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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Celebração do 8 de Janeiro acabou sendo uma cena de comédia com discursos de Lula e Moraes - O Estado de S. Paulo

 J. R. Guzzo

Presidente disse que sua ‘história’ pessoal é ‘garantia da existência inabalável da democracia’ e ministro do STF fez oração irada contra ‘apaziguamento’, nome que dá aos esforços em busca de paz política no Brasil

A tentativa de transformar o dia 8 de Janeiro em data nacional destinada a celebrar a sobrevivência da democracia no Brasil acabou sendo uma cena de comédia.  
A qualidade das autoridades que apareceram sentadas na fila de cadeiras do palco já era uma garantia de nível limitado o que ficou confirmado, a seguir, pelo que disseram em seus discursos.  
Lula fez um dos piores. Disse, num desses surtos de mania de grandeza que tem tido depois que saiu da cadeia (e com frequência cada vez maior), outro disparate em estado bruto – o de que a sua “história” pessoal é uma “garantia da existência inabalável da democracia neste país”. 
O ministro Alexandre de Moraes (a quem chamou de “companheiro da suprema corte”) ficou no mesmo padrão. Fez uma oração irada contra o “apaziguamento”, nome que ele dá aos esforços em busca de paz política no Brasil radicalizado de hoje – e exigiu mais uma vez a “regulamentação imediata das redes sociais”, ou seja, a censura. 
Mais humilhante que tudo, para os organizadores, foi a absoluta falta de povo na sua celebração.
Um acontecimento que, segundo eles próprios, foi um dos mais graves da história moderna do Brasil, tinha de ser lembrado com algum tipo de presença popular. 
Se o Brasil, como dizem, foi salvo de uma catástrofe de proporções desconhecidas, então seria preciso que algum brasileiro de carne e osso aparecesse para dar apoio às celebrações – e agradecer a dádiva recebida de Lula e dos companheiros da “suprema corte”
Afinal, a ex-presidente do tribunal comparou o patético quebra-quebra de Brasília com o ataque do Japão a Pearl Harbour – o bombardeio contra o Havaí que deixou 2.400 mortos em 1.941 e levou os Estados Unidos a entrarem na Segunda Guerra Mundial
 
Se foi isso tudo, então o povo teria de lotar a Paulista de ponta a ponta para comemorar a salvação da pátria.  
Mas o que houve foi exatamente o contrário: uma reuniãozinha a portas trancadas num salão do Senado Federal, com proibição de entrada do público e 2.000 policiais em volta do prédio, para impedir que qualquer cidadão chegasse perto. É a democracia “não-presencial” do Brasil de hoje. Os gatos gordos ficam no salão do Senado, onde são filmados pela televisão, elogiam-se uns aos outros e são aplaudidos pelos jornalistas
O povo fica em “home office”, ou em ambiente “remoto” ou em qualquer lugar, desde que não apareça.

Não se trata, naturalmente, de um erro de planejamento do governo

A comemoração do dia 8 de Janeiro não teve a presença da população brasileira porque nada do que o governo Lula e o STF organizarem tem a mais remota chance de atrair o povo brasileiro para a praça pública. Foi assim porque tinha de ser assim. 
Quanto à “vitória sobre o golpe” especificamente, há uma dificuldade suplementar: o povo, simplesmente, não acredita que foi salvo de nada, porque sabe que não foi ameaçado, nem correu risco algum. 
Como poderia ser diferente se, para começar, a imensa maioria dos brasileiros não leva a sério a fábula que o governo está contando há um ano?  
Uma das últimas pesquisas sobre o assunto informa que só 20% das pessoas acreditam que houve uma “tentativa de golpe” – o que é perfeitamente natural, levando-se em conta que não houve nenhuma tentativa de golpe.  
A grande maioria condena os atos de vandalismo cometidos contra os edifícios dos Três Poderes.  
Mas não acredita no que Lula, o STF e a mídia dizem. 
É inevitável, assim, que grandes eventos para festejar o triunfo da democracia acabem do mesmo jeito que acabaram as comemorações do 8 de Janeiro – como uma caricatura.
 
 
J. R. Guzzo,  colunista - O Estado de S. Paulo
 
 
 

quarta-feira, 26 de julho de 2023

O golpe do algodão-doce - Redação

Revista Oeste

Ministros do Supremo tentam criar uma cortina de fumaça para esconder a confissão de Luís Roberto Barroso sobre o novo consórcio de poder no país


Rosa Weber, ministra do STF, comparou os atos de vandalismo que ocorreram no 8 de janeiro em Brasília com o ataque à base militar em Pearl Harbor, nos Estados Unidos - Foto: Montagem Revista Oeste/Divulgação/Wikimedia Commons

Avessa a qualquer tipo de holofote desde que chegou à Corte, em 2011, Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), resolveu fazer um discurso na semana passada.  
A ministra gaúcha comparou os atos de vandalismo ocorridos no dia 8 de janeiro, em Brasília, ao ataque-surpresa do Japão a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, que selou a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

O bombardeio kamikaze no Havaí deixou mais de 2,4 mil mortos, centenas de feridos e um enorme rastro de destruição, especialmente à esquadra americana. O episódio é conhecido como “Dia da Infâmia” e foi amplamente revisitado em livros, manuais de estratégia militar e pelo cinema.publicidade

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A tarde do dia 8 de janeiro em Brasília foi marcada por protestos de civis na Praça dos Três Poderes contra a volta de Lula. 
Terminou como ninguém queria: com a depredação de prédios públicos por um grupo de estúpidos [até o momento,não se sabe se eram apenas estúpidos, ou estúpidos com a agravante de serem esquerdistas infiltrados, buscando fornecer pretexto para o novo governo endurecer o regime e o combate aos opositores - em uma versão tupiniquim do incêndio no Reichstag.]  que se misturaram a cidadãos indignados com o processo eleitoral, o mais turbulento desde a redemocratização do país — muito por causa da interferência da Justiça Eleitoral. Felizmente, não houve feridos em Brasília.Rosa Weber, presidente do STF | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
 
As investigações sobre a responsabilidade das autoridades no 8 de janeiro estão emperradas porque o governo Lula não tem interesse na divulgação da parte não contada da história.  
A operação de blindagem é comandada por Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, que controla a Polícia Federal. 
Do pouco que se sabe sobre o lado oculto, o então general do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Gonçalves Dias, circulou entre os manifestantes e acabou demitido em tempo recorde — até hoje, o governo impede seu depoimento à CPMI no Congresso Nacional. 
As imagens foram obtidas pela emissora CNN porque, do contrário, permaneceriam escondidas.
 
Rosa Weber leu seu discurso durante o Encontro Nacional da Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC). Ela foi homenageada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que até hoje não divulgou uma nota contra as arbitrariedades — em alguns casos, crueldades — do Supremo com os presos.  
Dezenas de advogados reclamam de falta de acesso aos autos contra mães, avós e pais que não atiraram uma única pedra. 
Boa parte assas pessoas, cerca de 1,5 mil no total, ainda será julgada em lotes humanos. A defesa teme que inocentes sejam condenados por, simplesmente, terem saído de casa naquela tarde rumo à Esplanada dos Ministérios com uma bandeira do Brasil à mão.
 
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Cortina de fumaça
Por que a discreta Rosa Weber resolveu trazer o 8 de janeiro às manchetes?
Desde a semana passada, está em ação uma operação para apagar o incêndio causado por Luís Roberto Barroso. Contagiado pela plateia da União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela militância do PCdoB, ele subiu no palanque, afrouxou a gravata e — microfone em punho disse uma frase que escancarou o que aconteceu no Brasil: “Nós derrotamos o ‘bolsonarismo'”.

