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domingo, 19 de fevereiro de 2023

O vício do prazer - Revista Oeste

Ana Paula Henkel

Estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e alta dopamina: drogas, comida, notícias, jogos de azar, compras, redes sociais e seus cliques e por aí vai 

 Ilustração: Shutterstock

Ilustração: Shutterstock 

Numa recente viagem ao Havaí com a minha família, tive a oportunidade de visitar pela primeira vez Pearl Harbor, a histórica base naval norte-americana na Ilha de Oahu, que foi alvo de um ataque japonês surpresa, em 7 de dezembro de 1941, e que precipitou a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. 
A Frota do Pacífico dos EUA estava estacionada em Pearl Harbor desde abril de 1940 e, além de quase cem embarcações, incluindo oito navios de guerra, havia importantes forças militares e aéreas na ilha. O ataque à base prejudicou gravemente a força naval e aérea dos EUA no Pacífico. No entanto, dos oito navios de guerra, todos, exceto o Arizona e o Oklahoma, foram eventualmente consertados e voltaram ao serviço.

Hoje, Pearl Harbor continua sendo uma base militar ativa, sede da Frota do Pacífico e um marco histórico nacional. Para os que tiverem a oportunidade, o Memorial USS Arizona, um museu a céu aberto exatamente sobre um dos navios abatidos pelos japoneses, é um lugar que deve ser visitado por todos que desejam prestar verdadeiras homenagens a quem, de fato, lutou pela liberdade que temos hoje. 

Ali, olhando para os destroços nas águas no Pacífico e andando sobre um dos navios abatidos, é impossível não se emocionar. Local de descanso de 1.102 dos 1.177 marinheiros e fuzileiros navais mortos no USS Arizona durante o ataque a Pearl Harbor, na parte final do memorial estão entalhados em uma parede de mármore os nomes dessas pessoas e suas idades. A maioria dos mortos tinha idades entre 17 a 23 anos. Além de um marco histórico, o navio USS Arizona é hoje um cemitério militar ativo dos EUA. À medida que os sobreviventes do ataque ao Arizona falecem, muitos deixam registrado que desejam que suas cinzas sejam espalhadas na água sobre o navio ou colocadas em urnas para serem depositadas no fundo do navio no mar.

Pearl Harbor: três encouraçados norte-americanos atingidos. 
Da esquerda para a direita: U.S.S. West Virginia, severamente 
danificado; USS Tennessee, danificado; e USS Arizona, 
afundado em 7 de dezembro de 1941 | Foto: Shutterstock

É praticamente impossível sair do lugar sem derramar alguma lágrima. Eu olhava para os meus filhos, com 22 e 17 anos, e tentava imaginar o que aquela geração viveu. Chegamos em casa e iniciamos uma verdadeira maratona na frente da TV sobre a Segunda Guerra Mundial. Eu já escrevi em alguns artigos aqui em Oeste passagens e eventos com Winston Churchill, por exemplo, e as lições deixadas por homens de seu quilate. O que a visita a lugares como Pearl Harbor nos traz é a perspectiva de que Churchill, um dos integrantes da minha assembleia de vozes, na verdade, é a ponta final e famosa de uma época de homens e mulheres raríssimos hoje em dia.

Sente-se neste fim de semana com os filhos, sobrinhos, netos e, olhando as filmagens do “Dia D”, em 6 de junho de 1944, tente não se emocionar diante de uma realidade que hoje pode parecer apenas páginas de um livro de história. A verdade é que ali, uma geração inteira de homens e mulheres foi forjada no que há de mais cruel e mais completo que um ser humano pode receber
A dor, a perda, a coragem, a resiliência, o fardo, a morte, o medo, o alívio… a vitória. A divindade da gratidão plena por estar vivo e por poder voltar para as situações simples e significativas da vida.
E aí, quando desligamos a TV, quando fechamos os livros de história e caímos com os pés plantados e seguros no chão da atual realidade, o impacto é bruto. Mais brusco até do que olhar as apavorantes cenas de guerra real. O que aconteceu com a humanidade?  
Como partimos de seres humanos da estirpe daqueles que lutaram e deram a vida pela nossa vida e liberdade que temos hoje para um mundo narcisista, hedonista e cheio de invenções sem pé nem cabeça, cheio de problemas inventados por cabeças desocupadas? 
Esse mundo atual, onde tudo é problema, tudo é ofensa, tudo é protegido por um tipo de plástico bolha virtual para que ninguém se machuque com palavras… É isso mesmo que fizemos com a liberdade conquistada por soldados – RAPAZES DE 20 E POUCOS ANOS! – que fizeram o sacrifício final pelo mundo?
 
