco. Em pânico, jornalistas reduzidos a porta-vozes de necrotério fizeram o diabo para anabolizar a Ômicron e transformar em inimigo medonho uma variante que, pela diminuta taxa de letalidade, apenas reafirmava o ocaso da covid-19. A imprensa terrorista segue assombrando crédulos vocacionais. Mas só vigaristas de nascença e estrábicos por opção ignoram que a pandemia está a um passo do fim. Mais alguns dias e terá virado endemia. Mais uma.

Se homens públicos valentes não fossem uma espécie em extinção, a imediata abolição de restrições com prazo de validade vencido já teria elevado extraordinariamente a taxa nacional de otimismo. O problema é que se move no palco um elenco de canastrões implorando pelo socorro da mãe. Governantes bestificados começaram a bater cabeça, dispersaram-se na encruzilhada e agora espantam o país com o show de cientificismo esquizofrênico que acaba de parir o mais surreal baile de máscaras. Evoluem na congestionada pista de dança, por exemplo, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, e o governador paulista João Doria. Empenhadas em lucrar eleitoralmente com a manipulação de um valioso fetiche da seita do Fique em Casa, a dupla se meteu numa corrida que só avalizou a obviedade negada por ambos: não existe a Ciência Exatíssima. Nenhuma afirmação científica é infalível e incontestável. Se fosse assim, um deles teria cometido — por pressa ou lentidão — um erro grosseiro. E deveria ser punido pelo crime de negacionismo.

João Doria, governador de São Paulo, ao lado de Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro -  Foto: Divulgação

Em outubro de 2021, com as bênçãos dos doutores em vírus desconhecido, Paes dispensou do uso de máscara quem circulasse pelo Rio ao ar livre. Essa decisão foi encampada por Doria só neste 8 de março. Pior: os efeitos positivos da notícia foram reduzidos pela agilidade do prefeito carioca, que anunciara na véspera a revogação da obrigatoriedade da máscara também em locais fechados. O governador tropeçou de novo na tibieza ao esperar até 17 de março para seguir o exemplo de Paes. A hesitação impediu por mais nove dias que os habitantes de São Paulo respirassem normalmente em espaços abertos ou fechados. E prolongou um ritual que merecia ser cumprido ao som da lira do delírio.

Como em outros quatro Estados cujos administradores dispensaram o uso da máscara apenas em lugares abertos, um ser humano governado por Doria só fez o que lhe deu na telha no apartamento onde reside.  
Se decidiu jantar fora, cobriu o rosto no interior do elevador. Esperou um táxi de cara limpa. Recolocou a máscara ao alojar-se no carro. Tirou-a de novo ao deslocar-se do táxi para a porta do restaurante. Tornou a cobrir a face entre a porta e a mesa. Voltou a descobri-la depois de sentado. Repôs a máscara na ida ao banheiro. 
Talvez se tenha consolado com a dura vida dos garçons. Incumbidos de atender a casta que Oeste qualificou de “a nova aristocracia da covid-19”, zanzaram o tempo todo com a respiração reprimida. Ao decretar o banimento das máscaras em espaços livres, por sinal, Doria caprichou na frase de efeito: “Temos a possibilidade de, finalmente, neste primeiro grande passo, retirar as nossas máscaras e trazer o sorriso de volta”. Num gesto que pretendia ser teatral, arrancou do rosto e enfiou num bolso a máscara negra. Mas não sorriu. Tampouco sorriram os garçons que acompanharam a cena pela TV. Mesmo quando circulam pelos jardins de um restaurante, continuam proibidos de mostrar a cara.
 
A extensão da medida a espaços fechados incorporou São Paulo ao grupo de sete Estados que já haviam universalizado a abolição da máscara. Cinco unidades da federação só aplicam a restrição em lugares fechados. Outros quatro suspenderam a exigência em locais abertos e condicionaram a liberação de espaços fechados ao alcance de um índice de vacinação fixado pelos municípios. A vanguarda do atraso, que continua exigindo o uso de máscaras até em praias e parques, agrupa dez Estados: Bahia, Pernambuco, Ceará, Sergipe, Paraíba, Piauí, Pará, Tocantins, Roraima e Amapá. Alguns pretendem reexaminar o assunto com urgência. Outros parecem esperar que a última esquadrilha de vírus chineses voe de volta para o país natal. Visto em seu conjunto, o mapa do Brasil redesenhado pela pandemia impõe uma boa pergunta: onde fica exatamente a linha divisória em que a cautela acaba e começa a covardia? Esteja onde estiver, está claro que faltam altivez e bravura no universo dos governadores e prefeitos. Desapareceram os intimoratos condutores de multidões. A coragem sumiu.

