O fato de mais de 70% dos juízes e desembargadores terem recebido salários acima do limite chama a atenção para a falta de clareza na remuneração do funcionalismo
Reza a
tradição brasileira que lei, para ser obedecida, precisa “pegar”. O estabelecimento
de um teto para a remuneração do servidor público — o salário de ministro do
Supremo, R$ 33.763 —, parece ser exemplo de uma regra que não “pegou”. Mas nada
é simples no mundo da burocracia do Estado, nem visível para a sociedade, mesmo
sendo ela responsável por pagar todas as contas do setor público. Na edição
de domingo, O GLOBO trouxe informações levantadas pelo Núcleo de Dados do
jornal em folhas de pagamento dos tribunais de todo o país, requisitadas pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por determinação da sua presidente e do
Supremo, ministra Cármen Lúcia.
Há
discrepâncias preocupantes entre valores, além de muitos casos de juízes que
furam o teto legal da remuneração de ministro do STF, norma constitucional. Do total
de mais de 16 mil juízes e desembargadores dos tribunais de Justiça dos
estados, 11,6 mil ou 72% receberam além do teto, tendo uma remuneração média de
R$ 42 mil. A depender do caso, foram utilizadas folhas de setembro, outubro e
novembro. Excluíram-se
do levantamento férias, abonos de permanência, e décimo terceiro salário,
comuns a todo servidor público. No caso da remuneração dos juízes, têm bastante
peso auxílios, gratificações e pagamentos retroativos.
Em
entrevista a GloboNews, no domingo, a ministra Cármen Lúcia, além de pedir que
os demais poderes da República também divulguem suas folhas de salários,
ponderou que nem sempre uma remuneração abaixo do teto é legal, bem como uma
acima dele é ilegal. Lembrou que a própria Constituição abre exceções para
“parcelas de caráter indenizatório previstas em lei.” É certo
que toda a massa de dados recebidos pelo CNJ será analisada em busca de
quaisquer desvios. Mas também não há dúvidas de que o universo da remuneração
do servidor é opaco, nada transparente, como deveria ser.
O próprio
CNJ só conseguiu as informações por determinação expressa da ministra. Foi
preciso também que os tribunais uniformizassem a apresentação dos salários e
respectivos extras para que se possam fazer as devidas comparações. Esta
caixa-preta, mais uma do setor público, precisa ser aberta. É necessário
entender, por exemplo, por que 52 magistrados receberam, em um mês, salários
acima de R$ 100 mil.
Defende-se
que os altos servidores públicos sejam bem remunerados, à altura da função que
exercem, mas de forma translúcida. Tramita, por exemplo, na Câmara, projeto de
lei para definir os adicionais recebidos por juízes. Boa oportunidade para
tratar, por exemplo, do “auxílio-moradia”, uma parcela indenizatória que pode
ser incorporada ao salário mesmo de quem mora em residência própria na cidade
em que trabalha. São questões como esta que não podem ficar sem resposta.
Editorial - O Globo