Existe um consenso em torno da liberdade de expressão que não se pode mais ultrapassar
Os acontecimentos da semana me fizeram lembrar do debate eleitoral.
Discutíamos muito o futuro da democracia. Havia pessimistas, mas, assim
como nos Estados Unidos, contamos com um sistema de pesos e contrapesos.
O Supremo aparecia aí como um Poder moderador, uma das garantias
democráticas. Com o inquérito mandado abrir por Dias Toffoli, o papel do
STF sofreu um deslocamento. Quando foi instaurado, escrevi que aquilo
parecia uma carteirada, era tão absurdo que seria legalmente anulado.
O que era ainda apenas um mau sinal acabou se tornando uma ferida aberta
em nossa democracia com a censura à revista Crusoé e ao site O
Antagonista e inúmeras buscas em casa de pessoas que se expressam pelas
redes sociais. A notícia que a Crusoé publicou acabou sendo multiplicada à exaustão:
Marcelo Odebrecht informou que Toffoli era o “amigo do amigo do meu
pai”, apelido que aparecia em algumas mensagens dele. O que quer dizer
isso? O amigo do pai de Marcelo é Lula. Ser amigo de Lula não é um fato
isolado: milhares de brasileiros assumiriam essa condição. Toffoli era
advogado-geral da União e possivelmente tratou com a Odebrecht das
usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia.
Mas até aí também não apareceu nada de mais. Houve corrupção na
construção de Jirau? Digo que sim, e já estive lá depois que a Lava Jato
levantou o tema. Fiz um pequeno documentário no próprio lugar. Não vi o nome de Toffoli. O próprio documento da Odebrecht não o liga à
corrupção, não houve referência a pagamentos. Não havia, portanto, uma
razão para transpor um marco democrático e determinar a censura da
revista e do site. O que Toffoli conseguiu com isso? Em primeiro lugar,
multiplicou fantasticamente a divulgação de uma notícia que lhe era
incômoda. Em segundo lugar, fortaleceu a suspeição de que havia
realmente algo a esconder.
Não foi um lance inteligente para quem personifica um Poder moderador.
Foi um curto-circuito na compreensão do que é o Brasil hoje e abre uma
crise aguda, anuvia ainda mais uma atmosfera nebulosa. Todo esse equívoco terá um desfecho. Se o Supremo realmente se preocupa
com a gravidade da situação, deve resolvê-la logo. E Toffoli perderá – e
creio que perde também as condições de seguir na presidência. Esse é um desdobramento que me parece realmente superar a questão. Na
verdade, a necessidade de ir um pouco mais a fundo se dá em outros
problemas neste momento. E nada se realiza. O caso da morte de um músico
por soldados do Exército, em Guadalupe, no Rio de Janeiro, é um deles.
É discutível se o caso não deveria ser enviado para a Justiça comum.
Mesmo um julgamento perfeito na esfera militar ainda não esgota o tema.
Era preciso um projeto de longas conversas com os soldados, entender de
onde tiraram aquela confiança para disparar tantos tiros e desprezar os
apelos de socorro. [ÁREA MILITAR é ÁREA MILITAR e se os soldados do final dos anos 60, tivessem exata noção do que deveriam fazer no caso de 'invasão' - proposital ou por descuido - de ÁREA MILITAR ou desobedecer ORDEM DE PARE, certamente muitos dos terroristas hoje vivos, não teriam sobrevivido e muitos brasileiros do BEM, não teriam sido covardemente assassinados.] Existe uma possibilidade de encontrarmos algumas ideias que circulam na
dimensão política, uma banalização da violência. Não me arrisco a dizer
que uma ou outra ideia das que correm tenha influenciado os jovens.
Apenas digo que valeria a pena pesquisar.
Em quase todas as conversas sobre segurança, incluído o pacote de Sergio
Moro, existe uma ênfase punitiva. Mas há um amplo caminho pelo trabalho
preventivo e creio que o Exército, tantas vezes chamado a intervir, tem
condições de trilhá-lo. Que ideia os soldados tinham do protocolo, que
ideias os levaram a desprezar as regras? Isso não pode acontecer com
soldados do Exército Brasileiro e certamente o estudo do caso tende a
indicar alguns caminhos.
No caso de Guararema, onde a PM matou 11 assaltantes, toda a ênfase de
Doria e de Bolsonaro foi na ação policial. Estive em Guararema seis
meses antes para mostrar como a cidade se tornou segura, por meio do seu
sistema de câmeras. Acompanhei casos na sala de controle, observei que
mesmo pequenos atos de vandalismo estavam sob vigilância. Claro que, na minha concepção de segurança, interpretaria Guararema como
um sucesso das câmeras – um estímulo para outras cidades brasileiras.
Isso não significa desvalorizar a ação policial. É louvá-las. Mas depois
de um exame no cérebro da segurança de Guararema, que é a sala de
controle, por sinal, ao lado do quartel da PM.
A política de Bolsonaro flerta com a morte constantemente. Isso me
incomoda. Vivo nas estradas brasileiras. É meu trabalho cotidiano.
Considero um absurdo a ideia de reduzir os radares. Vai aumentar os
acidentes. Não sei de onde ele tirou isso, aliás parece um Jânio Quadros
punk. Briga de galo, biquíni, saudades dos delírios amenos.
Já vi anseios por aumento do limite legal de velocidade na Alemanha. São
outros carros, outras estradas. Bolsonaro quer suprimir os
controladores de limites.
Nosso regime democrático baseia-se num sistema de pesos e contrapesos.
Ultimamente, andam todos muito pesados. Um importante contrapeso acaba
sendo a própria sociedade: o Brasil está em outra, espero. Se os próprios ministros do STF observarem bem a reação que suas medidas
provocaram, vão perceber que existe um consenso em torno da liberdade
de expressão que não se pode mais ultrapassar, a não ser numa ditadura.
Bolsonaro, creio, continuará atirando a esmo. De repente aparece em
Israel com uma ousada tese sobre a História. [Bolsonaro não tem, nunca teve e certamente não terá razões de Estado para viagem a Israel.] Presidentes não são
historiadores. Os que eventualmente o forem sabem que presidente não dá
opiniões tão radicais sobre um fato histórico. De repente, congela preços, opina sobre os equipamentos irregulares que o
Ibama pode queimar e ainda tem toda uma guerra cultural para fazer –
comunistas, Paulo Freire, globalistas, teorias do aquecimento global, de
gênero...[e nos intervalos ainda recebe em 'palácio' sonegador fiscal.]
Se há alguma teoria que nos possa ajudar, entre todas, é a teoria do
caos. Temos de estudá-la muito para tirar algo de positivo da confusão
nacional.
Fernando Gabeira - O Globo