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domingo, 19 de fevereiro de 2023

O vício do prazer - Revista Oeste

Ana Paula Henkel

Estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e alta dopamina: drogas, comida, notícias, jogos de azar, compras, redes sociais e seus cliques e por aí vai 

 Ilustração: Shutterstock

Ilustração: Shutterstock 

Numa recente viagem ao Havaí com a minha família, tive a oportunidade de visitar pela primeira vez Pearl Harbor, a histórica base naval norte-americana na Ilha de Oahu, que foi alvo de um ataque japonês surpresa, em 7 de dezembro de 1941, e que precipitou a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. 
A Frota do Pacífico dos EUA estava estacionada em Pearl Harbor desde abril de 1940 e, além de quase cem embarcações, incluindo oito navios de guerra, havia importantes forças militares e aéreas na ilha. O ataque à base prejudicou gravemente a força naval e aérea dos EUA no Pacífico. No entanto, dos oito navios de guerra, todos, exceto o Arizona e o Oklahoma, foram eventualmente consertados e voltaram ao serviço.

Hoje, Pearl Harbor continua sendo uma base militar ativa, sede da Frota do Pacífico e um marco histórico nacional. Para os que tiverem a oportunidade, o Memorial USS Arizona, um museu a céu aberto exatamente sobre um dos navios abatidos pelos japoneses, é um lugar que deve ser visitado por todos que desejam prestar verdadeiras homenagens a quem, de fato, lutou pela liberdade que temos hoje. 

Ali, olhando para os destroços nas águas no Pacífico e andando sobre um dos navios abatidos, é impossível não se emocionar. Local de descanso de 1.102 dos 1.177 marinheiros e fuzileiros navais mortos no USS Arizona durante o ataque a Pearl Harbor, na parte final do memorial estão entalhados em uma parede de mármore os nomes dessas pessoas e suas idades. A maioria dos mortos tinha idades entre 17 a 23 anos. Além de um marco histórico, o navio USS Arizona é hoje um cemitério militar ativo dos EUA. À medida que os sobreviventes do ataque ao Arizona falecem, muitos deixam registrado que desejam que suas cinzas sejam espalhadas na água sobre o navio ou colocadas em urnas para serem depositadas no fundo do navio no mar.

Pearl Harbor: três encouraçados norte-americanos atingidos. 
Da esquerda para a direita: U.S.S. West Virginia, severamente 
danificado; USS Tennessee, danificado; e USS Arizona, 
afundado em 7 de dezembro de 1941 | Foto: Shutterstock

É praticamente impossível sair do lugar sem derramar alguma lágrima. Eu olhava para os meus filhos, com 22 e 17 anos, e tentava imaginar o que aquela geração viveu. Chegamos em casa e iniciamos uma verdadeira maratona na frente da TV sobre a Segunda Guerra Mundial. Eu já escrevi em alguns artigos aqui em Oeste passagens e eventos com Winston Churchill, por exemplo, e as lições deixadas por homens de seu quilate. O que a visita a lugares como Pearl Harbor nos traz é a perspectiva de que Churchill, um dos integrantes da minha assembleia de vozes, na verdade, é a ponta final e famosa de uma época de homens e mulheres raríssimos hoje em dia.

Sente-se neste fim de semana com os filhos, sobrinhos, netos e, olhando as filmagens do “Dia D”, em 6 de junho de 1944, tente não se emocionar diante de uma realidade que hoje pode parecer apenas páginas de um livro de história. A verdade é que ali, uma geração inteira de homens e mulheres foi forjada no que há de mais cruel e mais completo que um ser humano pode receber
A dor, a perda, a coragem, a resiliência, o fardo, a morte, o medo, o alívio… a vitória. A divindade da gratidão plena por estar vivo e por poder voltar para as situações simples e significativas da vida.
E aí, quando desligamos a TV, quando fechamos os livros de história e caímos com os pés plantados e seguros no chão da atual realidade, o impacto é bruto. Mais brusco até do que olhar as apavorantes cenas de guerra real. O que aconteceu com a humanidade?  
Como partimos de seres humanos da estirpe daqueles que lutaram e deram a vida pela nossa vida e liberdade que temos hoje para um mundo narcisista, hedonista e cheio de invenções sem pé nem cabeça, cheio de problemas inventados por cabeças desocupadas? 
Esse mundo atual, onde tudo é problema, tudo é ofensa, tudo é protegido por um tipo de plástico bolha virtual para que ninguém se machuque com palavras… É isso mesmo que fizemos com a liberdade conquistada por soldados – RAPAZES DE 20 E POUCOS ANOS! – que fizeram o sacrifício final pelo mundo?
 
