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sábado, 4 de novembro de 2017

A polícia que morre

A morte do coronel Teixeira, assassinado no Rio de janeiro, deflagra um confronto político e escancara como estão expostos os agentes na guerra contra o tráfico 

Um grupo da turma de formandos de 1993 da Polícia Militar do Rio de Janeiro tinha um encontro marcado para a sexta-feira, dia 27 de outubro. Eles se reuniriam para celebrar a nomeação de um colega ao comando da Academia Dom João VI, instituição onde os aspirantes dão o passo inicial na carreira. A comemoração foi cancelada. Os amigos se encontraram, mas para compartilhar uma dor extrema. Na véspera, o coronel Luiz Gustavo Lima Teixeira, de 48 anos, um dos integrantes mais queridos do grupo, morrera com um tiro no peito. Ele voltava de uma cerimônia militar. O comandante Teixeira vinha num Gol branco, descaracterizado, com o cabo Nei Filho ao volante. Por volta de meio-dia da quinta-feira, dia 26, o cabo parou atrás de um Audi (roubado três dias antes perto dali) numa esquina de fluxo intenso no Méier, subúrbio do Rio. 
DEDICAÇÃO
O coronel Luiz Gustavo Lima Teixeira. Ele morava próximo ao batalhão e ajudou a reformar a unidade (Foto: Reprodução)
 
Do Audi, saíram quatro bandidos armados, que, ao reconhecer a farda do comandante, abriram fogo. Teixeira morreu com um tiro que lhe atingiu a aorta e tombou no asfalto, de bruços, com a porta do carona aberta. O cabo Nei trocou tiros com os bandidos e saiu com ferimentos nas duas pernas. O Gol sofreu mais de 20 perfurações nas laterais, capô e para-brisa. Os bandidos fugiram a pé. Eles chegaram a render um taxista, mas desistiram de embarcar. Um deles subiu na garupa de um motociclista que também havia sido rendido. Teixeira foi levado para o hospital Salgado Filho, onde morreu.

>> Vida de PM no Rio: desprezados, doentes e com medo

O Rio é o estado onde policiais mais matam, mas também mais morrem no Brasil. Teixeira foi o 111º policial assassinado neste ano – dado que logo ficaria defasado. Até a quinta-feira (2), esse número subiria para 114. Teixeira foi o primeiro comandante de batalhão a fazer parte da estatística. Sua morte deflagrou um confronto político. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, fez críticas por atacado à polícia fluminense, com ênfase na atuação dos comandantes. “Comandantes de batalhão são sócios do crime organizado no Rio”, disse o ministro ao jornalista Josias de Souza. Jardim insinuou que a quantidade de tiros disparados em Teixeira sugere que a morte do comandante foi um “acerto de contas”, e não o desdobramento de uma tentativa de assalto.

>> As vítimas de farda no Rio de Janeiro

O ministro demonstrou desconhecer detalhes fundamentais: afirmou que Teixeira estava à paisana, quando, na verdade, o coronel vestia farda. Na guerra carioca, a simples descoberta de uma carteira de identificação policial é uma sentença de morte para o portador. “O prêmio que Teixeira ganhou pela morte em serviço é ter sido chamado de ladrão pelo ministro”, revolta-se o coronel João Fiorentini Guimarães, seu colega de turma. A família de Teixeira, a Associação de Oficiais da PM e o governador Luiz Fernando Pezão vão processar o ministro Jardim. Instado a apresentar evidências que embasem declarações tão contundentes, que poderiam ensejar uma investigação federal, o ministro da Justiça calou-se.

“O prêmio que o Teixeira ganhou por morrer em serviço é ter sido chamado de ladrão pelo Ministro”, diz seu amigo João Fiorentini 

Na segunda-feira passada (30), três dias após o sepultamento do coronel, aquele grupo de amigos foi à posse do coronel Rogério Quemento Lobasso na Academia da PM, cerimônia que havia sido adiada na sexta-feira. Ocasiões assim costumam ser festivas, embaladas pelos acordes da banda da instituição. Mas, naquele dia, a solenidade ganhou ares de homenagem póstuma ao comandante assassinado. Não houve sequer clima para a execução do Hino Nacional, como é praxe. Os amigos fizeram questão de ir ao apartamento número 5 do alojamento, onde as lembranças afloraram com nitidez. 