Na quarta-feira, 19, a oposição protocolou um pedido de impeachment contra Barroso. O documento foi assinado por deputados e senadores. A Lei nº 1079/50, conhecida como Lei do Impeachment, proíbe que ministros do STF se envolvam em atividades político-partidárias. O congresso da UNE, além de político, é partidário, porque a organização é comandada pelo PCdoB (leia reportagem nesta edição).

O caso será analisado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Desde 2019, Pacheco e seu antecessor na cadeira, Davi Alcolumbre (UB-AP), receberam 80 representações contra integrantes do Supremo e não deram andamento a nenhuma. Tampouco há prazo para isso.

À fala de Rosa, soma-se a exaustiva cobertura da velha imprensa sobre a suposta agressão envolvendo o ministro Alexandre de Moraes na Itália. Segundo a mídia, Alexandre Barci de Moraes, filho do ministro, teria sido agredido fisicamente por brasileiros ao defender o pai de xingamentos.
[a mídia, inclusive com ilustrações da versão dos fatos, apresenta o filho do ministro, o 'agredido'  como um adolescente; o 'adolescente' é um homem feito, com quase 30 anos e seu agressor um idoso de 75 anos.]

Até agora, não foram disponibilizadas imagens do Aeroporto de Roma. [a não disponibilização de imagens, facilita a circulação de narrativas, que podem distorcer o que realmente ocorreu - facilitando a divulgação de 'versões' adaptadas à conveniência dos divulgadores - mas não distorcem detalhes físicos dos envolvidos.]

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Não havia, de acordo com constitucionalistas, motivo para mandar a polícia ao endereço da família.
Foto: Reprodução O Estado de S. Paulo (19/7/2023)

Turismo supremo
O episódio em Roma também joga luz sobre o intenso roteiro de viagens internacionais dos ministros do STF, onde eles acabam se manifestando sobre questões nacionais. 
No caso da Itália, Moraes viajou a convite do Centro Universitário Alves Faria (Unialfa), uma faculdade de Direito de Goiânia, para uma palestra em português na histórica Universidade de Siena. 
As informações foram divulgadas pela BandNews.

O Grupo José Alves, que controla a Unialfa, é dono da Vitamedic, fabricante da ivermectina, condenada pela Justiça gaúcha por “danos à saúde”.  
Há dois anos, Moraes determinou a abertura de um novo inquérito contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por supostamente difundir notícias falsas sobre a covid-19. Na época, Bolsonaro associou a vacinação contra a covid-19 ao risco de desenvolver Aids. Ele proferiu as declarações em vídeos publicados nas redes sociais, posteriormente retirados do ar.

A condenação imposta à Vitamedic é em primeira instância, ou seja, é possível que o processo chegue em fase recursal ao Supremo Tribunal Federal.

A belíssima Siena, na região da Toscana, não foi o único destino internacional dos togados neste mês. Moraes e Gilmar Mendes — que promoveu um evento em Lisboa — estiveram em Valladolid, na Espanha. 

Foi numa comitiva dessas ao exterior que Luís Roberto Barroso se sentiu importunado por um brasileiro nas ruas de Nova York e respondeu: “Perdeu, mané, não amola”.  
Resta saber se, desta vez, o Senado vai exercer seu papel institucional ou se não há mesmo limites para os poderes supremos. 
 Até hoje uma frase folclórica circula nos corredores do Congresso Nacional quando surge a indicação de um novo nome para ser sabatinado ao STF: “Alguns ministros acham que são deuses”. Atualmente, eles têm certeza.
 
 

Leia também “Supremo Tribunal Político”

 

Redação - Revista Oeste 

 

 

domingo, 19 de fevereiro de 2023

O vício do prazer - Revista Oeste

Ana Paula Henkel

Estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e alta dopamina: drogas, comida, notícias, jogos de azar, compras, redes sociais e seus cliques e por aí vai 

 Ilustração: Shutterstock

Ilustração: Shutterstock 

Numa recente viagem ao Havaí com a minha família, tive a oportunidade de visitar pela primeira vez Pearl Harbor, a histórica base naval norte-americana na Ilha de Oahu, que foi alvo de um ataque japonês surpresa, em 7 de dezembro de 1941, e que precipitou a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. 
A Frota do Pacífico dos EUA estava estacionada em Pearl Harbor desde abril de 1940 e, além de quase cem embarcações, incluindo oito navios de guerra, havia importantes forças militares e aéreas na ilha. O ataque à base prejudicou gravemente a força naval e aérea dos EUA no Pacífico. No entanto, dos oito navios de guerra, todos, exceto o Arizona e o Oklahoma, foram eventualmente consertados e voltaram ao serviço.

Hoje, Pearl Harbor continua sendo uma base militar ativa, sede da Frota do Pacífico e um marco histórico nacional. Para os que tiverem a oportunidade, o Memorial USS Arizona, um museu a céu aberto exatamente sobre um dos navios abatidos pelos japoneses, é um lugar que deve ser visitado por todos que desejam prestar verdadeiras homenagens a quem, de fato, lutou pela liberdade que temos hoje. 

Ali, olhando para os destroços nas águas no Pacífico e andando sobre um dos navios abatidos, é impossível não se emocionar. Local de descanso de 1.102 dos 1.177 marinheiros e fuzileiros navais mortos no USS Arizona durante o ataque a Pearl Harbor, na parte final do memorial estão entalhados em uma parede de mármore os nomes dessas pessoas e suas idades. A maioria dos mortos tinha idades entre 17 a 23 anos. Além de um marco histórico, o navio USS Arizona é hoje um cemitério militar ativo dos EUA. À medida que os sobreviventes do ataque ao Arizona falecem, muitos deixam registrado que desejam que suas cinzas sejam espalhadas na água sobre o navio ou colocadas em urnas para serem depositadas no fundo do navio no mar.

Pearl Harbor: três encouraçados norte-americanos atingidos. 
Da esquerda para a direita: U.S.S. West Virginia, severamente 
danificado; USS Tennessee, danificado; e USS Arizona, 
afundado em 7 de dezembro de 1941 | Foto: Shutterstock

É praticamente impossível sair do lugar sem derramar alguma lágrima. Eu olhava para os meus filhos, com 22 e 17 anos, e tentava imaginar o que aquela geração viveu. Chegamos em casa e iniciamos uma verdadeira maratona na frente da TV sobre a Segunda Guerra Mundial. Eu já escrevi em alguns artigos aqui em Oeste passagens e eventos com Winston Churchill, por exemplo, e as lições deixadas por homens de seu quilate. O que a visita a lugares como Pearl Harbor nos traz é a perspectiva de que Churchill, um dos integrantes da minha assembleia de vozes, na verdade, é a ponta final e famosa de uma época de homens e mulheres raríssimos hoje em dia.

Sente-se neste fim de semana com os filhos, sobrinhos, netos e, olhando as filmagens do “Dia D”, em 6 de junho de 1944, tente não se emocionar diante de uma realidade que hoje pode parecer apenas páginas de um livro de história. A verdade é que ali, uma geração inteira de homens e mulheres foi forjada no que há de mais cruel e mais completo que um ser humano pode receber
A dor, a perda, a coragem, a resiliência, o fardo, a morte, o medo, o alívio… a vitória. A divindade da gratidão plena por estar vivo e por poder voltar para as situações simples e significativas da vida.
E aí, quando desligamos a TV, quando fechamos os livros de história e caímos com os pés plantados e seguros no chão da atual realidade, o impacto é bruto. Mais brusco até do que olhar as apavorantes cenas de guerra real. O que aconteceu com a humanidade?  
Como partimos de seres humanos da estirpe daqueles que lutaram e deram a vida pela nossa vida e liberdade que temos hoje para um mundo narcisista, hedonista e cheio de invenções sem pé nem cabeça, cheio de problemas inventados por cabeças desocupadas? 
Esse mundo atual, onde tudo é problema, tudo é ofensa, tudo é protegido por um tipo de plástico bolha virtual para que ninguém se machuque com palavras… É isso mesmo que fizemos com a liberdade conquistada por soldados – RAPAZES DE 20 E POUCOS ANOS! – que fizeram o sacrifício final pelo mundo?
 
