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domingo, 31 de julho de 2016

O maior legado da Olimpíada



É pavoroso o crime de omissão de sucessivos governos no cenário natural mais belo do mundo 

Esses apartamentos inacabados na Vila Olímpica não são nada para mim. Nada, diante da grande vergonha, de dimensões planetárias, que é a catástrofe ambiental do Rio de Janeiro. É pavoroso o crime de omissão (e provável desvio de verba) de sucessivos governos estaduais no cenário natural mais belo e majestoso do mundo. Pelo menos o crime está sendo exposto para o mundo. Viva a Olimpíada!

Além de carioca, sou militante desta Cidade Maravilhosa, nasci em Copacabana quando “arrastão” nada mais era que pescadores chegando com suas redes à areia coalhada de conchas e tatuís, peixes brilhando ao sol, águas cristalinas. Quando o Rio de Janeiro foi escolhido sede dos Jogos, em 2009, concorrendo com Madri, Tóquio e Chicago, vibrei. Era o momento de investir com seriedade. A adesão do povo foi impressionante: 85% queriam muito que o Rio fosse escolhido. Ingenuidade? Otimismo? Uma pesquisa da revista Forbes com 10 mil pessoas em 20 países acabava de eleger o Rio como “a cidade mais feliz do mundo”.

Meu artigo, há sete anos, parafraseava Barack Obama no título: “Sim, nós podemos”. Escrevi que cobraríamos o cumprimento de promessas porque estávamos “cansados de testemunhar falcatruas e projetos megalomaníacos que enchem os bolsos de políticos e são inúteis para a população”. Confiava em “uma virada” se houvesse “planejamento e responsabilidade”.

Nesse balneário com vistas de tirar o fôlego e clima ameno, havia três desafios a ser confrontados com a garra de atletas que buscam o ouro no pódio: a despoluição da Baía de Guanabara, a segurança pública e a infraestrutura urbana, com transporte adequado. Sabíamos como Barcelona havia aproveitado a oportunidade para se tornar um polo internacional de turismo. Por que não o Rio?

Até o prefeito Eduardo Paes me contradiz agora. Para o jornal inglês The Guardian, ele disse que “sim, nós perdemos”. “Esta [Olimpíada] é uma oportunidade perdida para o Brasil. Não estamos nos apresentando bem. Com todas essas crises econômicas e políticas, com todos esses escândalos, não é o melhor momento para estar nos olhos do mundo”, comentou, mas também reclamou de exagero nas críticas. “Isso me deixa louco. Se você ler os meios de comunicação internacionais, parece que tudo aqui é zika e pessoas atirando umas nas outras.”

Torcemos para a Olimpíada dar certo, em paz, sem ataques terroristas, sem assaltos a delegações e turistas, sem mortes de inocentes. E que sejam contornáveis os problemas na organização. Já nem são medalhas a nossa prioridade. Um legado da Olimpíada talvez seja o reconhecimento de nosso vexame maior: as águas imundas e poluídas do Rio. 

 Especialistas em saúde deram aos nadadores e velejadores um conselho. Fiquem de boca fechada para evitar doenças com dejetos, lixo, bactérias, rotavírus. “Os atletas estrangeiros estarão literalmente nadando em m... humana e correm o risco de adoecer por conta de todos aqueles micro-organismos”, disse ao jornal The New York Times Daniel Becker, pediatra carioca.

No ano passado, almocei com o governador Pezão e mencionei o fracasso de seu compromisso de despoluir a Baía até a Olimpíada. “Ruth, isso também é exagero do pessoal. Tem uns sacos boiando, uns pneus... a gente vai conseguir limpar.” Em 2014, ele dizia que a meta era ter 80% do esgoto tratado. Mas empurrou a meta com a barriga. Nas águas da Baía, há geladeiras, sofás, resíduos químicos de fábricas, óleo dos petroleiros. E, volta e meia, cadáveres.

Só pode ser gozação chamar de “ecobarco” aquele troço que faz papel de Comlurb na Baía de Guanabara, retirando toneladas de “lixo flutuante”. “Ecoboat” e ecobarreira não são nem paliativos. A 11 dias dos Jogos, foi retirada uma geladeira da água. Lars Grael, medalhista olímpico nas Olimpíadas de Seul e de Atlanta, disse que será “uma competição de vela com obstáculos”. Seu diagnóstico, em dia sem chuva: “Bastante sujeira, muito óleo na superfície e detritos. Plásticos, latas, engradados. Imagina, em plena regata, essa quantidade de lixo prendendo no casco da embarcação”.

Não foi por falta de planos bilionários ou de doações internacionais. Até ajuda do Japão o Rio já teve. As instalações de tratamento de esgoto são abandonadas ou sofrem vandalismo. As bombas param de funcionar e fica tudo por isso mesmo. Foi é por falta de vergonha.  Muita gente culpa “o brasileiro”, esse povo sem cultura ambiental. É verdade. Mesmo brasileiro com doutorado não sabe cuidar do lixo ou sai emporcalhando as praias. Mas o buraco é muito mais embaixo. Mais de 100 milhões de brasileiros não têm saneamento básico. Metade da população do país não tem coleta de esgoto! Depois da Olimpíada, talvez mude a cultura ambiental. É só a gente não ficar de boca fechada.

Fonte: Ruth de Aquino - Época