Enquanto olho as imagens do desembarque histórico nas praias da Normandia, o estômago embrulha os pensamentos de que agora não podemos mais falar que homem é homem. Mas também não podemos mais falar que mulher menstrua, que mãe é mãe, e que mulher é mulher. 
Não podemos mais falar que algo é feio e grotesco. Tudo é lindo. Porcaria é lindo. Música ruim é linda. Filme ruim ganha Oscar. Se criticar, é racismo, homofobia, misoginia, e uma lista de “ismos” e “fobias” interminável. A conclusão do que é belo é feita pelos outros, você só tem de balançar a cabeça e concordar. Não, você não tem opinião. Você não terá nada – nem opinião – e será feliz, lembra? 
Davos está aí para nos lembrar disso. Os ungidos da elite global já decidiram que o problema é o pum da vaca e o que você come. Eles se reúnem para decidir como salvar nossas vidas de nós mesmos, não apenas com o alimento do corpo, mas com o alimento da alma, e, para isso, há também os ungidos das artes, da saúde, da imprensa. 
Você não sabe o que é bonito ou saudável. Nem eu. Mas fica tranquilo, os que pintam o cabelo de roxo, que relativizam a beleza e a saúde, que cantam músicas desafinadas e que não sabem se são mulheres, homens, gays, não binários ou uma das 48 letras do alfabeto de gêneros – eles sabem o que é melhor para você e o mundo.
Tropas norte-americanas indo para Utah Beach, durante a
 invasão do Dia D, na Normandia, em junho de 1944 - 
 Foto: Shutterstock

Um dos pontos mais marcantes dessa geração de mimados, como brilhantemente expõe Jordan Peterson, psicólogo canadense e um dos maiores pensadores contemporâneos, é o fato que essa turba jacobina que quer “consertar” o mundo e que tem “todas as soluções” para isso nem sequer arruma a própria cama, o próprio quarto. No espetacular livro Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, Theodore Dalrymple, nosso parceiro aqui em Oeste, desmascara o sentimentalismo oculto que sufoca a atual sociedade e o debate público. Sob os múltiplos disfarces de criar bem os filhos, “cuidar dos desprivilegiados e oprimidos”, ajudar os menos capazes e fazer o bem em geral, estamos alcançando exatamente o oposto. Todo esse trabalho para com o único objetivo de nos sentirmos bem com a nossa própria sombra, e, claro, por que não aproveitar aquela sinalizada de virtude nas redes sociais e marcar uns pontinhos? Dalrymple leva o leitor a uma caminhada que mexe com as emoções públicas e o papel do sofrimento, mostrando os resultados perversos quando abandonamos a lógica em favor do culto ao sentimento. Baseando-se em sua longa experiência de trabalho com milhares de criminosos e mentalmente perturbados, Dalrymple prova que só podemos esperar fazer a diferença se começarmos a questionar esse culto ao vitimismo e ao sentimentalismo.

Outro excelente livro que aborda o assunto é Nação Dopamina, escrito pela psiquiatra Dra. Anna Lembke. No livro, recentemente lançado no Brasil, Lembke explora as novas descobertas científicas que explicam por que a busca incansável do prazer leva à dor, e como estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e alta dopamina: drogas, comida, notícias, jogos de azar, compras, jogos, mensagens de texto, aplicativos de relacionamento (não deu certo com alguém? Troca. Troca. Troca…), redes sociais e seus cliques e por aí vai.

“O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, sete dias por semana, para uma geração conectada”

A Dra. Lembke é diretora médica de medicina da Universidade de Stanford e chefe da Clínica de Diagnóstico Duplo da Stanford Addiction Medicine, e relata que seus pacientes que lutam contra o abuso de substâncias geralmente acreditam que seus vícios são alimentados por depressão, ansiedade e insônia. Mas ela afirma que o oposto costuma ser verdadeiro: os vícios podem se tornar a causa da dor – não o alívio dela. Isso porque o comportamento desencadeia, entre outras coisas, uma resposta inicial da dopamina, que inunda o cérebro de prazer. No entanto, uma vez que a dopamina passa, a pessoa geralmente se sente pior do que antes: “Eles começam a usar a droga para se sentirem bem ou sentirem menos dor”, diz Lembke.Com o tempo, com a exposição repetida, essa droga funciona cada vez menos. Mas eles se veem incapazes de parar, porque, quando não estão usando, ficam em estado de déficit de dopamina. A dopamina é um neurotransmissor que envia sinais de um neurônio para outro e é provavelmente o neurotransmissor mais importante em nossa experiência de prazer, motivação e recompensa. A dopamina é o caminho final comum para todas as experiências prazerosas, intoxicantes e gratificantes. O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, sete dias por semana, para uma geração conectada.”

Outro dia, sentados à mesa de jantar, minha enteada “chamou nossa atenção” e “nos convidou” a refletirmos pelas palavras que dissemos. Lembrem-se, resido na Califórnia, talvez o Estado mais progressista e sentimentalista que há hoje nos Estados Unidos junto com Nova Iorque. O “crime hediondo”, cometido em um simples comentário durante o jantar, foi dizer que uma colega do time de vôlei dela estava bem acima do peso, e que isso a estava prejudicando em quadra. Na lista de “fobias” da moda, a carta “gordofobia” foi puxada para o assunto e não foi sequer levado em consideração o argumento – de dois atletas olímpicos – de que a jogadora em questão não está apenas rendendo bem menos do que o esperado, mas está em um ciclo de dois anos de contusões intermináveis e que nunca melhoram em articulações e ligamentos, claramente ligadas ao sobrepeso. Tudo isso com apenas 17 anos. A parceira de time tem o sonho de ser convidada a ingressar em uma boa universidade norte-americana através do esporte e, obviamente, sua atual condição atlética não vai colaborar para a realização desse sonho. Na atual balança do ombro amigo (situação vivida também por técnicos esportivos) é mais correto esconder a verdade com mentiras fofas sobre “aceitação corporal” e ajudar a sepultar os sonhos das boas amizades em silêncio para que, pelos menos, as palavras não machuquem.

