Maria Cristina Fernandes
Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população, menção ao estado de sítio teve efeito inverso
O presidente Jair Bolsonaro trocou o ministro da Saúde sem arredar um
milímetro de suas convicções sobre o combate à pandemia do coronavírus. E
ainda valeu-se do discurso de apresentação do novo ministro para subir o
tom contra os governadores e o Congresso. Se o pronunciamento visava a
tranquilizar a população sobre a condução de um governo desfalcado do
principal gerente do combate à pandemia, a menção ao estado de sítio,
ainda que para dizer que o instrumento não seria usado, teve efeito
inverso.
Ao citar o “clima de terror que se instalou na sociedade”, Bolsonaro
tentou relacioná-lo ao desemprego provocado pelas medidas restritivas
dos governos estaduais e não ao medo da morte pela doença. Subiu o tom
contra os governadores, com quem trava uma disputa no Congresso no
projeto de compensação pelas perdas na arrecadação: “Se governadores e
prefeitos exageraram, não coloquem essa conta nas costas do povo
brasileiro”. São Paulo e Rio, de João Doria e Wilson Witzel, são os
Estados que mais perderam receita.
Acusou-os de cercear direitos individuais, quando “quem tem direito a
estado de defesa ou estado de sítio é o presidente da República”. [O ISOLAMENTO VIOLA O DIREITO CONSTITUCIONAL DE IR E VIR - Cláusula Pétrea, que até discordamos da sua existência, mas se está na Lei, na Constituição, temos que cumprir.] Não
defendeu o uso de nenhum dos dois instrumentos, mas sua menção no
discurso não é fortuita. Tanto reitera sua autoridade num momento em que
foi derrotado na Câmara pelo projeto de ajuda aos Estados e no Supremo
pela tentativa de afrouxar o isolamento social, quanto tenta colocar
governadores e prefeitos no mesmo balaio de seu voluntarismo.
Ao demitir o ministro mais popular de seu governo em meio à elevação da
curva de óbitos da covid-19, Bolsonaro fez aposta arriscada. Os
panelaços, durante o discurso, anteciparam prejuízos que já busca
socializar. Se ele perde com a demissão de Henrique Mandetta,
governadores e prefeitos, alheios ao fato de que “junto com o vírus veio
uma máquina de moer empregos”, não podem sair ganhando: “O remédio não
pode ser mais danoso que a doença”.
O novo ministro, ao seu lado, demonstrou que não montará em cavalo de
batalha por suas convicções. A julgar pelo artigo que escreveu, no
início de abril sobre a covid-19, Nelson Teich pouco mudaria na gestão
do ministério. “Felizmente, apesar de todos os problemas, a condução até
o momento foi perfeita”, escreveu. No texto, defendeu a opção pelo
distanciamento social: “É uma estratégia que permite ganhar tempo para
entender melhor a doença e implementar medidas que permitam a retomada
econômica do país.” No discurso em que se apresentou ao país limitou-se a
dizer que não haverá mudanças bruscas: “Saúde e economia não são
excludentes.”
A comparação de Bolsonaro entre os direitos individuais pretendidas
pelos governadores e os danos que um estado de sítio poderia provocar
deve ter surtido efeito sobre Teich. O novo ministro enfatizou a
necessidade de aprimorar a coleta de dados e informações sobre a doença,
mas não retomou a proposta do artigo (“estratégias de rastreamento e
monitorização, algo que poderia ser rapidamente feito com o auxílio das
operadoras de telefonia celular”). Ao contrário de seu antecessor, que
sempre alertou contra a impossibilidade de se fazer isso num país de 200
milhões de habitantes, Teich quer testes em massa. O novo ministro
promete agir sob bases “técnicas e científicas”. Hermético, não se fará
entender facilmente pela população, o que, pelo histórico de comunicador
de Mandetta, deve ter contado, para o presidente, a favor de sua
nomeação. [querem discurso, barulho, bobagens, gargalhadas, nomeiem um animador de auditório;
Trabalho, nomeie um profissional competente - no caso da saúde, Nelson Teich, é a escolha ideal - até que provem o contrário.]
Dono de uma empresa de gestão tecnológica de saúde, o novo ministro
surpreenderá se aparecer com o jaleco do SUS. O Sistema Único de Saúde
teve uma breve menção em seu discurso de ontem, quando Teich disse que o
programa de testes o envolveria, bem como a saúde suplementar e as
empresas. Não deixa de ser uma evolução. No artigo do início de abril,
entre 1.991 palavras, não se encontra nenhuma menção ao sistema público
que tem segurado o tranco da pandemia no país.
Maria Cristina Fernandes, jornalista - Valor Econômico