Enquanto olho as imagens do desembarque histórico nas praias da Normandia, o estômago embrulha os pensamentos de que agora não podemos mais falar que homem é homem. Mas também não podemos mais falar que mulher menstrua, que mãe é mãe, e que mulher é mulher. 
Não podemos mais falar que algo é feio e grotesco. Tudo é lindo. Porcaria é lindo. Música ruim é linda. Filme ruim ganha Oscar. Se criticar, é racismo, homofobia, misoginia, e uma lista de “ismos” e “fobias” interminável. A conclusão do que é belo é feita pelos outros, você só tem de balançar a cabeça e concordar. Não, você não tem opinião. Você não terá nada – nem opinião – e será feliz, lembra? 
Davos está aí para nos lembrar disso. Os ungidos da elite global já decidiram que o problema é o pum da vaca e o que você come. Eles se reúnem para decidir como salvar nossas vidas de nós mesmos, não apenas com o alimento do corpo, mas com o alimento da alma, e, para isso, há também os ungidos das artes, da saúde, da imprensa. 
Você não sabe o que é bonito ou saudável. Nem eu. Mas fica tranquilo, os que pintam o cabelo de roxo, que relativizam a beleza e a saúde, que cantam músicas desafinadas e que não sabem se são mulheres, homens, gays, não binários ou uma das 48 letras do alfabeto de gêneros – eles sabem o que é melhor para você e o mundo.
Tropas norte-americanas indo para Utah Beach, durante a
 invasão do Dia D, na Normandia, em junho de 1944 - 
 Foto: Shutterstock

Um dos pontos mais marcantes dessa geração de mimados, como brilhantemente expõe Jordan Peterson, psicólogo canadense e um dos maiores pensadores contemporâneos, é o fato que essa turba jacobina que quer “consertar” o mundo e que tem “todas as soluções” para isso nem sequer arruma a própria cama, o próprio quarto. No espetacular livro Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, Theodore Dalrymple, nosso parceiro aqui em Oeste, desmascara o sentimentalismo oculto que sufoca a atual sociedade e o debate público. Sob os múltiplos disfarces de criar bem os filhos, “cuidar dos desprivilegiados e oprimidos”, ajudar os menos capazes e fazer o bem em geral, estamos alcançando exatamente o oposto. Todo esse trabalho para com o único objetivo de nos sentirmos bem com a nossa própria sombra, e, claro, por que não aproveitar aquela sinalizada de virtude nas redes sociais e marcar uns pontinhos? Dalrymple leva o leitor a uma caminhada que mexe com as emoções públicas e o papel do sofrimento, mostrando os resultados perversos quando abandonamos a lógica em favor do culto ao sentimento. Baseando-se em sua longa experiência de trabalho com milhares de criminosos e mentalmente perturbados, Dalrymple prova que só podemos esperar fazer a diferença se começarmos a questionar esse culto ao vitimismo e ao sentimentalismo.

Outro excelente livro que aborda o assunto é Nação Dopamina, escrito pela psiquiatra Dra. Anna Lembke. No livro, recentemente lançado no Brasil, Lembke explora as novas descobertas científicas que explicam por que a busca incansável do prazer leva à dor, e como estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e alta dopamina: drogas, comida, notícias, jogos de azar, compras, jogos, mensagens de texto, aplicativos de relacionamento (não deu certo com alguém? Troca. Troca. Troca…), redes sociais e seus cliques e por aí vai.

“O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, sete dias por semana, para uma geração conectada”

A Dra. Lembke é diretora médica de medicina da Universidade de Stanford e chefe da Clínica de Diagnóstico Duplo da Stanford Addiction Medicine, e relata que seus pacientes que lutam contra o abuso de substâncias geralmente acreditam que seus vícios são alimentados por depressão, ansiedade e insônia. Mas ela afirma que o oposto costuma ser verdadeiro: os vícios podem se tornar a causa da dor – não o alívio dela. Isso porque o comportamento desencadeia, entre outras coisas, uma resposta inicial da dopamina, que inunda o cérebro de prazer. No entanto, uma vez que a dopamina passa, a pessoa geralmente se sente pior do que antes: “Eles começam a usar a droga para se sentirem bem ou sentirem menos dor”, diz Lembke.Com o tempo, com a exposição repetida, essa droga funciona cada vez menos. Mas eles se veem incapazes de parar, porque, quando não estão usando, ficam em estado de déficit de dopamina. A dopamina é um neurotransmissor que envia sinais de um neurônio para outro e é provavelmente o neurotransmissor mais importante em nossa experiência de prazer, motivação e recompensa. A dopamina é o caminho final comum para todas as experiências prazerosas, intoxicantes e gratificantes. O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, sete dias por semana, para uma geração conectada.”

Outro dia, sentados à mesa de jantar, minha enteada “chamou nossa atenção” e “nos convidou” a refletirmos pelas palavras que dissemos. Lembrem-se, resido na Califórnia, talvez o Estado mais progressista e sentimentalista que há hoje nos Estados Unidos junto com Nova Iorque. O “crime hediondo”, cometido em um simples comentário durante o jantar, foi dizer que uma colega do time de vôlei dela estava bem acima do peso, e que isso a estava prejudicando em quadra. Na lista de “fobias” da moda, a carta “gordofobia” foi puxada para o assunto e não foi sequer levado em consideração o argumento – de dois atletas olímpicos – de que a jogadora em questão não está apenas rendendo bem menos do que o esperado, mas está em um ciclo de dois anos de contusões intermináveis e que nunca melhoram em articulações e ligamentos, claramente ligadas ao sobrepeso. Tudo isso com apenas 17 anos. A parceira de time tem o sonho de ser convidada a ingressar em uma boa universidade norte-americana através do esporte e, obviamente, sua atual condição atlética não vai colaborar para a realização desse sonho. Na atual balança do ombro amigo (situação vivida também por técnicos esportivos) é mais correto esconder a verdade com mentiras fofas sobre “aceitação corporal” e ajudar a sepultar os sonhos das boas amizades em silêncio para que, pelos menos, as palavras não machuquem.

Os norte-americanos estão cada vez mais gordos, e isso não é sobre aceitar nossa aparência, nosso corpo e nossos defeitos. Mais de dois terços dos adultos nos Estados Unidos estão acima do peso ou têm obesidade, relata o site sobre saúde Heathline.com. O CDC norte-americano, órgão governamental tão respeitado durante a pandemia, diz que entre 1999 e 2020, “a prevalência da obesidade aumentou de 30,5% para 41,9%” e a obesidade grave “aumentou de 4,7% para 9,2%”. Mesmo com esses números alarmantes, mas na onda da lacração – a chamada cultura woke, aqui nos EUA –, marcas como Victoria Secret, Calvin Klein e outras empresas de roupas tentam agora lucrar com o sobrepeso perigoso para a saúde disfarçando suas campanhas capitalistas como “tamanho inclusivo”.

É sabido, e é preciso salientar, que muitas pessoas lutam com seu peso por razões fora de seu controle – problemas de saúde, predisposições genéticas e assim por diante. E, mesmo quando o excesso de peso das pessoas é culpa delas, é claro que nunca há motivo para envergonhá-las ou discriminá-las. Mas, se sempre houve problemas de saúde e hereditários que afetam a capacidade de manter um peso saudável, então, por que o enorme aumento na porcentagem de pessoas com sobrepeso mórbido nos últimos anos, quando sabemos mais sobre nutrição, exercícios e saúde do que nunca?