Enquanto olho as imagens do desembarque histórico nas praias da Normandia, o estômago embrulha os pensamentos de que agora não podemos mais falar que homem é homem. Mas também não podemos mais falar que mulher menstrua, que mãe é mãe, e que mulher é mulher. 
Não podemos mais falar que algo é feio e grotesco. Tudo é lindo. Porcaria é lindo. Música ruim é linda. Filme ruim ganha Oscar. Se criticar, é racismo, homofobia, misoginia, e uma lista de “ismos” e “fobias” interminável. A conclusão do que é belo é feita pelos outros, você só tem de balançar a cabeça e concordar. Não, você não tem opinião. Você não terá nada – nem opinião – e será feliz, lembra? 
Davos está aí para nos lembrar disso. Os ungidos da elite global já decidiram que o problema é o pum da vaca e o que você come. Eles se reúnem para decidir como salvar nossas vidas de nós mesmos, não apenas com o alimento do corpo, mas com o alimento da alma, e, para isso, há também os ungidos das artes, da saúde, da imprensa. 
Você não sabe o que é bonito ou saudável. Nem eu. Mas fica tranquilo, os que pintam o cabelo de roxo, que relativizam a beleza e a saúde, que cantam músicas desafinadas e que não sabem se são mulheres, homens, gays, não binários ou uma das 48 letras do alfabeto de gêneros – eles sabem o que é melhor para você e o mundo.
Tropas norte-americanas indo para Utah Beach, durante a
 invasão do Dia D, na Normandia, em junho de 1944 - 
 Foto: Shutterstock

Um dos pontos mais marcantes dessa geração de mimados, como brilhantemente expõe Jordan Peterson, psicólogo canadense e um dos maiores pensadores contemporâneos, é o fato que essa turba jacobina que quer “consertar” o mundo e que tem “todas as soluções” para isso nem sequer arruma a própria cama, o próprio quarto. No espetacular livro Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, Theodore Dalrymple, nosso parceiro aqui em Oeste, desmascara o sentimentalismo oculto que sufoca a atual sociedade e o debate público. Sob os múltiplos disfarces de criar bem os filhos, “cuidar dos desprivilegiados e oprimidos”, ajudar os menos capazes e fazer o bem em geral, estamos alcançando exatamente o oposto. Todo esse trabalho para com o único objetivo de nos sentirmos bem com a nossa própria sombra, e, claro, por que não aproveitar aquela sinalizada de virtude nas redes sociais e marcar uns pontinhos? Dalrymple leva o leitor a uma caminhada que mexe com as emoções públicas e o papel do sofrimento, mostrando os resultados perversos quando abandonamos a lógica em favor do culto ao sentimento. Baseando-se em sua longa experiência de trabalho com milhares de criminosos e mentalmente perturbados, Dalrymple prova que só podemos esperar fazer a diferença se começarmos a questionar esse culto ao vitimismo e ao sentimentalismo.

Outro excelente livro que aborda o assunto é Nação Dopamina, escrito pela psiquiatra Dra. Anna Lembke. No livro, recentemente lançado no Brasil, Lembke explora as novas descobertas científicas que explicam por que a busca incansável do prazer leva à dor, e como estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e alta dopamina: drogas, comida, notícias, jogos de azar, compras, jogos, mensagens de texto, aplicativos de relacionamento (não deu certo com alguém? Troca. Troca. Troca…), redes sociais e seus cliques e por aí vai.

“O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, sete dias por semana, para uma geração conectada”

A Dra. Lembke é diretora médica de medicina da Universidade de Stanford e chefe da Clínica de Diagnóstico Duplo da Stanford Addiction Medicine, e relata que seus pacientes que lutam contra o abuso de substâncias geralmente acreditam que seus vícios são alimentados por depressão, ansiedade e insônia. Mas ela afirma que o oposto costuma ser verdadeiro: os vícios podem se tornar a causa da dor – não o alívio dela. Isso porque o comportamento desencadeia, entre outras coisas, uma resposta inicial da dopamina, que inunda o cérebro de prazer. No entanto, uma vez que a dopamina passa, a pessoa geralmente se sente pior do que antes: “Eles começam a usar a droga para se sentirem bem ou sentirem menos dor”, diz Lembke.Com o tempo, com a exposição repetida, essa droga funciona cada vez menos. Mas eles se veem incapazes de parar, porque, quando não estão usando, ficam em estado de déficit de dopamina. A dopamina é um neurotransmissor que envia sinais de um neurônio para outro e é provavelmente o neurotransmissor mais importante em nossa experiência de prazer, motivação e recompensa. A dopamina é o caminho final comum para todas as experiências prazerosas, intoxicantes e gratificantes. O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, sete dias por semana, para uma geração conectada.”