Os norte-americanos estão cada vez mais gordos, e isso não é sobre aceitar nossa aparência, nosso corpo e nossos defeitos. Mais de dois terços dos adultos nos Estados Unidos estão acima do peso ou têm obesidade, relata o site sobre saúde Heathline.com. O CDC norte-americano, órgão governamental tão respeitado durante a pandemia, diz que entre 1999 e 2020, “a prevalência da obesidade aumentou de 30,5% para 41,9%” e a obesidade grave “aumentou de 4,7% para 9,2%”. Mesmo com esses números alarmantes, mas na onda da lacração – a chamada cultura woke, aqui nos EUA –, marcas como Victoria Secret, Calvin Klein e outras empresas de roupas tentam agora lucrar com o sobrepeso perigoso para a saúde disfarçando suas campanhas capitalistas como “tamanho inclusivo”.

É sabido, e é preciso salientar, que muitas pessoas lutam com seu peso por razões fora de seu controle – problemas de saúde, predisposições genéticas e assim por diante. E, mesmo quando o excesso de peso das pessoas é culpa delas, é claro que nunca há motivo para envergonhá-las ou discriminá-las. Mas, se sempre houve problemas de saúde e hereditários que afetam a capacidade de manter um peso saudável, então, por que o enorme aumento na porcentagem de pessoas com sobrepeso mórbido nos últimos anos, quando sabemos mais sobre nutrição, exercícios e saúde do que nunca?

Nosso padrão de vida e qualidade de vida estão melhores do que nunca. O alimento nunca foi tão abundante e nunca tivemos tantos avanços tecnológicos em várias áreas. Até o trabalho físico diminuiu drasticamente. O que realmente mudou nos últimos anos é o Grande Despertar, parte da agenda nefasta globalista de “desconstrução” do ser humano e sua alma para que percam seu livre-arbítrio, sua apreciação pelo belo, pelo sagrado, pelas tradições. E tudo isso começa pela perda do cuidado do templo mais sagrado que temos – nosso corpo.

Vivemos num mundo onde o público exige exibições vulgares de emoção em um jogo de coação contra qualquer um que não se conforme com o absurdo desse mundo paralelo criado e que é empurrado goela abaixo. As boas tradições estão sendo corroídas pela hegemonia cultural sentimental que insiste que qualquer sentimento é, por definição, verdadeiro e algo a ser nutrido. O sentimentalismo está nos destruindo. Ninguém tem o direito de ser permanentemente feliz. As crianças precisam aprender a ficar entediadas, a ouvir “nãos” e não terem todos os seus sonhos e fantasias realizados.

Por onde começar? Talvez pela história. Mostrando o que rapazes e moças fizeram por nós para que pudéssemos ter a liberdade de escolher nossos estúpidos pronomes. Mostrando que podemos escolher o que quisermos hoje em dia, mas que não podemos – jamais – fugir das consequências de nossas escolhas.

Leia também “Uma guerra espiritual”

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Lula impõe última humilhação ao PSDB - O Estado de S.Paulo

J. R. Guzzo

A agonia do partido, até algum tempo atrás uma legenda de primeira grandeza na política brasileira, está sendo demorada, vergonhosa e miserável

A agonia do PSDB, até algum tempo atrás um partido de primeira grandeza na política brasileira, está sendo demorada, vergonhosa e miserável. Sua última humilhação acaba de acontecer, e veio pela boca de alguém que deveria, pelo menos, ter um pouco de dó dos antigos tucanos e de seus projetos de salvar a pátria através da “socialdemocracia”.  

O PSDB e os seus líderes estão fazendo qualquer coisa para dizer que o ex-presidente, seu ex-adversário supremo, é um santo consagrado da política brasileira, mas não adianta. Lula não é homem de ter pena, nem de comportar-se com gratidão - ou, pelo menos, com educação. Pronunciou, com gosto, a sentença de morte do partido do “equilíbrio”, da “modernidade” e da “civilização europeia”. Precisava? O PSDB já não tem onde cair morto; seu “candidato presidencial”, João Doria, virou suco, suas chances de ganhar alguma coisa importante estão entre mínimas e nulas, e seus líderes se tornaram peças de museu. Mas Lula não perdeu a oportunidade de esfregar sal na ferida.

O desprezo público do candidato é tanto mais notável quando se considera que um dos seus novos serviçais de maior destaque, o ex-governador Geraldo Alckmin, foi a mais cara esperança que o PSDB e o “Brasil moderado” tiveram para voltar ao governo neste século. Alckmin, há pouco, dizia que Lula se candidatou à Presidência da República para “voltar à cena do crime”. De um momento para o outro, vendo o seu mundo tucano ir a pique, esqueceu tudo e passou a ser o devoto número 1 da esquerda e do seu líder máximo. Hoje é candidato a vice na chapa petista, e já chama as pessoas de “companheiro” e de “companheira”.

