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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Os perigos do consequencialismo - As supremas divergências no STF

O STF e a opinião pública - Merval Pereira - O Globo

Quando propôs retornar ao plenário as ações penais que estavam sendo julgadas pelas Turmas, feriu suscetibilidades, retirou poderes, mas teve a aprovação unânime do colegiado porque baseou a decisão em fatos – a redução das ações em tramitação -, não em política. Embora a consequência da mudança tenha sido retirar da Segunda Turma o poder político de impor a visão não necessariamente majoritária de ministros ditos “garantistas”, que seriam reforçados pela nomeação por Bolsonaro do desembargador Kassio Marques para a vaga aberta com a aposentadoria de Celso de Mello.  

Na nova polêmica, Fux anulou um Habeas Corpus do ministro Marco Aurélio Mello que soltou o traficante André do Rap, um dos chefes da maior organização criminosa em atuação no país. Nada evidencia com mais rigor a grotesca situação jurídica em que nos metemos do que o pedido de outro traficante, Gilcimar de Abreu, o Poocker, para que o ministro do Marco Aurélio estendesse também a ele a decisão de soltar seu comparsa André do Rap, pois alega que sua prisão preventiva já estourou o prazo de 90 dias para uma confirmação pelo juiz que o condenou.  

Poocker e André do Rap eram companheiros no tráfico internacional de drogas, enviando cocaína para a Europa através do Porto de Santos. Pooker está preso em Mirandópolis, André do Rap partiu, a bordo de um jato particular, para outros ares, possivelmente paraguaios. Nada mais previsível do que isso.  Ao usar o novo artigo 316 do Código de Processo Penal, o ministro Marco Aurélio foi tecnicamente correto, mas não levou em conta outros requisitos para a manutenção da prisão preventiva, como a periculosidade do preso e sua ameaça à segurança pública.  

Levar em conta a textualidade da lei, sem atentar para outros fatores, é o que distancia “garantistas” como Marco Aurélio de “consequencialistas” como Fux. Há diversas interpretações de tribunais superiores, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e inclusive o STF, que consideram desnecessária a confirmação das razões para a prisão preventiva quando o réu, como o traficante André do Rap, já tiver sido condenado em primeira e em segunda instâncias.  Caso ainda estivesse em vigor a prisão em segunda instância, o traficante estaria na prisão cumprindo sua pena. No caso em discussão, tanto o Ministério Público Federal (MPF) quanto o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) já haviam justificado a necessidade de manutenção da prisão de André do Rap. O HC encaminhado ao ministro Marco Aurélio veio como recurso daquelas decisões.  

O que o ministro Marco Aurélio chamou de “autofagia”, o fato de um ministro contrariar a decisão de outro ministro, pode ser visto como a defesa do compadrio, o que tem levado o Supremo Tribunal Federal a perder, diante da opinião pública, a aura de defensor da Constituição. Mais uma vez, porém, o ministro Fux deve ter confirmada sua posição, mesmo que tenha desagradado outros “garantistas” dentro da Corte.  

Ele vai levar ao plenário o julgamento sobre o Habeas Corpus de Marco Aurélio e, mesmo que os debates sejam acalorados e até ataques retóricos sejam feitos, é improvável que a maioria do plenário sustente a soltura de um traficante perigoso que se encontra foragido depois de ser agraciado com uma interpretação literal da lei que prejudicou a sociedade.

Merval Pereira, colunista - O Globo


segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Prioridade é Supremo estável, não juiz de garantias- Blog do Josias



Se fosse feita uma pesquisa para saber a opinião dos brasileiros sobre as deficiências do Judiciário, seria difícil encontrar quem incluísse o juiz de garantias na lista de prioridades. Mas muita gente certamente diria que o Brasil precisa de um Supremo Tribunal Federal estável um tribunal que não desfaça a si mesmo em cada decisão. Infelizmente, a autofagia do Supremo reforça a vocação da Corte para transformar o que é ruim em algo muito pior.

O Supremo precisa dizer, num julgamento com a participação dos seus 11 membros, se a presença de dois juízes em cada processo, do modo como foi aprovado pelo Congresso, fere ou não a Constituição. O pior é que, embora todos saibam o que precisa ser feito, não há a menor garantia de que a coisa acontecerá. Como relator dos recursos contra a criação do juiz de garantias, Fux não tem um prazo para liberar o processo. Para complicar, o decano Celso de Mello tirou licença médica.