Outro dia, sentados à mesa de jantar, minha enteada “chamou nossa atenção” e “nos convidou” a refletirmos pelas palavras que dissemos. Lembrem-se, resido na Califórnia, talvez o Estado mais progressista e sentimentalista que há hoje nos Estados Unidos junto com Nova Iorque. O “crime hediondo”, cometido em um simples comentário durante o jantar, foi dizer que uma colega do time de vôlei dela estava bem acima do peso, e que isso a estava prejudicando em quadra. Na lista de “fobias” da moda, a carta “gordofobia” foi puxada para o assunto e não foi sequer levado em consideração o argumento – de dois atletas olímpicos – de que a jogadora em questão não está apenas rendendo bem menos do que o esperado, mas está em um ciclo de dois anos de contusões intermináveis e que nunca melhoram em articulações e ligamentos, claramente ligadas ao sobrepeso. Tudo isso com apenas 17 anos. A parceira de time tem o sonho de ser convidada a ingressar em uma boa universidade norte-americana através do esporte e, obviamente, sua atual condição atlética não vai colaborar para a realização desse sonho. Na atual balança do ombro amigo (situação vivida também por técnicos esportivos) é mais correto esconder a verdade com mentiras fofas sobre “aceitação corporal” e ajudar a sepultar os sonhos das boas amizades em silêncio para que, pelos menos, as palavras não machuquem.

Os norte-americanos estão cada vez mais gordos, e isso não é sobre aceitar nossa aparência, nosso corpo e nossos defeitos. Mais de dois terços dos adultos nos Estados Unidos estão acima do peso ou têm obesidade, relata o site sobre saúde Heathline.com. O CDC norte-americano, órgão governamental tão respeitado durante a pandemia, diz que entre 1999 e 2020, “a prevalência da obesidade aumentou de 30,5% para 41,9%” e a obesidade grave “aumentou de 4,7% para 9,2%”. Mesmo com esses números alarmantes, mas na onda da lacração – a chamada cultura woke, aqui nos EUA –, marcas como Victoria Secret, Calvin Klein e outras empresas de roupas tentam agora lucrar com o sobrepeso perigoso para a saúde disfarçando suas campanhas capitalistas como “tamanho inclusivo”.

É sabido, e é preciso salientar, que muitas pessoas lutam com seu peso por razões fora de seu controle – problemas de saúde, predisposições genéticas e assim por diante. E, mesmo quando o excesso de peso das pessoas é culpa delas, é claro que nunca há motivo para envergonhá-las ou discriminá-las. Mas, se sempre houve problemas de saúde e hereditários que afetam a capacidade de manter um peso saudável, então, por que o enorme aumento na porcentagem de pessoas com sobrepeso mórbido nos últimos anos, quando sabemos mais sobre nutrição, exercícios e saúde do que nunca?

Nosso padrão de vida e qualidade de vida estão melhores do que nunca. O alimento nunca foi tão abundante e nunca tivemos tantos avanços tecnológicos em várias áreas. Até o trabalho físico diminuiu drasticamente. O que realmente mudou nos últimos anos é o Grande Despertar, parte da agenda nefasta globalista de “desconstrução” do ser humano e sua alma para que percam seu livre-arbítrio, sua apreciação pelo belo, pelo sagrado, pelas tradições. E tudo isso começa pela perda do cuidado do templo mais sagrado que temos – nosso corpo.

Vivemos num mundo onde o público exige exibições vulgares de emoção em um jogo de coação contra qualquer um que não se conforme com o absurdo desse mundo paralelo criado e que é empurrado goela abaixo. As boas tradições estão sendo corroídas pela hegemonia cultural sentimental que insiste que qualquer sentimento é, por definição, verdadeiro e algo a ser nutrido. O sentimentalismo está nos destruindo. Ninguém tem o direito de ser permanentemente feliz. As crianças precisam aprender a ficar entediadas, a ouvir “nãos” e não terem todos os seus sonhos e fantasias realizados.

Por onde começar? Talvez pela história. Mostrando o que rapazes e moças fizeram por nós para que pudéssemos ter a liberdade de escolher nossos estúpidos pronomes. Mostrando que podemos escolher o que quisermos hoje em dia, mas que não podemos – jamais – fugir das consequências de nossas escolhas.

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