O ex-presidente poderia pensar em Alckmin e ter um pouco de pena do PSDB e suas redondezas, mas faz o contrário - em vez de ficar grato à tucanada, mostra desprezo por ela. No mais, e além de Lula, é uma debandada geral. Raramente os ratos nadam na direção de um navio que está afundando.

J. R. Guzzo, colunista -  O Estado de S. Paulo

 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

NÃO PISE EM MIM! - Harley Wanzeller

Liberdade! Liberdade! São estas as palavras usadas por mais um povo que, há muito, sofre como bicho da fazenda de Orwell.

Alguns veículos de informação amanheceram noticiando que os cubanos estão botando para fora aquilo que qualquer pessoa minimamente esclarecida já sabe existir – a revolta interna do cubano com a opressão imposta pelo regime revolucionário comunista dos irmãos Castro.

Novidade? Nenhuma!

Aliás, se fosse Cazuza (1), diria estar vendo “um museu de grandes novidades”. Mas não. Sou apenas um brasileiro que teme o fetiche idiota pelo comunismo, insistentemente alimentado em rodas estudantis enfeitadas com camisas e bottons que estampam a cara de verdadeiros genocidas, como Che Guevara e “seus blue caps”.

Não há beleza no comunismo! Se belo fosse, sua política não enfrentaria a natureza humana. E antes que algum crítico venha em defesa do marxismo, usando de cinismo para arrotar o bordão “o comunismo nunca foi implantado realmente”, esclareço que, de certa forma, concordo (com o crítico). Com a licença da necessária redundância, pois nem todo mundo consegue discernir o significado do que lê ou escreve, afirmo ao “papagaio de pirata” que o comunismo não passa de uma utopia nefasta de impossível implantação, justo porque nasceu como um devaneio teórico cujo fim é manter sua vítima eternamente inebriada e presa ao sonho do amanhã que nunca acontecerá. A teoria é essa, mas a prática mostra que um cubano sabe muito bem o que é o comunismo quando precisa ficar calado para sobreviver, ou sobrevive reduzindo seus sonhos a um prato de comida para o filho, esquecendo o significado da palavra dignidade, e esperando a morte chegar. Isso é o comunismo, papagaio!

Mas ainda que por instinto animal, o ser humano tende a lutar pela manutenção de sua natureza sabendo que dela depende para viver, segundo suas características próprias. E aqui entro no fator liberdade!  O grito cubano por liberdade já existe há muito. Está entalado na garganta e, mais do que nunca, é esbravejado por um povo que entendeu, na pele, o que representa ideologia marxista bem como a urgente necessidade de engajamento na luta contra o totalitarismo, sob pena de ser dizimado. A falta de opção popular é fator bastante para encerrar o ciclo dos movimentos totalitários, dado que a resposta ao dilema “lutar ou morrer” nunca deixou um tirano de pé.  Assim caminhou a humanidade. E assim sempre será.

Exemplo disso foi a guerra de independência dos EUA, pela qual os founding fathers uniram-se pela preservação do império da lei em solos americanos em uma luta franca contra o totalitarismo da coroa britânica que, à época, afrontou os direitos mais básicos dos ingleses-americanos. Esta verdade fica lastreada por alguns símbolos, como o próprio discurso de Thomas Jefferson no texto separatista abaixo transcrito:

“Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colónias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidas injúrias e usurpações, tendo todos por objetivo direto o estabelecimento da tirania absoluta sobre estes Estados.”(2)

 Outro símbolo foi a conhecida Bandeira de Gadsden, predominantemente amarela com uma serpente em posição de alerta para ataque, seguida da inscrição “Dont´ Tread on Me”, cuja tradução significa “Não pise em mim”.  Esta bandeira, inclusive, foi inspirada em uma charge publicada anos antes no Pennsylvania Gazette, que teve como editor ninguém menos que Benjamin Franklin, um dos pais fundadores. Nesta Charge, encontramos a cobra composta por diversas partes acompanhadas das siglas das 13 colônias insurgentes. O desenho tinha como mensagem destaque a frase “Join or Die”, que podemos traduzir como “Junte-se ou Morra”.

Este era o espírito que unia os ingleses em solo americano – lutar para garantir valores naturais do ser humano, traduzidos na vida, na liberdade, e no direito à busca da felicidade. A Bandeira de Gadsden precisa ser erguida pelo povo cubano! A nós, cabe a oração pelos oprimidos e o exercício da sabedoria, para evitarmos a repetição dos erros políticos alheios que resultaram na catástrofe humanitária do comunismo. 

Referências:

1.       Referência ao trecho da música “O tempo não para”, de Cazuza.

2.       Declaração de Independência dos Estados Unidos da América - 04.07.1776. (https://pt.m.wikisource.org/wiki/Declaração_da_Independência_dos_Estados_Unidos_da_América)

3.       A Bandeira de Gadsden é leva o nome do seu criador, o general e político americano Christopher Gadsden (1724-1805), que a projetou em 1775 durante a Revolução Americana.

Cascavel como símbolo das Colônias Americanas foi proposta por Benjamin Franklin, por lhe parecer um animal vigilante e magnânimo, que entretanto ataca fatalmente, se provocado ou desafia.