Nosso padrão de vida e qualidade de vida estão melhores do que nunca. O alimento nunca foi tão abundante e nunca tivemos tantos avanços tecnológicos em várias áreas. Até o trabalho físico diminuiu drasticamente. O que realmente mudou nos últimos anos é o Grande Despertar, parte da agenda nefasta globalista de “desconstrução” do ser humano e sua alma para que percam seu livre-arbítrio, sua apreciação pelo belo, pelo sagrado, pelas tradições. E tudo isso começa pela perda do cuidado do templo mais sagrado que temos – nosso corpo.

Vivemos num mundo onde o público exige exibições vulgares de emoção em um jogo de coação contra qualquer um que não se conforme com o absurdo desse mundo paralelo criado e que é empurrado goela abaixo. As boas tradições estão sendo corroídas pela hegemonia cultural sentimental que insiste que qualquer sentimento é, por definição, verdadeiro e algo a ser nutrido. O sentimentalismo está nos destruindo. Ninguém tem o direito de ser permanentemente feliz. As crianças precisam aprender a ficar entediadas, a ouvir “nãos” e não terem todos os seus sonhos e fantasias realizados.

Por onde começar? Talvez pela história. Mostrando o que rapazes e moças fizeram por nós para que pudéssemos ter a liberdade de escolher nossos estúpidos pronomes. Mostrando que podemos escolher o que quisermos hoje em dia, mas que não podemos – jamais – fugir das consequências de nossas escolhas.

Leia também “Uma guerra espiritual”

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Tudo o que você precisa saber sobre a situação constitucional do aborto nos EUA - Gazeta do Povo

André Uliano

Em janeiro de 2018, durante a tradicional Marcha pela Vida (March for Life), realizada anualmente na capital dos Estados Unidos, o então Presidente Donald Trump afirmou categoricamente: “Na minha Administração, sempre defenderemos o primeiro direito da Declaração de Independência, que é o direito à vida”. (...)

“Estamos protegendo a santidade da vida e da família como a base de nossa sociedade.”

Quatro anos depois, é possível dizer que poucos presidentes tiveram tanto sucesso e atuaram de um modo tão efetivo sobre algum tema. Após três nomeações chave para a Suprema Corte Americana, tudo indica que os Estados Unidos estão prestes a superar uma de suas decisões juridicamente mais equivocadas e moralmente mais infames: a do caso Roe v. Wade, de 1973, quando o Tribunal fixou a tese de que a Constituição americana garantiria um suposto “direito ao aborto”, de modo que os Estados-membros não poderiam tutelar penalmente a vida intrauterina, salvo no final da gravidez e mesmo assim de modo bastante restrito.

Embora esse não seja o tema do texto de hoje, cabe aqui abrir um parêntese: quando ouvimos algum discurso de justificação do ativismo judicial, é comum que se busque legitimar tal prática como algo conveniente e até imprescindível para proteger direitos humanos. A análise histórica, no entanto, não revela um quadro tão simples. Historicamente, o ativismo judicial foi responsável por legitimar a escravidão e a opressão contra negros, dificultar o combate à criminalidade, inclusive em crimes de corrupção, e – como no caso Roe v. Wade – legalizar violações ao direito à vida. Portanto, não há nada que indique que a atuação judicial tenha seu vetor sempre voltado para uma melhoria dos direitos fundamentais e do Estado de Direito.

Mas voltando ao tema do tratamento jurídico-constitucional do aborto nos Estados Unidos, o atual panorama da matéria foi fixado, basicamente, em três precedentes: Roe v. Wade; Doe v. Bolton; e, Planned Parenthood v. Casey. Falaremos de cada um deles à frente.

Entretanto, o que é hoje mais relevante e colocou o assunto novamente sob os holofotes é o fato de que a atual composição da Suprema Corte, uma das mais brilhantes e humanistas de sua história recente, poderá reapreciar a matéria ainda em 2022, no julgamento do caso Dobbs v. Jackson. A causa já foi instruída e está pronta para ser decidida. A previsão é que isso ocorra no meio do ano.

Para compreender toda essa discussão, creio que precisamos abordar os seguintes pontos:
1)
Como era tratado o aborto nos Estados Unidos antes da decisão de Roe v. Wade;
2) Quais os casos centrais da jurisprudência americana sobre o aborto e qual o estado atual da questão;
3) Por que isso poderá mudar em breve.

Neste artigo, veremos os dois primeiros tópicos (o regime jurídico do aborto nos EUA até 1973 e no pós-Roe até os dias atuais). No artigo da semana que vem veremos por que isso, provavelmente, está prestes a mudar (pra melhor).

 Como era tratado o aborto no direito americano antes do caso Roe v. Wade?
Segundo pesquisa histórica realizada pelos professores Robert P. George, da Universidade de Princeton, e John Finnis, o qual lecionou em Oxford e Notre Dame, o nascituro já gozava de status de pessoa e proteção jurídica desde os clássicos da Common Law, sistema jurídico herdado pelos Estados Unidos a partir do direito inglês. Essa conclusão se baseou na análise de autores que figuravam como referência no período de fundação do direito americano, como Edward Coke, William Blackstone e Henry de Bracton, assim como em alguns julgamentos dos inícios do país.

Havia, no entanto, certa discussão acerca de quando iniciaria a tutela especificamente penal, ou seja, a partir de que momento da gestação se tornaria crime a ação contra a vida do nascituro. Alguns sustentavam que isso deveria ocorrer apenas a partir da sexta semana de gravidez, outros a partir do momento em que a mãe fosse capaz de sentir os movimentos da criança, o que era fixado por volta da 15ª semana. De todo modo, fora do direito penal, em outros ramos do direito, mesmo antes desses marcos temporais, o aborto já era coibido e considerado ilícito. Por exemplo: contratos para prática de abortos eram nulos e não se concediam autorizações para estabelecimentos que visassem prestar serviços de aborto.

Com o ingresso no século XIX e o avanço das ciências e da bioética, a proteção jurídica desde a concepção ganhou força e se tornou hegemônica. Como consequência, foi deflagrado um movimento por parte de médicos e juristas para corrigir todo o direito americano, fortalecendo a proteção jurídica e penal do ser humano desde quando concebido no ventre materno.

Assim, conforme estudo da historiadora do direito Mary Ziegler, da Florida State University College of Law, por volta de 1857, a American Medical Association iniciou uma campanha em favor da proteção penal da vida intrauterina, apresentando argumentos morais, científicos e práticos. A campanha fora extremamente bem-sucedida e pelo ano de 1880, todos os Estados americanos já haviam estabelecido legislações que estabeleciam forte proteção da vida intrauterina e criminalizavam a prática de abortos eletivos, com algumas poucas exceções relativas a riscos à saúde física da mãe.

Esse dado é muito importante, porque ele revela que quando os Estados Unidos adotaram a 14ª Emenda à sua Constituição, em 9 de julho de 1868, prevendo que “nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida” (“nor shall any state deprive any person of life”), o sentido corrente da expressão (original public meaning) “qualquer pessoa” abrangia os nascituros desde a concepção. Logo, a Suprema Corte não teria como dizer – como infelizmente disse – que antes de 24ª semana de gestação não haveria interesse jurídico e respaldo constitucional para que os Estados tutelassem a vida intrauterina. Inclusive, como vimos no parágrafo anterior, foi exatamente nesse período em que a campanha pró-vida apresentava maior vigor no sentido de reformar a legislação a fim de ampliar a proteção jurídica da vida para desde o momento da concepção.

A prof. Mary Ziegler relata que esse quadro durou relativamente estável por cerca de um século. Em 1959, inicia-se um movimento contra aquele consenso. A American Law Institute começa, então, a minutar projetos de lei que flexibilizavam as regras sobre aborto, ampliando as exceções à sua criminalização, embora de modo ainda razoavelmente restrito. Alguns Estados, como Califórnia e Geórgia, chegaram a aprovar legislações que seguiam o projeto daquela organização. Mas foi em torno de meados da década de 60 do século passado, quando o movimento de contracultura atingiu em cheio o coração da América, que se iniciou um forte movimento pela ampla legalização do aborto: “feministas exigiam a revogação total de todas as restrições ao aborto, assim como membros do movimento de controle populacional (uma causa dedicada a conter o crescimento demográfico).”