Foi ali que parte da turma que ingressou em 1991 na Academia viveu em internato durante os três anos de curso. Quinze alunos, divididos pela ordem de classificação no concurso, conviviam naquele quarto. Teixeira era o 33. Eles se espalhavam por beliches duplos, a cama do futuro comandante sempre impecavelmente arrumada, com o lençol esticado sem fazer vinco. Era chamado de Teixeirinha ou Zé Carioca, por causa do nariz adunco semelhante ao do papagaio dos quadrinhos. Luxo raro entre aqueles jovens,  o aluno 33 tinha um Fusca caramelo, sempre abarrotado de gente na saída para a folga de fim de semana. Nascia assim, mais de 25 anos atrás, a amizade entre os aspirantes, que hoje está na segunda geração. Essa patota de amigos, cuja maioria hoje ostenta a patente de coronel, ganhou até uma alcunha: AP-5, em referência ao apartamento onde se conheceram. O último encontro com a presença de Teixeira foi há cerca de um mês, num quiosque na orla.

 Abnegado, meticuloso, metódico e bem-humorado são algumas das características de Teixeira destacadas por seus contemporâneos de farda. “A palavra que melhor o define é agregador”, diz o coronel Daltro Antônio Ferrari Júnior, outro integrante do AP-5 e secretário-chefe da Casa Militar do Espírito Santo. Teixeira ascendeu na carreira transitando entre a área operacional e a acadêmica. Depois de se formar aspirante, ele fez o curso de perícia criminal, com especialização em grafia de documentos e no estudo dos efeitos da luz. Atuou na área estratégica da Secretaria de Segurança Pública, foi subcomandante do Batalhão de Policiamento em Vias Expressas (BPVE) e comandante da Guarda Palaciana, no Palácio Guanabara, além de chefiar batalhões. À frente do 16º BPM, ao participar de uma operação no Complexo do Alemão, foi atingido por estilhaços de bala no rosto, braços e pernas.

Desde o ano passado, Teixeira liderava o 3º BPM, que cobre 22 bairros, entre eles o Jacarezinho, área em constante conflagração. “Ele ficou muito feliz quando soube que seria designado para aquele batalhão”, conta o coronel Oderlei Santos, outro AP-5 e comandante do Batalhão de Petrópolis, na Região Serrana. Teixeira nasceu e cresceu no Méier, onde fica a última unidade que comandou. Morou com os pais e depois com a mulher numa vila, até se mudar para o endereço atual, que fica na mesma quadra do 3o Batalhão. Da varanda de seu apartamento dá para ver o pátio do BPM. Com parcerias com a iniciativa privada, Teixeira fez uma reforma, que consertou o telhado e pintou o prédio. Está em curso a recuperação do relógio no topo do torreão frontal, seu xodó. “Teixeira sempre exibiu a empolgação de um iniciante na profissão”, diz o coronel Lobasso, parceiro do comandante desde os tempos de 2o grau em um colégio no Méier. Nos escassos intervalos de folga, Teixeira gostava de ir com a mulher, Késia, e os filhos, Carolina, de 17 anos, e Rafael, de 12, aos jogos do Vasco. Sua mulher e a filha vestiam a camisa do time no velório. Ele também colecionava bonecos de personagens da Disney.

A segurança pública do Rio atravessa uma das mais graves crises de sua história. A falência financeira solapou especialmente o programa das unidades de pacificação nas favelas. O tráfico e as milícias formadas por policiais e bombeiros corruptos retomam territórios com voracidade, desfaçatez e crueldade. “Aumentaram os confrontos de 2014 para cá, com o uso de armas pesadas que foram contrabandeadas para o Rio”, diz Ubiratan Angelo, ex-comandante-geral da PM e coordenador de segurança humana da ONG Viva Rio. “A malha de policiamento está descoberta. Há um desequilíbrio entre os policiais de batalhões e os da UPP.”


A expansão dos enfrentamentos resultou na disparada dos autos de resistência, que é a morte nos confrontos com policiais. Em paralelo, houve uma escalada no homicídio de policiais – de 18 ocorrências, em 2012, no ápice da pacificação no estado, para os 132 registros no ano passado, de acordo com o Anuário da Violência publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A maioria desse casos acontece durante a folga dos agentes. A investigação sobre a morte do coronel Teixeira está a cargo da Divisão de Homicídios, que identificou Matheus do Espírito Santo Severiano, de 22 anos, como um dos participantes. Matheus tem passagem pela polícia por tráfico e esteve preso até junho deste ano. O delegado Rivaldo Barbosa descarta a hipótese de execução, aventada pelo ministro da Justiça.