*     Texto publicado originalmente em Tribuna Diária

Harley Wanzeller

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Tira-dúvidas sobre o Pix

Por: Dagomir Marquezi - Transcrito da Revista Oeste

O Pix quebra um tabu: o de que o Estado só existe para atrapalhar a vida do cidadão

Quer transferir dinheiro para seu primo de outra cidade? Enfrente o momento tenso de passar pela porta giratória sob o olhar severo do segurança. Tire o chaveiro do bolso, o celular, as moedas, coloque tudo no compartimento de objetos metálicos. Se conseguir entrar, encare meia hora de fila no caixa. Transferências, só em dinheiro. A agência fecha às 16 horas. A taxa custa dezenas de reais. E o dinheiro só vai cair na conta de seu primo em oito a dez dias. Úteis. Assim se transferia dinheiro no Brasil até 1995. É o passado. Agora temos, com o home banking, facilidades impensáveis naquela época: aplicativos nos celulares, prazos mais curtos, taxas menores.

Isso é o presente. Nas próximas semanas, esse presente também vai virar passado. E nossa relação com o dinheiro sofrerá uma mudança mais radical. É um caminho inevitável: a digitalização definitiva da moeda. Cédulas, cheques e cartões estão virando peças de museu. O dinheiro se manifesta cada vez mais como algarismos brilhando numa tela de celular. Agora chegou a hora de dar um passo maior.

O Pix é uma criação do Banco Central, presidido por Roberto Campos Neto. Sendo um liberal e neto de um ícone do liberalismo, Campos Neto quebra um tabu: o de que o Estado só existe para atrapalhar a vida do cidadão. Nesse caso, o órgão estatal trabalhou para entregar aos brasileiros menos burocracia e custos, e mais agilidade ao sistema financeiro. É uma distribuição de renda da forma mais saudável e responsável.

As novas gerações nem saberão que existiu uma dupla conhecida como DOC e TED. O Pix pode colocar na lista de extinção objetos como o cartão de débito e sua eterna companheira, a maquininha de cobrança. (O cartão de crédito aparentemente será poupado desse furacão — por algum tempo.)

O Pix representa uma mudança bem grande em nossa relação com o dinheiro. É bom que todos entrem nessa nova era bem informados. Até porque, como toda novidade, o sistema envolve riscos.

1) O que é o Pix? Basicamente é um instrumento para fazer o dinheiro circular — como cédulas, moedas, talões de cheques, cartões, DOCs e TEDs. O Pix pode substituir quase tudo isso.

2) Como o Pix funciona? Você abre o aplicativo de seu banco e encontra o símbolo do Pix. Clica nele e terá três opções básicas: Transferir, Receber e Pagar. Escolha a “chave” que o identifique. Preencha o valor. Confira a identidade do outro lado da negociação. Clique em Transferir, Receber ou Pagar. Conte até cinco. Pronto. O dinheiro chegou. Funciona 24 horas, sete dias na semana.

3) O que é uma chave Pix? Pense na transferência tradicional, via DOC ou TED, para aquele seu primo. Você tem de preencher os nomes do remetente e do destinatário, seus CPFs ou seus CNPJs, os códigos dos dois bancos, os números das duas agências, os números das duas contas e o valor. A chave do Pix é uma espécie de “apelido” que reúne todas essas informações. Pode ser o número de seu CPF, de seu celular, seu endereço de e-mail ou um número aleatório criado pelo aplicativo. No Pix você coloca Destinatário: meuprimo@email.com. Remetente: 11-99999-9999. Valor: R$ 500,00. Remeter. Um, dois, três, quatro, cinco: seu primo recebeu. Você escolhe suas chaves Pix nos aplicativos das instituições bancárias. Ninguém será obrigado a ter chaves Pix, mas quem não as tiver vai precisar preencher todos os dados a cada transação: nome, CPF, número do banco etc.

4) Qual a razão para uma chave aleatória? Se você vai passar um pagamento a alguém com quem não tem intimidade para entregar detalhes de sua identidade, o aplicativo cria até cinco chaves formadas por 32 letras e símbolos aleatórios gerados pelo Banco Central. Pessoas jurídicas podem cadastrar 20 chaves aleatórias. Suas informações (e-mail, número do celular, CPF/CNPJ) ficam protegidas.

5) O celular conectado à internet é obrigatório? O celular, não. Você poderá usar recursos do internet banking, caixas eletrônicos e casas lotéricas. Por enquanto, vai precisar de algum acesso à internet para usar o Pix. Mas a partir de 2021 o Banco Central pretende lançar opções de pagamento off-line.

6) Existem limites de valor? Limite mínimo, não. Você pode transferir 1 centavo. Limites máximos devem ser estabelecidos pelas instituições bancárias. O objetivo desse limite é prevenir lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo ou o simples roubo.

7) O que poderá ser feito com o Pix? Segundo o BC, praticamente qualquer tipo de transação: “transferências entre pessoas, pagamento de taxas e impostos, compra de bens ou serviços, inclusive no comércio eletrônico, pagamento de fornecedores. A única condição para que a operação se concretize é que o recebedor aceite o Pix”. O Ministério da Economia está tomando providências para que o Pix seja em breve utilizado para o recolhimento do FGTS.

8) É possível agendar um Pix? Sim. A operação Agendar está em destaque no aplicativo. Se você não tiver os fundos necessários para o pagamento no dia agendado, a operação será cancelada.