Em 1970, os Estados do Havaí e Nova Iorque permitiram a prática de abortos eletivos, assim como Alaska e Washington. Essas legislações tiveram forte impacto no crescimento do número de manobras abortivas praticadas no país. Segundo dados do CDC, em 1970 foram 193.491 abortos legais praticados nos Estados Unidos, 52 para cada 1000 nascimentos. No ano seguinte, ele mais do que dobrou, chegando perto de meio milhão, sendo agora 137 para cada 1000 nascimentos. Em 1973, já era de 615.831 o número de abortos legais praticados na América, 196 para cada 1000 nascimentos. Ou seja, quase 1 a cada 5 crianças eram abortadas.

Numa crescente de aceitação na opinião pública, quando cerca de metade da população já apoiava a legalização do aborto, a Suprema Corte proferiu o julgamento do caso Roe v. Wade.
O que o direito constitucional americano diz sobre o aborto atualmente?
Como mencionado acima, o tratamento constitucional do aborto está hoje definido nos Estados Unidos, basicamente, por três precedentes: Roe v. Wade, Doe v. Bolton e Planned Parenthood v. Casey.

Vejamos cada um daqueles três casos inicialmente.
O que foi definido em Roe v. Wade?
O caso começou quando Norma McCorvey, uma jovem saudável de 21 anos, descobriu que estava grávida de seu terceiro filho. Desejando abortar, em março de 1970, litigando com o pseudônimo Jane Roe, ela processou o então Procurador-Chefe do Ministério Público do Texas, Henry Menasco Wade, requerendo que ele fosse obstado de ajuizar qualquer ação criminal em seu desfavor, caso ela de fato praticasse um aborto. Nessa época, a legislação criminal texana proibia o procedimento, exceto para proteger a vida ou a saúde da mulher. Em 1973, o caso foi julgado pela Suprema Corte americana.

O mais alto tribunal do país, no precedente que leva o pseudônimo da demandante e o sobrenome do Procurador-Chefe, Roe versus Wade, declarou inconstitucional o artigo do Código Penal do Texas que criminalizava o aborto. Mas não parou por aí: a Suprema Corte literalmente inventou um direito ao aborto. Os juízes alegaram que antes da 24ª semana de gravidez (início do terceiro trimestre) o feto não apresentaria viabilidade, assim compreendida como a "potencialidade do feto de viver fora do útero da mãe, ainda que com ajuda artificial". O critério utilizado é altamente controverso. De todo modo, partindo dessa premissa, o Tribunal concluiu que, no período de inviabilidade (dois primeiros trimestres de gravidez), a decisão sobre abortar ou não estaria resguardada pelo direito à privacidade, não havendo interesse legítimo dos Estados em proscrever a prática do aborto.

Com base em tal raciocínio,
a Suprema Corte proibiu que todos os estados americanos, assim como o governo federal, criminalizassem a prática de abortos eletivos, até a 24ª semana de gestação. O voto vencedor, que contou com a adesão de 7 dos 9 juízes, estabeleceu uma divisão da gravidez em três trimestres, e aplicou para cada um deles um regime jurídico próprio.

Em apertada síntese:
no primeiro trimestre, o aborto eletivo simplesmente deveria ser deixado sob livre decisão da gestante e seus médicos;
no segundo trimestre, o Estado poderia regular o aborto visando apenas a proteção da mãe, não do feto, implementando procedimentos razoáveis para assegurar a saúde materna;
por fim, no último trimestre (após a 24ª semana), quando se considerou que o feto já possuía viabilidade extrauterina, o Estado poderia regular e mesmo proibir criminalmente o aborto, exceto quando necessário, segundo juízo médico, para preservação da vida e saúde da mulher.

O que foi decidido, de relevante, no caso Doe v. Bolton?
Mesmo quanto ao último trimestre, no caso Doe v. Bolton, julgado no mesmo dia, mas que ficou bem menos famoso, a Suprema Corte decidiu que “os aspectos ‘físico, emocional, psicológico, familiar e de idade’ da mulher relacionam-se à sua saúde, autorizando que todos esses fatores possam ser levados em consideração para permitir o aborto após o sexto mês gestacional”.

Com isso, como bem constatou o Procurador da República Higor Rezende Pessoa:
“Na prática, a partir de 22 de janeiro de 1973, na linha dos precedentes Roe v. Wade e Doe v. Bolton, passa a América a permitir o aborto durante os nove meses de gravidez, tornando impossível a defesa da vida intrauterina por parte dos estados americanos ou do governo federal."
"Em resumo, o aborto passa a ser legal em qualquer circunstância (dificuldade financeira, conveniência social, rejeição do feto pelo sexo, por doença ou por motivo algum) durante os seis primeiros meses de gravidez; a partir do sétimo mês, o aborto é legal para resguardar a vida ou a saúde da mulher, sendo o último conceito (saúde) alargado pelo precedente estabelecido em Doe, que permite abortar até o nono mês, representando uma mudança radical no sistema jurídico de proteção da vida do nascituro nos Estados Unidos."

Quais foram as consequências dessas decisões da Suprema Corte?
O julgamento do caso Roe v. Wade chocou e polarizou a opinião pública americana.
E não foi para menos. É possível concluir com base nos dados que Roe deflagrou uma crise de violações a direitos humanos na América.

Segundo levantamento de Higor Rezende Ferreira, hoje, pelo menos 8 estados americanos permitem a realização do aborto até momentos antes do parto. A postura legislativa é tão radical que, dentre 198 países estudados no ano de 2017, os Estados Unidos encontravam-se entre um restrito grupo de 7 nações que admitiam o aborto após a 20ª semana de gestação. É importante salientar que as práticas abortivas utilizadas, especialmente em estágios mais avançados da gravidez, são manifestamente cruéis. Desde a decisão do caso Roe, mais de 60 milhões de abortos legalizados já foram praticados no país. Conforme levantamento do Instituto Guttmacher, abrangendo 7 estados americanos, “98.3% dos abortos nos EUA são eletivos, incluindo razões socioeconômicas, controle de natalidade e seleção de sexo do bebê. Os casos difíceis (hard cases) representam: em caso de estupro, 0.3%; incesto, 0.03%; real risco para a vida da mãe, 0.1%; riscos para a saúde da mãe, 0.8%; problemas de saúde dos fetos, 0.5%”.

As consequências da decisão da Suprema Corte acabaram por impulsionar fortemente o movimento pró-vida no país.

No campo jurídico, na própria década de 70, setores da sociedade e da academia, em larga medida envolvidos com movimentos pró-vida, começaram a desenvolver teorias de interpretação da Constituição mais fieis ao texto, à tradição do país e à intenção dos legisladores: é a fundação do chamado moderno originalismo. O Presidente Richard Nixon indicou o justice Rehnquist para a Suprema Corte, jurista alinhado com essa filosofia, o qual mais tarde chegou a ser Presidente da Suprema Corte e, em 1976, portanto pouco depois da decisão do caso Roe, escreveu famoso artigo crítico ao ativismo judicial.

Na década de 80, o icônico Presidente Ronald Reagan, vigoroso defensor de sociedades livres e responsáveis, e um dos principais nomes da vitória humanista contra o totalitarismo comunista, nomeou novos juízes para Suprema Corte, sobressaindo-se dentre eles o adepto das teorias originalistas e grande promotor dos direitos humanos, o conservador Antonin Scalia.

Ronald Reagan chegou a nomear outro famoso jurista conservador e originalista, Robert Bork, professor em Yale e Desembargador da Justiça Federal americana. Seu nome, no entanto, foi rejeitado pelo Senado. O presidente, então, indicou Anthony Kennedy para a vaga. Como veremos, essa substituição teria grandes repercussões para a causa do aborto no futuro.