Fonte: Revista Época


 

Para ser um bom policial tem que aceitar morrer no lugar do bandido? o policial mais eficiente não morre, mata bandido


A polícia que mata


Havia mais de uma década a polícia de São Paulo não matava tanto. ÉPOCA mostra com exclusividade o perfil do policial matador. E como é difícil puni-lo pelos abusos cometidos 

>> Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA desta semana

Francelina de Morais acordou num sobressalto na madrugada de 11 de outubro de 2015, com vizinhos gritando à sua porta. Foi assim que ela soube, por volta das 3 da manhã, que Alex, o filho mais velho, acabara de ser atropelado na rua de cima de sua casa, em Sapopemba, um bairro pobre na Zona Leste de São Paulo. Chegava a ela assim, sem nenhum cuidado, o que seria a tragédia de sua vida. Numa manobra mental de negação, Francelina perguntou: “Que horas são?”, na esperança de que Alex ainda estivesse na casa noturna distante dali, onde trabalhava como segurança. O rompante de incredulidade não demorou a passar. Mesmo sem coragem para chegar perto do corpo, Francelina logo soube que era Alex estirado no asfalto. Cerca de 20 minutos depois, ele foi levado pelos socorristas. Morreu no hospital na manhã seguinte, aos 39 anos.

A polícia que morre


Aturdida, Francelina pouco se inteirou dos detalhes que levaram à morte do filho. Os relatos dos moradores davam conta de que uma Honda CG vermelha com dois homens havia passado em alta velocidade, seguida por uma viatura com dois policiais. A moto teria batido em Alex e fugido em seguida. Parecia um crime de trânsito com omissão de socorro. 

>> Vida de PM no Rio: desprezados, doentes e com medo
 
Mas, no hospital, a narrativa mudou completamente. “Quem disse que seu filho foi atropelado?”, disse a Francelina o médico responsável pelo atendimento. Ao ouvir dela que a Polícia Militar tinha registrado essa versão no boletim de ocorrência, ele interrompeu: “Não, ele não foi atropelado. Seu filho levou um tiro na nuca e morreu”.


Francelina foi até uma delegacia pedir que o registro de atropelamento fosse corrigido. “A senhora está falando que seu filho foi baleado? A senhora fala isso, fala aquilo, o médico fala que foi tiro... Mas quem prova que foi mesmo tiro?”, disse o plantonista da delegacia, segundo Francelina. Começava ali a peregrinação para provar que Alex fora vítima não só de um assassinato, mas também de uma armação para livrar seu assassino de culpa. Só depois de Francelina voltar acompanhada de uma advogada e acionar a Ouvidoria da Polícia Militar, a versão correta foi registrada num boletim de ocorrência. Ela ainda precisou brigar para conseguir uma máquina de raios X; o Instituto Médico-Legal da Região Leste, para onde o corpo havia sido levado, não tinha o equipamento. Depois de feito o exame, ficou provado que havia uma bala na cabeça de Alex.

Aquelas horas de terror eram só as primeiras de um longo período para provar que Alex foi assassinado por policiais. Casos assim percorrem um caminho extenso, difícil e solitário até chegarem aos tribunais na tentativa de fazer justiça. Primeiro se tornam objeto de um inquérito policial, depois de uma denúncia do Ministério Público, que, se aceita por um juiz, vira um processo – com grande chance de absolvição. A regra é que policiais que cometem crimes terminem impunes, nas ruas. “Para condenar um policial hoje, é preciso ter provas incontestáveis, como vídeos e gravações, além de uma testemunha tão ilibada quanto um padre”, afirma Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Só exceções são condenados e presos, aqueles casos paradigmáticos, como os de policiais que mataram a mulher ou o filho, ou então cometeram algum sadismo durante o crime.”

Em 2017, a polícia paulista quebrou um novo – e infeliz – recorde de assassinatos. Até setembro, militares e civis em serviço e de folga mataram 687 pessoas – a maior soma para o período dos últimos 15 anos. Em números absolutos, a corporação paulista é a segunda que mais mata entre os estados brasileiros: 857 pessoas em 2016, atrás apenas do Rio de Janeiro (925). É certo que a maioria expressiva dos policiais cumpre seu dever sem incorrer em crimes. É certo também que os policiais combatem criminosos perigosos em um país violento – onde mais de 61 mil pessoas foram assassinadas no ano passado – e, em alguns casos, podem vir a matar bandidos em confrontos. Mas não há justificativa razoável para a escala com que isso acontece no Brasil.

Fonte: Revista Época