9) O Pix vai aceitar o uso de criptomoedas? O BC aprovou por enquanto três empresas brasileiras operadoras de criptomoedas para usar o Pix: U4Crypto, Atar e Zro Bank. Segundo declarou Edisio Pereira Neto, CEO do Zro Bank, “o Pix é extremamente estratégico para nosso projeto e é a ferramenta ideal para permitir que o brasileiro possa pagar qualquer coisa com criptomoedas”.

10) O Pix fornece comprovante? Sim, cada transação gera um comprovante com o valor transferido, o número da transação, horário e data, a identificação do pagador e do destinatário. Você terá acesso também a extratos de pagamento e recebimento.

11) É possível cancelar um pagamento? Só enquanto você não fizer a confirmação. Depois que teclar Confirmar, o valor vai diretamente para o recebedor. Aí a coisa complica: você terá de negociar diretamente com ele a devolução. Portanto, muito cuidado com a identificação de quem vai receber seu dinheiro.

12) Como vai funcionar o Pix para as empresas? O Pix será como pagar cash, mesmo que o prestador de serviços more em Porto Alegre e o cliente esteja em Natal. Sem problema de troco ou demora na transferência. O comerciante ou prestador de serviço pode imprimir seu QR Code e deixá-lo à vista. O cliente abre seu aplicativo bancário, clica no Pix, aponta a câmera para o QR Code, preenche o valor, clica no botão Pagar. A grande cadeia de hipermercados e o vendedor de sanduíche no ponto de ônibus estarão nivelados pelo código QR.

13) Quanto vai custar emitir cada Pix? Transferências entre pessoas físicas: custo zero. O mesmo para operações entre microempreendedores individuais (MEIs) ou empresários individuais. Para uma Eireli (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada) ficam valendo as mesmas regras para pessoa jurídica. Para PJs, transferências como pagamento de produtos e serviços serão tarifadas pela instituição financeira. Cada instituição vai determinar o valor dessa tarifa. Com a concorrência criada por essa nova situação, quem cobrar tarifas muito altas não vai ter chance no mercado.

14) E a segurança do Pix? Antes de cada operação, o usuário deve se identificar com biometria, senha, reconhecimento facial ou o que for exigido pelo aplicativo. Além disso, haverá o limite de valores. Detectado algum movimento suspeito, o próprio sistema pode bloquear a operação por até 60 minutos para que a identidade das partes envolvidas seja confirmada. Se a fraude for real, todo o sistema usuário do Pix será alertado.

15) Se alguém roubar meu celular terá acesso às minhas contas Pix? Não. O celular não armazena os dados de segurança (biometria, senha etc.), que devem ser acessados a cada uso. Furtar a carteira de alguém é uma coisa. Outra, bem mais difícil, é roubar dinheiro num ambiente permanentemente monitorado pelo sistema e pelo próprio usuário.

16) Haverá devolução de dinheiro em caso de entrega de produto com defeito, por exemplo? Não. O Banco Central ainda não chegou a uma solução definitiva sobre o que fazer com esse tipo de problema. O que se aconselha por enquanto é que o Pix seja usado para compras de menor valor, preservando os cartões de crédito e débito para as compras maiores.

17) E se eu mandar dinheiro para uma pessoa errada? Você terá de pedir a quem recebeu o valor por engano que o devolva. Não é uma perspectiva confortável. Então, tome muito cuidado ao identificar a quem você envia seu dinheiro usando o Pix.

18) Quem será mais prejudicado com o Pix? Os bancos tradicionais, que ganham com as taxas cobradas em DOCs e TEDs. Segundo a agência Moody’s, os bancos terão queda de 8% nos lucros por causa do Pix. Apesar disso, os “bancões” correram para oferecer o novo sistema, tentando evitar uma debandada de clientes para as fintechs. O Nubank, por exemplo, foi chamado pela agência Bloomberg como “o maior banco digital do mundo, com 20 milhões de clientes nacionalmente e operações na Argentina, na Colômbia e no México”. Outra fintech, o Banco Inter, vai oferecer “cashback turbinado” (com 10% a mais de devolução) para quem registrar suas chaves Pix na instituição. Os grandes bancos não têm essa agilidade financeira.

19) O Pix vai pegar? Nos dois primeiros dias após o lançamento (6 de outubro), 10 milhões de chaves Pix já tinham sido registradas. Em 22 de outubro, esse número havia subido para 50 milhões. (Lembre-se que um mesmo cliente pode ter várias chaves.)

20) Quando posso começar a usar o Pix? Um grupo restrito de usuários começará a usar experimentalmente o sistema a partir de 3 de novembro. No dia 16, o acesso passa a ser de todos os inscritos.

Sobre inovação, tecnologia e finanças, leia também “Pequeno guia para entender (ou não) as criptomoedas”

Por: Dagomir Marquezi

Dagomir Marquezi, nascido em São  Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de Se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Todos os poderes do Supremo - Fernando Gabeira

Artigo publicado no Estadão em 04/10/2019
 
Embora não conheça os bastidores e meu trabalho costume ser distante de Brasília, às vezes sou tentado a dar explicações simples sobre esse complexo movimento do Supremo. Toffoli num certo momento, atendendo Flávio Bolsonaro, proibiu o Coaf de passar informações financeiras aos órgãos de investigação. Em seguida, Alexandre de Moraes suspendeu uma investigação do Coaf, na esteira da decisão de Toffoli. Finalmente, Gilmar confirmou a suspensão do processo de Flávio e Queiroz.

