Bolsonaro foi eleito por circunstâncias que não lhe dá carta branca para governar só para seguidores originais
Uma ação disruptiva pressupõe substituição de processos ou procedimentos
em direção ao futuro. Num momento em que a democracia representativa
está em xeque no mundo ocidental, temos um governo de ruptura que sabe o
que quer mudar ou destruir, mas não sabe o que colocar no lugar. Bolsonaro foi eleito por um conjunto de circunstâncias que não lhe dá
carta branca para governar apenas para os seus seguidores originais. Não
há estelionato eleitoral, é verdade, mas também não é razoável que o
presidente eleito possa fazer o que lhe dá na cabeça.
Apesar de continuar insistindo em temas polêmicos, como, desta vez, o
trabalho infantil, pelo menos ele já sabe que há limites para suas
idiossincrasias. Por isso, advertiu que não pretende apresentar nenhuma
mudança na legislação brasileira, que o proíbe. O Congresso, o
Judiciário e a opinião pública seriam obstáculos intransponíveis.
O presidente talvez tenha tido o seu primeiro mês de sucessos com a
assinatura do acordo Mercosul-União Europeia e aprovação da proposta de
emenda constitucional da reforma da Previdência na Comissão Especial.
Atos, no entanto, que foram limitados pelo protagonismo da Câmara, no
caso da reforma, ou pelas regras internacionais a que o governo tem que
se submeter, quando adere ao acordo com os países europeus. Um governo que pretende se unir cada vez mais ao Ocidente, contra o que
considera uma conspiração internacionalista de esquerda, terá que
respeitar regras desse mesmo globalismo, seja com relação ao clima, seja
à própria democracia.
A simples menção ao trabalho infantil, por exemplo, cria um
mal-entendido desnecessário. Mais uma vez, Bolsonaro demonstra que não
entende o peso de suas palavras. O aumento de produtividade na
agricultura é dos maiores sucessos econômicos mundiais, à base de muito
investimento em tecnologia e criatividade. Não pode ser colocado em
dúvida devido ao pensamento retrógrado e extemporâneo do presidente da
República.
Um governo que quer parear-se às democracias ocidentais não pode
normalizar, pela boca de seu presidente, uma ação criminosa que dá
vantagem competitiva no comércio internacional, fortemente questionada, à
China, capitalismo de Estado que está sendo obrigado a abrir mão dessas
más práticas por ter aderido à organizações internacionais como a
Organização Mundial do Comércio (OMC).
O que o presidente passou na infância, colhendo milho e carregando
cachos de bananas nas costas aos 10 anos, é uma triste realidade ainda
hoje no Brasil, e ele, como presidente, deveria dedicar-se a mudar essa
situação de carência extrema, e não transformá-la em uma situação
normal. O trabalho enobrece, diz Bolsonaro. Mas o trabalho infantil avilta. A
proteção à criança e aos direitos humanos [desde que direitos humanos para HUMANOS DIREITOS] deveria vir em primeiro lugar
para o presidente.
A visão do presidente a respeito de certas questões da democracia é
simplificadora, quando não perigosa. Ao anunciar que levará o ministro
Sergio Moro à final da Copa América amanhã, disse que o povo mostrará
quem tem razão, referindo-se à divulgação dos diálogos do hoje ministro
da Justiça com os procuradores da Lava-Jato. Provavelmente, o presidente e seu ministro serão aplaudidos. Bolsonaro
transforma o Maracanã num moderno Coliseu, onde o povo decide a sorte do
gladiador. A consulta direta ao povo, com que sonha Bolsonaro, é dos
aspectos mais distorcidos da democracia. O que parece ser uma atitude
democrática transforma-se em manipulação populista. Da mesma forma,
plebiscitos podem ser utilizados com objetivos políticos, dependendo de
quando forem convocados e organizados.
Não há nada de estranho que a chamada “democracia direta” tenha sido o
principal mecanismo político de atuação dos governos bolivarianos da
região, que Bolsonaro combate tanto. Os populismos se aproximam.O fim das intermediações do Congresso, próprias dos sistemas
democráticos, é sonho de consumo de presidentes autoritários, de direita
ou de esquerda. Este é o tipo de ação basicamente antidemocrática, pois
uma coisa é criticar a atuação do Congresso e exigir mudanças na sua
ação política para aproximar-se de seus representados, o povo. Outra muito diferente é querer ultrapassar o Poder Legislativo e outras
instituições fazendo uma ligação direta com o eleitorado através de um
governo plebiscitário.