O medo não seleciona alvos por faixas etárias, categorias socioeconômicas e níveis de escolaridade. E é também altamente contagioso

Na semana passada, o alagoano Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, adiou por tempo indeterminado a ressurreição integral das sessões presenciais. “É preciso preservar a saúde não só dos parlamentares, mas também dos servidores e dos colaboradores”, alega Lira. Em todo o Brasil, numerosas universidades e escolas públicas ou particulares tratam aulas presenciais como coisa do passado. Faz dois anos que o ensino tem ficado para depois. Nesta quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal reiterou a preferência por sessões virtuais. 

O Distrito Federal deixou há meses de exigir o uso de máscaras em qualquer lugar de Brasília. Mas a Câmara dos Deputados não é um lugar qualquer. Muito menos o Pretório Excelso. 
Se até chefes dos Poder Judiciário e do Poder Legislativo preferem ficar em casa (de máscaras), é compreensível a presença nas ruas de multidões de brasileiros com o rosto coberto. Como o coronavírus, o medo não seleciona alvos por faixas etárias, categorias socioeconômicas e níveis de escolaridade. E é também altamente contagioso.

A eficácia da máscara sempre dividiu opiniões. Uma reportagem publicada na Edição 97 da revista Oeste lembrou que, no início da crise sanitária, a Organização Mundial da Saúde desaconselhou o uso dessa proteção por pessoas saudáveis. Em fevereiro deste ano, Leana Wen, especializada em saúde pública e analista médica da CNN norte-americana, afirmou que “o uso dessa proteção facial deve ser uma escolha individual”. Uma pesquisa recente constatou que a eficácia da máscara de pano oscila entre 2,5% e 10%.

Para o médico Roberto Zeballos, clínico geral e doutor em imunologia, o uso de máscaras ajudou a evitar infecções decorrentes de aglomerações. “Mas novos estudos mostraram que a eficácia da máscara é baixa”, pondera. “E a pandemia está claramente em queda no Brasil”. Para o médico, é provável que o elevado número de infecções provocadas pela variante Ômicron nos últimos meses tenha contribuído para que o Brasil alcançasse a imunidade de rebanho. “Todo paciente que vence a doença se imuniza”, garante Zeballos. “Quanto mais pessoas imunizadas, maiores as chances de alcançar a imunidade coletiva”. [imunidade de rebanho, condição defendida pelo presidente Bolsonaro, desde o inicio da pandemia.]

O ainda numeroso bloco dos mascarados será progressivamente despovoado pelo ritmo intenso da vacinação e pelo enfraquecimento da covid-19. Perderá inteiramente o sentido quando a OMS, que fingiu por dois meses enxergar uma endemia onde havia uma pandemia assassina, agora reluta em conferir o status de endemia a uma pandemia em estágio terminal. Corretamente, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, já avisou que o justo rebaixamento será oficializado pelo Brasil. A pedra no caminho é um Supremo Tribunal Federal transformado em partido de oposição. O presidente da República foi proibido de dar palpites em questões ligadas à covid-19. E o papel que caberia a Bolsonaro foi confiscado por superjuízes que se metem em tudo, de preferência em assuntos que desconhecem. Vírus chinês, por exemplo.

Se o STF permanecer em quarentena, será mais rápida a volta à normalidade.  

O Brasil sensato cansou-se da montanha-russa que enfileira um passaporte sanitário injustificável, indecorosas exumações da censura, surtos autoritários, CPIs cafajestes, imposições alfandegárias e outras brasileirices prepotentes. Muitos países europeus já entenderam que, se um vacinado pode infectar e ser infectado, quem rejeita a imunização não representa um risco para a humanidade. A intolerância insolente, amparada num duvidoso “rigor científico”, está na origem dos absurdos castigos impostos ao sérvio Novak Djokovic. 
O esplêndido campeão foi preso por autoridades australianas, execrado publicamente e deportado por não ter sido vacinado contra o coronavírus. Passados dois meses, a França poupou Djokovic da apresentação de comprovantes inócuos e liberou-o para a disputa do mítico torneio de Roland Garros, no fim de maio. O Brasil saíra ganhando se seguir o exemplo da França.

A pandemia vai morrendo de exaustão. Os brasileiros estão fartos de exigências sem sentido. É hora de aprender a conviver com outra doença endêmica. Chega de rendições. Basta de covardia.

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Augusto Nunes - Paula Leal - colunistas Revista Oeste