Valor Econômico
O grande debate se dará no Congresso, pois a ampliação do programa
de transferência de renda necessitará de alterações constitucionais e
legais
A pandemia de covid-19 desnudou para uma parte significativa da
população brasileira uma realidade social de grande desigualdade e de
pobreza no país. O quadro já era conhecido de muitos, mas ele ficou mais
evidente para todos quando a mídia revelou que um grande número de
cidadãos não dispunha sequer de água e sabão para higienizar as mãos e,
com isso, proteger-se do novo coronavírus.
O desconhecido de quase todos foi o universo de brasileiros sem qualquer
amparo do Estado, muitas vezes sem identificação civil. Foi essa a
impressionante realidade revelada pelo auxílio emergencial de R$ 600 aos
trabalhadores informais. Muitos ambulantes, domésticos e aqueles que
fazem pequenos “bicos” para sobreviver não conseguiram o auxílio
oferecido pelo governo simplesmente porque não tinham o RG (Registro
Geral). Ou seja, não existiam para o Estado. Os cidadãos “invisíveis”
passaram a ser identificados, pela primeira vez.
[Como é sabido ainda tem na fila da primeira parcela do 'auxílio emergencial', quase dois milhões de brasileiros.
Ocorre que o que é ruim, sempre pode piorar; especialmente quando envolve a Caixa Econômica Federal. Com muita enrolação grande parte dos inscritos conseguiram receber a primeira parcela no mês de junho. Todos ficaram confiantes de que a segunda parcela cairia na mesma conta que caiu a primeira.
Mas, a Caixa sempre empenhada em complicar decidiu pagar todos os auxílios via poupança digital - desprezando, buscando complicar, a conta corrente ou de poupança usada para a primeira parcela.
Com tão 'facilitadora' providência os milhões que ficaram esperando o crédito na conta convencional (usada na primeira parcela - portanto, testada e aprovada) nada receberam e por desconhecer a mudança da conta de depósito, não conferiram a poupança digital.
A promessa é de que em meados deste mês, as contas digitais que não foram movimentadas, terão os valores transferidos para a conta convencional e ficará tudo bem.
FICARÁ MESMO? Tudo indica que as contas digitais são fáceis de serem movimentadas indevidamente - fraudes - e o dinheiro sumir. Não tendo o que transferir, nada será transferido e também os que não receberam, não terão como, nem a quem, reclamar.
Aliás, ninguém entende para que colocar o tal 'ministério da cidadania' na questão nada faz. A redução do número de pessoas que não receberam é mérito da interferência da Dataprev.
Uma pergunta: será que esse ministério da cidadania é mesmo necessário?
Talvez fosse conveniente, inteligente e até mesmo humano, disponibilizar uma página na Dataprev para que as pessoas que ainda estão com seus pedidos em análise - quase 2.000.000 de brasileiros, necessitados - possam recorrer da demora, questionar.
E os que receberam a primeira parcela e não tiveram acesso à segunda possam questionar.]
A injusta realidade brasileira incomodou a consciência nacional e muitas
pessoas - economistas, sociólogos, empresários e cidadãos de várias
profissões - passaram a defender a execução de uma política de
transferência de renda pelo Estado que garanta um mínimo de dignidade a
esses brasileiros. São numerosas as propostas que surgiram, que vão desde a duplicação do
programa Bolsa Família até a concessão de uma renda mínima a cada
brasileiro. Em recente estudo feito para o Insper, o economista Marcos
Mendes estimou que o custo adicional dos programas de transferência de
renda varia de R$ 33 bilhões por ano a mais de R$ 900 bilhões por ano.
Um passo importante para a melhoria do quadro social, no entanto, já foi
dado. O Congresso Nacional acaba de aprovar o novo marco legal do
saneamento básico, que permite a privatização de estatais do setor e a
participação da iniciativa privada nas licitações de obras. A perspectiva é de que aumentem os investimentos em saneamento nos
próximos anos, melhorando o triste cenário brasileiro, onde cerca de 40
milhões de pessoas não têm acesso a água potável e cerca de 100 milhões
não dispõem de coleta de esgoto em suas residências. A meta do novo
marco legal é que, até 2033, 99% das residências tenham água potável e
90%, coleta e tratamento de esgoto. Isso pode melhor significativamente a
saúde da população.
O impacto da realidade escancarada pela pandemia parece ter criado na
sociedade um consenso de que é preciso aumentar a rede de proteção
social, englobando aqueles que, atualmente, não recebem nada do Estado. O
governo já anunciou a sua intenção de ampliar o programa de
transferência de renda. Mas, como lembrou o secretário de Política
Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, em entrevista ao
Valor, na semana passada, a condição para o novo programa é que o teto
de gastos da União seja mantido. O teto é a âncora fiscal à qual o governo se agarra para sair do
turbilhão de gastos que foi obrigado a fazer no enfrentamento desta
terrível crise de saúde, e que elevou a dívida pública a quase 100% do
Produto Interno Bruto (PIB). A ideia das autoridades econômicas é fazer
uma realocação orçamentária, tirando recursos de programas menos
eficientes e passando recursos para os mais eficientes.
O grande debate se dará no Congresso Nacional, pois, certamente, a
ampliação do programa de transferência de renda necessitará de
alterações constitucionais e legais. Há, no entanto, um princípio que
deve nortear este debate. Ele foi expresso pelo economista Marcos
Mendes, em seu estudo para o Insper. Mendes observa que qualquer ampliação de programa de transferência de
renda deve ser precedida por medidas que assegurem as receitas para o
seu financiamento. “Aprovar primeiro a expansão dos gastos, para depois
se buscar o financiamento, em um contexto de alta fragilidade fiscal,
será a receita para mais uma crise econômica”, adverte. A justa exaltação de alguns para mudar o atual quadro de desigualdade do
país não pode obscurecer a noção de que primeiro é necessário assegurar
os meios para, em seguida, definir os benefícios. É o mínimo que se
deve esperar de pessoas que realmente desejam mudar a atual realidade
social do país, de forma sustentável.
Editorial - Valor Econômico