A decisão de Toffoli é problemática em si, pois traz prejuízos à luta contra a corrupção e se choca com compromissos internacionais do País. De sua parte, Bolsonaro escanteou o Coaf e o transformou num órgão de inteligência financeira no Banco Central.  Tudo começou com o dinheiro de Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro. O mínimo que se pode dizer e que é difícil de explicar, senão não haveria tanto empenho em bloquear as investigações. Mas o Coaf numa outra dimensão estava também examinando as contas bancárias da mulher de Toffoli e da de Gilmar

Pobre Coaf: uniu o presidente e dois Poderes contra ele. Sem contar Senado e Câmara, cujos líderes não morrem de amores por quem segue o curso do dinheiro. Para agravar o problema, surgiu um grupo corrupto na Receita Federal, precisamente em contato com a Lava Jato do Rio de Janeiro. Foi desmantelado nesta semana. Tudo indica que acessou ilegalmente os dados da mulher de Gilmar.

Quando Toffoli proibiu usar dados do Coaf, ainda não se sabia desses crimes dos fiscais, levantados pela própria Lava Jato. E sua decisão repercute em centenas de casos policiais no Brasil, paralisa investigações. A suspeita de corrupção na Polícia Federal, por exemplo, não poderia suspender todas as suas atividades no combate ao crime. [talvez já tenha sido esquecido que a decisão de Toffoli foi provocada por uma ação antiga, de um posto de gasolina contra a Receita Federal.]
Toffoli criou uma delegacia própria dentro do STF. Alexandre de Moraes funciona como o delegado. Censurou a revista Crusoé, determinou buscas e apreensões na casa das pessoas.
Eles têm um canto próprio de poder e os outros ministros parecem conformar-se. As lamentáveis declarações de Janot serviram para fortalecer esse núcleo e, simultaneamente, revelar seu viés autoritário.

Considero razoável que, depois do que disse, fosse apreendida a arma de Rodrigo Janot. Para evitar recaídas. No entanto, é completamente inexplicável apreender celulares, computadores e tablets na casa do ex-procurador. Não esclarece nada sobre o caso, todavia abre um leque de informações valiosas no jogo do poder. Da mesma forma, é exagerado proibir que Janot se aproxime de qualquer ministro do Supremo. Não há nenhum indício de que represente perigo para os dez restantes. É supor que Janot encontrasse um ministro e dissesse: não tem o Gilmar, vai você mesmo.  São passos de uma dança velha como a política. A pretexto de combater os métodos autoritários, enveredam pelo caminho que querem combater.

Numa decisão do plenário, o Supremo deu a entender que poderia suspender muitas condenações da Lava Jato. Minha presunção é de ter sido apenas um bode na sala: restringir a anulação da sentença aos casos de quem recorreu.  Apenas uma presunção. O Supremo sabe que não há uma oposição pequena no Congresso e Jair Bolsonaro foi neutralizado pelo flanco aberto no caso de Flávio e Queiroz. A única modulação possível nasce na sociedade, embora algumas manifestações que pedem o fechamento do STF acabem por fortalecê-lo, tal como é. É uma situação complicada e no fundo está em jogo não a extinção da Lava Jato, mas o limite do freio de arrumação.

Se as coisas marcham nesse ritmo, o limite será dado com o fim da prisão em segunda instância. Suponho que esse seja o marco que pretendem atingir. [O Supremo, decisão do ministro Toffoli, por caminho enviezado e na falta de um oportuno pedido de vista de algum ministro sobre o processo das 'possíveis anulações de sentenças', optou por criar uma regra inexistente no RISTF e  na Carta Magna  - aliás regra para socorrer o Supremo em decisão tomada sobre matéria que não existe nas leis - qual seja: exigência da presença dos onze ministros para deliberar sobre determinada matéria - quem decide a matéria 'especial'  é o presidente da Suprema Corte.] 

Não considero surpreendente que Lula tenha desprezado a progressão de sua pena e se recusado a deixar a prisão. Empregou toda a sua energia na tese de que é inocente e nega o processo de corrupção. Por que, agora, sair da cadeia e enfraquecer a própria narrativa? Sobretudo porque no horizonte está a decisão do Supremo sobre a prisão em segunda instância, ou mesmo a suspeição de Sergio Moro. Ele se mostra mais experiente que seus conselheiros.

Num mundo em que as narrativas atropelam as evidências, elas são a matéria-prima do processo eleitoral. Narrativas contra narrativas, as do populismo de direita ou de esquerda continuam sendo as que mais polarizam. Esse confronto é previsível e existe em outros países. O que há de singular é ver como a política caiu nas mãos da Justiça. De um lado, pela incapacidade de resolver no espaço próprio grandes temas nacionais. O Supremo decide pelos parlamentares. Além disso, tanto esquerda como direita têm seus problemas criminais e precisam sempre da boa vontade dos ministros.