De um modo ou de outra, as trocas na composição da Suprema Corte entre 1973 e o início da década de 90 levaram a uma forte expectativa de que o lamentável precedente do caso Roe v. Wade pudesse ser revertido. Essa expectativa cresceu quando um novo grande caso sobre o aborto chegou à Suprema Corte após a mudança em sua composição: o caso Planned Parenthood v. Casey.

O que a Suprema Corte decidiu no caso Planned Parenthood v. Casey?
O caso Casey tinha por objeto a legislação da Pensilvânia de 1982 (Pennsylvania Abortion Control Act) que impunha algumas restrições à prática do aborto: consentimento informado, com dados sobre o procedimento e os riscos do aborto a gestantes que procurassem tal serviço; período mínimo de 24 horas de espera entre a solicitação do aborto e sua prática; notificação dos pais, caso o aborto fosse solicitado por menores; e notificação do marido, caso o aborto fosse requerido por mulheres casadas.

Apesar da grande expectativa, o precedente do caso Roe foi mantido e reafirmado, embora com alterações. O voto vencedor contou com maioria apertada de 5 juízes, entre eles o justice Kennedy. A decisão manteve o critério da viabilidade da vida do feto fora do útero. A divisão rígida entre trimestres – absolutamente sem base no direito do país –, no entanto, foi abandonada.

O Tribunal, então, fixou que: antes da viabilidade, os Estados poderiam regular o aborto (por exemplo, com as restrições administrativas impostas pela legislação da Pensilvânia), mas não criminalizá-lo. E mesmo as restrições administrativas não poderiam resultar num ônus indevido (undue burden), descrito como um "obstáculo substancial no caminho de uma mulher que busca um aborto antes que o feto atinja a viabilidade". A Suprema Corte entendeu que uma das restrições da legislação analisada (notificação ao marido em caso de requerente casada) criava um ônus indevido e por isso ela foi julgada inconstitucional. Esse, contudo, foi o único trecho da legislação que acabou derrubado.

Após a viabilidade, a decisão fixou que os Estados podem proteger a vida do feto, banindo penalmente a prática de abortos não terapêuticos (eletivos).

O que aconteceu após Casey v. Planned Parenthood?
Depois do julgamento do caso Casey, houve inegável frustração por parte do movimento pró-vida. Mas também houve motivos para comemorar.

A decisão da Suprema Corte permitiu que vários estados passassem a dificultar práticas abortivas mediante regulação administrativa, ainda que não penal. A grande verdade é que a vagueza do standard utilizado (undue burden) deixou enorme margem à discricionariedade dos Estados. E o que governantes comprometidos com a causa da vida passaram a fazer desde então foi criar legislações que tornassem o aborto cada vez mais difícil, testando até onde iria a aceitação da Suprema Corte.

O movimento pró-vida seguiu crescendo nos Estados Unidos. Eles perceberam algo fundamental: “para dar um fim ao aborto, conquistar corações é mais importante do que mudar as leis”. Com as novas tecnologias que permitem a percepção da humanidade do feto desde muito cedo e com a divulgação da desumanidade dos procedimentos abortivos, o movimento pró-vida conquistou adeptos.

Desde o julgamento de Casey, o número de abortos legais caiu nos Estados Unidos, revertendo uma tendência ascendente que vinha desde o início da década de 70.

Por fim, o destino conspirou a favor. Em um único mandato, o Presidente mais pró-vida da história recente americana, Donald Trump, pôde nomear três juízes para a Suprema Corte. E ele não desperdiçou a oportunidade que o destino lhe assegurou, garantindo uma tríade de excelentes indicações.

O resultado desse movimento será objeto de nosso artigo da semana que vem.

André Uliano, colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Covid para sempre - Revista Oeste

J. R. Guzzo

Foto: AZP Worldwide/Shutterstock
Foto: AZP Worldwide/Shutterstock
 
Imagine que você é um executivo de alguma empresa rica de São Paulo, ou coisa parecida, ganha R$ 60.000 por mês e está morando, digamos, na Praia da Pipa, um paraíso perto de Natal.  
Recebe o salário pontualmente, a cada mês; pode até ter um aumento. Seu plano médico cinco estrelas está de pé. Continua tirando férias, com 30% de adicional, e mantém o 13º inteirinho. Só que não é mais preciso comparecer ao local de trabalho. 
Nada de horário para entrar, possivelmente a grande divisão diária entre quem trabalha de verdade e o resto da espécie humana. Nada de trânsito. Nada de stress
Agora você se levanta à hora que quiser, faz surfe de manhã, ou alguma outra atividade fisicamente correta, almoça coisas nutritivas e investe tempo “consigo mesmo” ou com a família, como recomendam os melhores consultores em qualidade de vida. 
A um momento qualquer, quando se sente preparado, senta-se na frente do computador e fica lá até julgar que terminou as tarefas do dia. 
Recebe então um elogio do chefe (caso tenha um chefe; é possível que seja uma empresa onde não há a brutalidade dos “níveis de hierarquia”), diz “valeu, cara” no Zoom e volta a cuidar das suas próprias coisas — até começar tudo de novo no dia seguinte. Que tal, como meio de ganhar a vida?
 
É melhor ainda do que parece. Preocupado, talvez, com uma possível desconfiança da empresa em relação a essa história toda? Tipo: “Será que vale a pena continuar pagando tudo isso para o sujeito ficar na Praia da Pipa? Será que esse negócio de home office vale mesmo o colosso que estão dizendo?” Esqueça. Todos à sua volta — e principalmente os que estão acima — convenceram a si mesmos, desde o primeiro dia de vida nova, que o “trabalho à distância” é puxadíssimo. 
Dez em dez executivos que vivem hoje na praia, ou na montanha, ou no Havaí, ou seja lá onde for, dizem que estão “trabalhando muito mais” fora do escritório. Garantem que sua produtividade “aumentou”. Que estão “mais focados”, que o trabalho está mais “intenso” e por aí afora. É claro que dizem isso. Quem fiscaliza e julga o resultado do “trabalho à distânciasão os próprios executivos; são eles que medem as horas trabalhadas, os índices de produtividade e a eficácia do que fazem. São eles que atestam que assim é melhor. Ou, então, quem faz a avaliação são os dirigentes de RH, seus irmãos gêmeos; jamais diriam o contrário, até porque eles mesmos, os RHs, também estão ganhando sem ir ao trabalho. Xeque-mate.
 
A mãe de todo esse mundo admirável é a covid. De um lado, a doença matou 5,5 milhões de pessoas pelo mundo, arruinou vidas e causou a destruição econômica que seria causada por uma guerra nuclear. De outro, está sendo uma benção extraordinária para muita gente
Sem ela, não haveria Praia da Pipa, nem qualidade de vida, nem salário integral sem sair de casa. 
Sem a covid, aliás, não haveria nenhuma das maravilhas que mudaram para muito melhor a vida diária de algumas centenas de milhões de pessoas pelo mundo. À essa altura, o que ganharam se transformou em “direitos adquiridos”. Precisam que a covid continue para continuar com suas novas conquistas. Quem vai querer voltar às realidades do passado e que continuam sendo as realidades do presente para a imensa maioria dos seres humanos? 
 
É por isso que, justo no momento em que a pandemia começou a ceder, apareceu a promoção desesperada da Ômicron como tinham aparecido antes os 50 diferentes tons de “cepa”.  
Para reforçar o impacto da nova “variante”, somaram-se no pacote pró-covid a gripe comum, a influenza H1000N5000, o resfriado, a dor de cabeça, a febre de 37 graus, o bicho-do-pé e tudo o mais que vier, de maneira que é praticamente impossível não estar doente hoje em dia. Conclusão: o combate permanente para “salvar vidas” tem de continuar, intacto — e, com ele, todo o mundo maravilhoso de vantagens que veio para a minoria, a começar pela turma do home office com surfe e outras belezas.