De concreto, por ora, apenas uma constatação: já não se pode dizer que a criação do juiz de garantias não teve serventia. A iniciativa serviu para confirmar que pelo menos uma coisa já está garantida no Brasil: a insegurança jurídica. Há de tudo no Supremo, exceto segurança. O ministro Marco Aurélio Mello tem razão quando diz que a autofagia que leva Luiz Fux a mastigar uma decisão de Dias Toffoli joga água no moinho da deterioração de uma cada vez mais hipotética supremacia do Supremo. [para ter um pouco de supremacia o Supremo precisa ser estável e a única estabilidade do Supremo é a INSEGURANÇA JURÍDICA = SUPREMA INSTABILIDADE.]

Blog do Josias - Josias de Souza, jornalista - UOL

 

domingo, 22 de setembro de 2019

Toffoli inocula no STF vírus difusor da autofagia - Blog do Josias - UOL



Certos ministros do Supremo Tribunal Federal cultivam o nefasto hábito de impor na marra suas vontades, seus interesses e suas conveniências. Esses ministros dão preferência para as decisões monocráticas. Depois de decidir individualmente, sentam em cima dos próprios despachos. Evitam submeter suas deliberações à análise dos colegas, em julgamentos coletivos.



Dias Toffoli, o atual presidente do Supremo, parece decidido a radicalizar a insensatez. Sua radicalização inocula nas fileiras da Suprema Corte o vírus transmissor do hábito da autofagia. Os ministros mordem-se uns aos outros, mastigando a própria carne. É nesse contexto que está inserida a decisão de Edson Fachin de pautar para a próxima terça-feira, na Segunda Turma do Supremo, o julgamento de uma ação penal abastecida com dados do Coaf, cuja utilização Dias Toffoli proibiu. Fachin aproveita uma ação movida contra o deputado federal cearense Aníbal Gomes para antecipar um debate que Toffoli retarda desde as férias de julho, quando deferiu sozinho um recurso de Flávio Bolsonaro.



Aproveitando o pedido do primeiro-filho, Toffoli travou todos os inquéritos que correm no país com dados fornecidos pelo Coaf sem autorização judicial. Em instituições sérias, as regras costumam ser menos perigosas do que a improvisação. O Supremo deveria falar com o timbre forte do seu plenário. 

Mas como a única regra em vigor na Corte é o desprezo às regras, a autofagia se impõe como algo inevitável. Não resolve o problema. Pode levar à automutilação. Mas ajuda a plateia a não confundir certos ministros com os ministros certos.





Blog do Josias - UOL 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O Supremo sou Eu!

Marco Aurélio estendeu ao limite seu poder decisório, resvalando para o arbitrário

