Marco Aurélio estendeu ao limite seu poder decisório, resvalando para o arbitrário
O Brasil é um país que não vive em paz consigo mesmo. Não há um dia
sequer em que o cidadão de bem não tenha de estar atento a alguma medida
esdrúxula do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Se dependesse
do povo, o Supremo Tribunal Federal (STF) não existiria mais, tamanho
seu descrédito. No apagar das luzes do ano judiciário, um dia antes do recesso do
Supremo, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu, monocraticamente,
mandar soltar todos os presos por condenação em segunda instância que
não tenham esgotado todas as instâncias recursais. Fez como se seus
colegas não contassem para nada. Ele, só ele, seria a encarnação da lei.
A sua mensagem foi clara: “o Supremo sou Eu!” – com E maiúsculo.
O ministro Marco Aurélio, por sinal, defendeu a sua decisão
“preventivamente” durante a tarde, afirmando que se o presidente do STF,
Dias Toffoli, viesse a cassar a liminar, isso significaria uma
“autofagia”, pois os ministros estão em posição de paridade. Paridade
seria, na verdade, o respeito a decisões anteriores do Supremo,
incluídas as colegiadas. Diante da pressão generalizada – imprensa, sociedade civil, movimentos
políticos, setores do Judiciário e do Ministério Público –, o presidente
Dias Toffoli decidiu acatar os argumentos para derrubar a liminar
apresentados pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, visando a
suspender os efeitos da decisão do ministro Marco Aurélio até que o
plenário do STF aprecie a matéria de forma definitiva, em abril de 2019.
O rito constitucional voltou ao seu trilho, porém o estrago estava
feito. O Supremo mostrou, mais uma vez, não estar à altura de sua
missão, que seria a de salvaguardar a Constituição e, por via de
consequência, as instituições do País. Expôs a sua falta de coesão e,
sobretudo, o seu distanciamento do que pensa e percebe a sociedade. Um
Supremo divorciado socialmente cai inevitavelmente no descrédito. A decisão do ministro Marco Aurélio foi tanto mais esdrúxula por ter
sido proferida apenas dois dias depois de o presidente da Corte pautar a
rediscussão do tema da prisão de condenados em segunda instância. Logo,
sua postura foi a de estender ao limite seu poder decisório, resvalando
para o arbitrário. Não fosse a decisão rápida e certeira do presidente
Toffolli, estaríamos imersos na insegurança jurídica e institucional.
Diante desse cenário, a defesa diligente e estrelada de Lula protocolou
um pedido de liberdade em incríveis 48 minutos. Deu a impressão de haver
uma combinação! Antes de ser derrubada, a decisão abria inúmeras
brechas, possibilitando a soltura de presos condenados em segunda
instância com recursos pendentes, mas ainda havia a necessidade de
passarem pelo crivo de cada juízo criminal. [não fosse a serenidade e competência da juíza Carolina Lebbos - decisão que como bem destaca o autor do Post sob comento, serviu e continuará servindo de exemplo para o próprio STF - , responsável pela execução penal do presidiário petista, Lula da Silva, sentenciado e encarcerado Lula teria ganho a liberdade e batido asas a exemplo do facínora Battisti - talvez estivessem dividindo o mesmo valhacouto.] Salvaguardas jurisdicionais
foram aí observadas. Por essa razão Lula não foi solto no período entre a decisão do ministro
Marco Aurélio e a cassação do presidente Dias Toffoli. A juíza
responsável pelo caso de Lula em Curitiba, Carolina Lebbos, requereu,
antes de tomar qualquer atitude, favorável ou desfavorável a Lula, a
posição do Ministério Público. Deu mostra de como um magistrado deve
atuar. O Supremo deveria servir de exemplo para todo o País – e para o
Judiciário em particular. Acontece que hoje o exemplo está sendo dado
por juízes e promotores de primeira e segunda instâncias.
Por trás do verniz liberal da decisão monocrática de Marco Aurélio, que
dizia que a sua decisão não versava sobre o caso de Lula, houve o
atropelamento de reiteradas decisões colegiadas do próprio STF. Em
outras palavras, O ministro buscou defender a tese de que o princípio da
presunção de inocência torna imperativo o esgotamento recursal, e tal
“universalismo de procedimento” atingiria a todos, e não apenas Lula. A
questão é que esse argumento não deveria servir de fachada para a
impunidade, para a liberdade de criminosos julgados e condenados em
outras instâncias do Judiciário. Institucionalmente, o País flerta com a desintegração há muito tempo.
Atualmente, sempre há espaço para se dar mais um passo em direção ao
abismo. Fala-se frequentemente em “chicana”, “anomia”, “crise”,
“turbulência”. Agora foi dada mais uma contribuição nesse sentido. E
isso precisamente num momento de transição de um governo para outro, com
este último prometendo outra forma de governar. É como se esta chance
de mudança não devesse ser aproveitada. Imagine-se Lula livre e outros
corruptos fazendo politicamente declarações desestabilizadoras. A
instabilidade seria total! Uma decisão “jurídica” teria sérias
consequências políticas.
O Supremo Tribunal abandonou há muitos anos a característica de
autocontenção típica de um tribunal constitucional. A própria ideia de
self-restraint deixou mesmo de figurar no vocabulário da Corte.
Barganha-se com o Executivo e o Legislativo diariamente, sobre as causas
mais variadas, até mesmo corporativas, como aumentos salariais e
privilégios. Agora, cristalizou-se a completa falta de autocontenção
entre os próprios ministros, que não convivem em harmonia e tampouco
representam uma unidade.
O voto “firme” do ministro Marco Aurélio Mello pela impunidade significa
mais um golpe contra a população que quer viver em paz e clama por
mudanças, tendo afirmado isso taxativamente nas urnas. A falta de
sintonia dos Poderes da República com a realidade é tão grande que o
flerte que se faz com a falta de punição da classe política e dos crimes
de colarinho-branco pode, sim, jogar o Brasil numa espiral contínua de
crises. Pessoas condenadas por crimes graves devem ir para a cadeia, sobretudo
se por desvio e captura de recursos públicos. É surreal que isso tenha
de ser afirmado e reafirmado em editoriais, na imprensa, na televisão,
nas mídias sociais. Trata-se de uma volta aos elementos básicos de uma
democracia liberal, nunca é demais lembrar.
Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na UFRGS.