Com a covid, a sua vida melhora. Sem a covid, sua vida piora. De que lado você acha que eles estão?

É possível que nunca tenha havido, em toda a história da humanidade, uma campanha tão poderosa em favor de algum sistema de organização social como a que está sendo feita desde 2020 em torno da covid — e das “necessidades” de que a “vida mude” radicalmente para combater a doença. Também podem chamar essa campanha de cruzada, esforço de guerra, lobby ou lavagem cerebral — tanto faz. O que importa é que se trata de um movimento com poder inédito para mudar o mundo. Está acima de qualquer força conhecida até agora, ignora fronteiras nacionais e é capaz de juntar numa mesma neurose — e nos mesmos interesses objetivos — pessoas das mais diferentes convicções políticas, religiosas ou morais. O que lhe dá a força extraordinária que tem são duas coisas. A primeira é o pânico — e a súbita recusa de encarar a própria mortalidade por parte das classes que mandam na sociedade. A segunda é o espetacular combo de vantagens materiais que a covid trouxe para uma parte da população mundial — justamente a parte mais rica, mais instruída e mais influente. Essa gente toda, indiscutivelmente, está tirando proveito direto e pessoal da covid — proveito financeiro, político, social, ideológico, psicológico ou de outros tipos. Com a covid, a sua vida melhora. Sem a covid, sua vida piora. De que lado você acha que eles estão?

Os beneficiados reais, a turma que tira proveito líquido e certo da covid, são, talvez, 10% da população do mundo. É apenas uma hipótese; não foi feito ainda, nem é provável que se faça, nenhum cálculo coerente sobre quanta gente se beneficiou e está se beneficiando da epidemia, baseado em observação sistemática da realidade, em fatos e em evidências. Mas é uma hipótese que está dentro da lógica. É também um número que dá o que pensar. Qualquer 10% é pouco, claro. Para começo de conversa, quer dizer que 90% estão fora. Mas faça as contas: se for isso mesmo, num mundo com cerca de 8 bilhões de habitantes, os que lucram ativamente com a covid seriam uns bons 800 milhões. Vá lá, para arredondar: 1 bilhão. É gente, não é mesmo? É a minoria, mas é gente que não acaba mais. 

(...)

O cidadão diz que “não se sente seguro” para trabalhar de novo — e pronto, não se fala mais no assunto

O povo do home office é o primeiro grande bloco que vem à mente. Estão há dois anos sem ir ao trabalho, com os salários e benefícios intactos, levando as crianças à aula de inglês, rodando de bicicleta em dia da semana e no horário comercial, e dormindo de tarde. Seu trabalho, em grande parte, é ficção — pelo menos quando se usa a palavra “trabalho” com o significado que ela tem no dicionário. Pela primeira vez na vida, estão dando ao empregador exatamente o esforço e a dedicação que acham necessários, nem 1 grama a mais. O patrão não tem ideia do que o sujeito está fazendo nesse ou em qualquer momento do horário de trabalho. Ninguém é demitido. Quando aparece alguma ameaça de voltar ao trabalho “presencial”, como se diz hoje com desprezo (só o trabalho “remoto” é considerado bom), o cidadão diz que “não se sente seguro” para trabalhar de novo — e pronto, não se fala mais no assunto. É outra coisa, não é? Os jornalistas, a propósito, merecem atenção especial nesse mundinho do “teletrabalho”. O público é escassamente informado a respeito, mas o fato é que os jornalistas estão ganhando sem sair de casa desde o começo de 2020, e desfrutam de todos os privilégios descritos nos parágrafos anteriores. Só que são eles, justamente, os encarregados de dizer como está a covid. O que você acha que estão dizendo? Querem continuar com a vida que têm hoje; precisam, portanto, que a covid esteja cada vez pior. Tenha certeza, então, que vão continuar lhe socando em cima cada vez mais “Ômicron”, mais gripe, mais fluorose, mais vírus alfa, beta, gama, delta — até o ômega.

(...) 

Multiplique o número de jornalistas brasileiros pelo de jornalistas dos outros 200 países do mundo; multiplique os executivos da Praia da Pipa pelos executivos de todas as grandes empresas do mundo, mais as médias. Já começa a ficar na cara, à essa altura, quanta gente está viajando no bonde mundial da covid. Mais: o grosso desse povo está nos Estados Unidos e na Europa. O Brasil, perto dele, é mixaria.

(...)

Só no Brasil há 12 milhões de funcionários do Estado. Some-se a isso, então, a burocratada do resto do mundo — e dá para começar a fazer ideia, então, de como se chegaria aos 800 milhões citados lá no começo. Não são os funcionários só dos países. (Para ter um pouco de ideia: as Forças Armadas norte-americanas, sozinhas, têm mais de 2 milhões de membros; vai pondo o resto.) Some-se a eles a população empregada nos milhares de organizações internacionais de todas as espécies, desde a ONU e o seu império de escritórios até a União Europeia e todo o resto dessa geringonça que não acaba mais. É a Comissão Europeia da Sardinha ou o Comitê Internacional Para Medir a Temperatura do Gelo. É a Organização Mundial de Trigonometria ou o Painel Internacional das Terras Indígenas. Enfim: deu para entender, não é? É um negócio que não acaba mais. Em comum, todos eles têm vontade que a sua vida continue como está — se possível para sempre.

Trabalho é para os 90% da população que tem de se pendurar em poste para consertar o corte de luz na casa de quem não admite comparecer ao serviço

(...)

Trabalho é para os 90% da população brasileira que tem de se pendurar em poste elétrico para consertar o corte de luz na casa de quem não admite comparecer ao serviço — ou para todos os que são obrigados a trabalhar para sobreviver. É coisa de quem tira lixo da rua. É coisa de quem guia o metrô, ou do motoboy do delivery, ou do porteiro do prédio. É coisa de quem trabalha no comércio, no hospital ou na polícia. É coisa de operário, do técnico da torre de aeroporto, do homem da companhia de gás que se enfia embaixo da terra para garantir o fogão dos terraços gourmet. Não é o mundo do professor da USP. Não é a Praia da Pipa. Esse é o Brasil da maioria que realmente produz, e não o Brasil dos parasitas — do universo político, dos banqueiros de esquerda, da CPI da Covid, dos comunicadores e das classes intelectuais que andam de máscara, combatem o genocídio e querem que o mundo continue nessa camisa de força que lhes faz tão bem.

A lista dos sócios do vírus ainda vai longe. Pode incluir a big pharma norte-americana e mundial em peso, da Pfizer, AstraZeneca e Johnson&Johnson a todas as suas irmãs. Só o Brasil, e só nesta primeira fase, colocou no Orçamento cerca de R$ 30 bilhões para gastar com vacinas, numa conta que ainda pode ser muito maior. Calcule agora o tamanho dessa bonança em termos mundiais; é de dar inveja em qualquer Google da vida. Junte os fornecedores de testes para covid, os fabricantes de insumos para a vacina e os produtores de material de apoio. Some as empresas de transporte, as redes de farmácias e outros serviços de assistência — para não falar em médicos e hospitais. Não se esqueça, enfim, dos 6.000 prefeitos e dos 27 governadores brasileiros, que ganharam do Supremo Tribunal Federal o prodigioso direito de fazerem o que bem entendem para “salvar vidas” a começar pela dispensa de licitação para gastar dinheiro público no combate à covid. É roubar, deitar e rolar, com a aprovação do Judiciário e o diploma de “heróis da saúde” concedido pelos editoriais da imprensa. Quem vai querer outra vida? É covid para toda a eternidade.