O Brasil é um país que não vive em paz consigo mesmo. Não há um dia sequer em que o cidadão de bem não tenha de estar atento a alguma medida esdrúxula do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Se dependesse do povo, o Supremo Tribunal Federal (STF) não existiria mais, tamanho seu descrédito. No apagar das luzes do ano judiciário, um dia antes do recesso do Supremo, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu, monocraticamente, mandar soltar todos os presos por condenação em segunda instância que não tenham esgotado todas as instâncias recursais. Fez como se seus colegas não contassem para nada. Ele, só ele, seria a encarnação da lei. A sua mensagem foi clara: “o Supremo sou Eu!” – com E maiúsculo.
O ministro Marco Aurélio, por sinal, defendeu a sua decisão “preventivamente” durante a tarde, afirmando que se o presidente do STF, Dias Toffoli, viesse a cassar a liminar, isso significaria uma “autofagia”, pois os ministros estão em posição de paridade. Paridade seria, na verdade, o respeito a decisões anteriores do Supremo, incluídas as colegiadas. Diante da pressão generalizada – imprensa, sociedade civil, movimentos políticos, setores do Judiciário e do Ministério Público –, o presidente Dias Toffoli decidiu acatar os argumentos para derrubar a liminar apresentados pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, visando a suspender os efeitos da decisão do ministro Marco Aurélio até que o plenário do STF aprecie a matéria de forma definitiva, em abril de 2019.
O rito constitucional voltou ao seu trilho, porém o estrago estava feito. O Supremo mostrou, mais uma vez, não estar à altura de sua missão, que seria a de salvaguardar a Constituição e, por via de consequência, as instituições do País. Expôs a sua falta de coesão e, sobretudo, o seu distanciamento do que pensa e percebe a sociedade. Um Supremo divorciado socialmente cai inevitavelmente no descrédito. A decisão do ministro Marco Aurélio foi tanto mais esdrúxula por ter sido proferida apenas dois dias depois de o presidente da Corte pautar a rediscussão do tema da prisão de condenados em segunda instância. Logo, sua postura foi a de estender ao limite seu poder decisório, resvalando para o arbitrário. Não fosse a decisão rápida e certeira do presidente Toffolli, estaríamos imersos na insegurança jurídica e institucional.
Diante desse cenário, a defesa diligente e estrelada de Lula protocolou um pedido de liberdade em incríveis 48 minutos. Deu a impressão de haver uma combinação! Antes de ser derrubada, a decisão abria inúmeras brechas, possibilitando a soltura de presos condenados em segunda instância com recursos pendentes, mas ainda havia a necessidade de passarem pelo crivo de cada juízo criminal. [não fosse a serenidade e competência da juíza Carolina Lebbos - decisão que como bem destaca o autor do Post sob comento, serviu e continuará servindo de exemplo para o próprio STF - , responsável pela execução penal do presidiário petista, Lula da Silva,  sentenciado e encarcerado Lula teria ganho a liberdade e batido asas a exemplo do facínora Battisti - talvez estivessem dividindo o mesmo valhacouto.] Salvaguardas jurisdicionais foram aí observadas. Por essa razão Lula não foi solto no período entre a decisão do ministro Marco Aurélio e a cassação do presidente Dias Toffoli. A juíza responsável pelo caso de Lula em Curitiba, Carolina Lebbos, requereu, antes de tomar qualquer atitude, favorável ou desfavorável a Lula, a posição do Ministério Público. Deu mostra de como um magistrado deve atuar. O Supremo deveria servir de exemplo para todo o País – e para o Judiciário em particular. Acontece que hoje o exemplo está sendo dado por juízes e promotores de primeira e segunda instâncias.
Por trás do verniz liberal da decisão monocrática de Marco Aurélio, que dizia que a sua decisão não versava sobre o caso de Lula, houve o atropelamento de reiteradas decisões colegiadas do próprio STF. Em outras palavras, O ministro buscou defender a tese de que o princípio da presunção de inocência torna imperativo o esgotamento recursal, e tal “universalismo de procedimento” atingiria a todos, e não apenas Lula. A questão é que esse argumento não deveria servir de fachada para a impunidade, para a liberdade de criminosos julgados e condenados em outras instâncias do Judiciário. Institucionalmente, o País flerta com a desintegração há muito tempo. Atualmente, sempre há espaço para se dar mais um passo em direção ao abismo. Fala-se frequentemente em “chicana”, “anomia”, “crise”, “turbulência”. Agora foi dada mais uma contribuição nesse sentido. E isso precisamente num momento de transição de um governo para outro, com este último prometendo outra forma de governar. É como se esta chance de mudança não devesse ser aproveitada. Imagine-se Lula livre e outros corruptos fazendo politicamente declarações desestabilizadoras. A instabilidade seria total! Uma decisão “jurídica” teria sérias consequências políticas.
O Supremo Tribunal abandonou há muitos anos a característica de autocontenção típica de um tribunal constitucional. A própria ideia de self-restraint deixou mesmo de figurar no vocabulário da Corte. Barganha-se com o Executivo e o Legislativo diariamente, sobre as causas mais variadas, até mesmo corporativas, como aumentos salariais e privilégios. Agora, cristalizou-se a completa falta de autocontenção entre os próprios ministros, que não convivem em harmonia e tampouco representam uma unidade.
O voto “firme” do ministro Marco Aurélio Mello pela impunidade significa mais um golpe contra a população que quer viver em paz e clama por mudanças, tendo afirmado isso taxativamente nas urnas. A falta de sintonia dos Poderes da República com a realidade é tão grande que o flerte que se faz com a falta de punição da classe política e dos crimes de colarinho-branco pode, sim, jogar o Brasil numa espiral contínua de crises. Pessoas condenadas por crimes graves devem ir para a cadeia, sobretudo se por desvio e captura de recursos públicos. É surreal que isso tenha de ser afirmado e reafirmado em editoriais, na imprensa, na televisão, nas mídias sociais. Trata-se de uma volta aos elementos básicos de uma democracia liberal, nunca é demais lembrar.
 
Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na UFRGS.