Não creio que Toffoli, Gilmar e Moraes queiram o poder apenas para si. Duvido que contestassem o surgimento de outro núcleo, com objetivos próprios e, quem sabe, sua própria delegacia informal. Poderes monocráticos ou mesmo grupais na alta Corte são apenas um reflexo do vazio em torno dela. O que é possível hoje, e nesse sentido a democracia está de pé, é protestar, mesmo sabendo que são eles que decidem se ouvem ou não. Como disse acima, é uma democracia. Mas não do tipo que você está satisfeito com seu funcionamento.

O processo de redemocratização foi tocado com consensos bastante amplos, como o da luta pelas eleições diretas. Os próprios atores o levaram para um impasse. Vieram a Lava Jato, as delações do fim do mundo. As eleições eram um caminho para recomeçar. Mas a renovação foi insuficiente no Congresso. E Bolsonaro é um museu de novidades.   O próprio calendário eleitoral pode reanimar a energia renovadora, voltada para as cidades e seus problemas. Ainda assim, o quadro nacional continua inquietante.
É algo que pode ser também retomado com novas batalhas eleitorais. Mas não suprime a questão: o que fazer até lá, como se mover nesse labirinto?

Blog do Gabeira - Fernando Gabeira
 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Público e privado

Duas reuniões importantes da cúpula petista, dos conselhos do PT e do Instituto Lula, tiveram curiosa reversão de expectativas nos últimos dias. Nos dois casos foram anunciadas como temas prioritários supostas “ameaças crescentes ao Estado Democrático de Direito”, e o que seria uma “ofensiva reacionária para criminalizar o PT e a escalada de ataques ao companheiro Lula”.
Muitos dos integrantes dos dois conselhos entraram nas reuniões brandindo palavras de ordem contra os Procuradores da Lava-Jato, o juiz Moro e a mídia golpista. Mas sintomaticamente todos saíram de boca fechada. O mais esdrúxulo papel foi o do presidente do PT, obrigado a desmentir uma nota oficial assinada por ele mesmo, dizendo que não fora discutida uma linha de defesa do presidente Lula.

Na reunião do Instituto Lula, os advogados do ex-presidente, que não fazem parte do Conselho, estavam presentes, mas oficialmente não se tratou dos casos do triplex do Guarujá nem do sítio de Atibaia. Claro que esse recuo representa uma estratégia desenhada pelos advogados de Lula, para parecer que o ex-presidente não está fragilizado. Mas tudo indica que tem a ver também com a necessidade de mudar o estranho papel que o Instituto Lula vinha assumindo, tendo se destacado na defesa do ex-presidente.

Trata-se, na opinião de advogados, de uma situação curiosa e, ao mesmo tempo, paradoxal, pois inverte o papel que se deveria esperar de uma entidade que anuncia não possuir fins lucrativos e contar com objetivos sociais e políticos nobres, desvinculados de qualquer coloração partidária.

De acordo com o site do instituto, o "principal eixo de atuação do Instituto Lula é a cooperação do Brasil com a África e a América Latina. O exercício pleno da democracia e a inclusão social, aliada ao desenvolvimento econômico, estão entre as principais realizações do governo Lula que o Instituto pretende estimular em outros países".

O Instituto Lula também trabalha na construção de um museu para contar a história do Brasil, a partir da experiência dos movimentos sociais. Com o nome de Memorial da Democracia, sua concepção está sendo baseada em projetos modernos, nos quais a interatividade é mote central. De acordo com seu estatuto, o Instituto Lula tem compromisso com o desenvolvimento nacional e a redução de desigualdades, visando o progresso socioeconômico do país, assim como com o estudo e  compartilhamento de políticas públicas e privadas destinadas à erradicação da extrema pobreza e da fome, ao acesso à educação,  à promoção da igualdade, à universalização da Saúde,ao desenvolvimento com sustentabilidade ambiental, ao fomento à participação política e social dos cidadãos em todas as esferas da vida pública nacional.

O Instituto Lula afirma que não tem fins lucrativos e é independente de estados, partidos políticos ou organizações religiosas. A manutenção de seus trabalhos é garantida por meio de doações de empresas e pessoas que se identificam com os objetivos da entidade. Portanto, dentre as finalidades ostensivas do Instituto, não consta a possibilidade de patrocínio da defesa judicial dos interesses privados do ex-presidente Lula, tais como o custeio de processos judiciais ou de defesas em inquéritos policiais, investigações criminais ou em ações de improbidade administrativa ou inquéritos civis.

 À medida em que se aprofundam as suspeitas sobre a atuação e envolvimento do ex-presidente Lula em negócios polêmicos, remetendo a relações espúrias com empreiteiras e empresas investigadas e condenadas na operação Lava -Jato, tem chamado a atenção de advogados a atuação ostensiva do Instituto.

Se houvesse patrocínio privado de interesses de Lula para mera defesa em processos pessoais, com recursos de doadores, poderia se caracterizar ofensa à proibição de perseguir fins lucrativos, na medida em que, ao assim proceder, o instituto estaria inequivocamente atuando em prol de interesses econômicos de membros do PT, ou de políticos, os quais tem condições financeiras de custear seus próprios advogados.

Mais uma vez aparece a confusão entre a figura institucional de um ex-presidente da República e sua vida privada.  


Fonte: Merval Pereira - O Globo