Leia também “A negação do jornalismo”

MATÉRIA COMPLETA - J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Com todas as desconfianças, creio que temos mais segurança nos resultados que os americanos

Alexandre Garcia

"Com todas as desconfianças, creio que temos mais segurança nos resultados que os americanos. Com toda a confiança que temos nos carteiros, preferimos nós mesmos digitar o nosso voto, sem intermediários"

[Defendendo os carteiros: além da sempre possível desonestidade de alguns funcionários dos correios, cabe lembrar que  carteiros sofrem investidas de bandidos, traficantes, etc. Além da ECT não possuir o poder investigatório do Serviço Postal dos EUA, existe no Brasil, por suprema decisão do STF, áreas que estão fora do alcance da atuação das forças policiais - o ingresso da polícia em favelas do Rio, está sujeito a rígidos protocolos que quando atendidos o sigilo da operação já era.]
 
Quem se impacienta com a demora de uma decisão definitiva na eleição americana não deve ter acompanhado a eleição de George W. Bush, em 7 de novembro de 2000. No dia seguinte pela manhã, a apuração já mostrava que o democrata Al Gore tinha 255 delegados e o republicano Bush, apenas 246. Imagino se o presidente do Brasil, Fernando Henrique, tivesse se adiantado e já cumprimentasse Gore, que estava mais perto dos 270 delegados que significam vitória. Mas ainda faltavam os 25 votos da Flórida. 
 
Dias depois, Bush estava ganhando por 300 votos na Flórida. No dia 26 de novembro, o conselho eleitoral da Flórida proclamou o resultado pró-Bush, numa diferença de 537 votos. Aí, o democrata Gore entrou na Justiça e pediu recontagem de 70 mil votos, cancelando a declaração do resultado. Em 12 de dezembro, a Suprema Corte, por um apertado 5 a 4, convalidou a decisão do conselho eleitoral, e Bush estava eleito presidente. Demorou 35 dias, e se discutia apenas um estado. O eleito teve 50 milhões 460 mil votos; o perdedor, 51 milhões e três mil. É isso mesmo. O perdedor teve 543 mil votos acima do vencedor.
 
 Agora, Trump denuncia fraude e se declara vitorioso. De 160 milhões de votos facultativos, mais de 100 milhões vieram pelo correio. O provável eleito, Biden, argumenta que foi uma vitória clara e convincente. Já fez discurso como eleito, falando em erradicar a covid e o racismo. Para erradicar a covid, a Pfizer, talvez, tenha esperado o momento certo para anunciar o resultado de sua vacina. Para erradicar o racismo, vai ser difícil. Está impregnado até no noticiário. Das características da vice Kamala Harris, a mídia americana destaca que ela é negra e sul-asiática. A mente brilhante da procuradora e senadora ficou secundária. Depois.

Enquanto eles, por lá, se dividem quase ao meio, nós, por aqui, vamos às urnas eletrônicas no próximo domingo, Dia da República. Voto obrigatório, com resultados nas horas seguintes ao encerramento das urnas, e segundo turno nos municípios mais populosos, onde não ficar clara uma maioria. Com todas as desconfianças, creio que temos mais segurança nos resultados que os americanos. Com toda a confiança que temos nos carteiros, preferimos nós mesmos digitar o nosso voto, sem intermediários. Se eles acompanhassem o nosso processo eleitoral, assim como nós acompanhamos os deles, nunca mais se refeririam ao Brasil como um exótico país tropical. Yes, nós temos banana; mas (graças ao Havaí) eles têm muito abacaxi, que pode levar tempo para descascar.

Alexandre Garcia, jornalista - Coluna no Correio Braziliense

 

 

 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Um louco mundo em chamas - Fernando Gabeira

Em Sem categoria
 
Outro dia, num artigo, reproduzi uma frase do sociólogo Ulrich Beck em que ele afirma que as coisas estão mudando tão rápida e amplamente que as pessoas têm a impressão de que o mundo ficou maluco. Pois acrescento outra impressão inquietante: a de que o mundo está pegando fogo. Com causas e consequências diferentes, três grandes incêndios assustaram o planeta: Amazônia, Califórnia e Austrália.

O grande incêndio da Austrália foi mal compreendido pelo governo brasileiro, que provocou as ONGs e artistas: por que não se manifestam? Ilusão. No momento em que escrevo, de Pink a Elton John, os artistas já doaram US$15 milhões aos bombeiros de South Wales e Victoria, as regiões mais atingidas pelo fogo.
“Imprecionante”, como diria o ministro Weintraub. Acontece que a reação do governo australiano foi parecida com a do brasileiro, ao afirmar que eram incêndios frequentes e regulares nas regiões atingidas. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, interrompeu suas férias no Havaí, mas ainda assim foi severamente criticado nas regiões devastadas.

Seu governo não se prepara para as consequências do aquecimento global. A própria oposição está de mãos atadas porque as forças políticas dependem das forças que produzem carvão e gás. Para completar a visão do sistema, a mídia, dominada por Rupert Murdoch, tende também à negação das importantes mudanças climáticas.Alguns cientistas impressionados com o processo acham que entramos na era do fogo, a qual chamam de Piroceno.  Acontece que não estamos apenas sob impacto de grandes incêndios, mas de eventos extremos, tempestades, furacões, secas prolongadas.

Isso acontece num mundo que reage à tese do aquecimento global, e às conquistas da ciência de um modo geral. É uma tendência ampla que não se limita a negar o aquecimento, mas se estende ao movimento antivacinação e, na sua face mais radical, chega ao terraplanismo.  Não há o que fazer, exceto seguir argumentando pacientemente. Mas talvez fosse necessária uma inflexão tática. Ao invés de convencer sobre o aquecimento global, centrar a discussão nos eventos extremos que se sucedem.  Mesmo quem não acredita em aquecimento global pode ser convencido de que os desastres naturais são cada vez mais frequentes e é preciso uma séria preparação em escala nacional.

Isso não tem nada a ver com esquerda ou direita, muito menos é uma doutrinação do marxismo internacional. Talvez seja possível obter dessa corrente de céticos, e até adversários da ciência, algum tipo de compromisso sobre o fortalecimento de uma Defesa Civil nacional. Embora os dirigentes atuais sejam muito decididos a combater a ideia de aquecimento ou mudanças climáticas, um certo pragmatismo tem chance no Brasil, independentemente da posição deles. Tive a impressão de que, depois das grandes inundações em Blumenau, a Defesa Civil de Santa Catarina se organizou melhor e se tornou uma das mais eficazes do país.

Os bombeiros de Minas Gerais, depois de tantos desastres com barragens, transformaram-se, por sua vez, numa referência internacional nesse tipo de intervenção.  Num mundo que parece maluco e prestes a se consumir em chamas, é muito difícil convencer com grandes ideias, embora os governos não param de se reunir para debater o tema. O desenvolvimento de uma sólida e bem equipada Defesa Civil pode ser um objetivo alcançável, se houver uma concentração de forças nessa tarefa, aparentemente, modesta. O interessante é que isto diz respeito apenas parcialmente ao governo e ao Parlamento. É essencial preparar a sociedade em todos os níveis. Não alcançaremos o rigor e a disciplina dos japoneses.

Mas também não somos os vira-latas que os pessimistas acreditam que somos. Há experiências pontuais de comunidades de risco que já sabem quem precisa de ajuda na hora crítica, onde estão guardados os barcos, para onde fugir quando necessário. Enfim, a sensação que tenho é que, se baixarmos a bola, temos mais chance de chegar ao gol, apesar das exasperantes dificuldades da partida.  Mas, se tivéssemos tido a intuição de criar realmente um grande front pelo saneamento básico, o atraso não seria tão pesado como é hoje. Não trabalho com a tese de uma coisa ou outra. Apenas acho que é preciso definir o possível e o necessário em cada momento e não se perder apenas nas belas ideias gerais.

Fernando Gabeira, jornalista - Blog do Gabeira 


Artigo publicado no jornal O Globo em 13/01/2020