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domingo, 9 de julho de 2023

Sexo em tempos de inteligência artificial - Revista Oeste

Dagomir Marquezi

O uso de IA em atividades pornográficas levanta questões morais complexas


Foto: Shutterstock
 
Três homens entram num banheiro público. Encontram uma faxineira muito jovem fazendo seu trabalho. Os três dominam sexualmente a garota, ali mesmo. São insaciáveis. E, o mais chocante, a menina gosta daquilo. E pede mais. Quando os rapazes finalmente se dão por satisfeitos, partem do banheiro sem dizer nada. E a jovem funcionária volta a limpar os mictórios.

Qualquer menina que fosse filmada fazendo esse tipo de sexo brutal e pervertido deveria estar protegida pela lei
Mas aquela faxineira de seios fartos não conta com nenhum amparo legal. Isso porque ela não existe. 
Assim como não existem os homens que entraram naquele banheiro.

Esse é um hentai, um vídeo pornô made in Japan – país onde a obsessão dos homens por meninas com uniforme de colegial é uma marca da cultura nacional. Por ser uma animação, nada daquilo aconteceu. Ninguém abusou, ninguém foi abusada.  
Uma personagem feita de pixels não vai procurar uma delegacia. Nenhuma ONG vai se preocupar com ela. 

Essa japonesinha com seu balde e escova é apenas uma das centenas de mulheres e homens praticando sexo bizarro nos meandros da internet. Ninguém liga mais para isso. Mas um novo gênero de pornografia está dando o que falar. E o que pensar.

O jornal Washington Post publicou, na semana passada, uma matéria sobre o aumento do tráfego de imagens envolvendo sexo com crianças. 
São fotos realistas criadas em sites de criação de arte por inteligência artificial, como o Dall-e e o Midjourney

Os fóruns de pedófilos da dark web revelam uma excitação maior que a normal com essas imagens. 
Como no caso do hentai japonês, nenhuma criança foi abusada para que aquelas imagens se tornassem possíveis.

As empresas que disponibilizam aplicativos e programas de criação de imagens digitais declaram que estão fazendo todo o possível para banir a criação que envolve imagens de abuso de crianças

A esta altura, é muito ingênuo imaginar que cenas repugnantes para a maioria de nós não sejam produzidas desde sempre e exibidas para quem se interesse por elas. 
Um programa como a Stable Diffusion, segundo o Washington Post, apenas acelerou o processo: “Aumentaram a velocidade e a escala com que os pedófilos podem criar novas imagens explícitas, porque as ferramentas exigem menos sofisticação técnica do que os métodos anteriores, como sobrepor rostos de crianças em corpos de adultos usando deepfakes, e podem gerar rapidamente muitas imagens de um único comando”.Foto: Olivia Brown/Shutterstock

“Porcentagem muito, muito pequena”

As empresas que disponibilizam aplicativos e programas de criação de imagens digitais declaram que estão fazendo todo o possível para banir a criação que envolve imagens de abuso de crianças. O executivo-chefe da Stability AI (que criou o programa Stable Diffusion, aparentemente usado na produção de algumas dessas imagens) garantiu que a empresa colabora com qualquer investigação legal, além de criar um filtro para imagens explícitas. Segundo a matéria do Washington Post, é relativamente fácil driblar esse filtro, mudando o código de programação.

O executivo declarou ao jornal: “Em última análise, é responsabilidade das pessoas saber se elas são éticas, morais e legais na forma como operam essa tecnologia. As coisas ruins que as pessoas criam (…) serão uma porcentagem muito, muito pequena do uso total”. Parece uma declaração omissa, irresponsável e insensível. Mas o dirigente da Stability AI, em outras palavras, individualizou a responsabilidade por atos criminosos. Mal comparando, é a diferença entre os que defendem a ideia do chamado “racismo estrutural” e os que consideram que o preconceito é uma questão que deve ser tratada como um ato criminoso individual (ou grupal, mas não generalizado).
 
O amparo da lei
A questão é complexa até em termos legais nos Estados Unidos. Ainda segundo o Washington Post, “alguns analistas jurídicos argumentaram que o material cai numa zona legal cinzenta, porque imagens totalmente geradas por IA não retratam uma criança real sendo prejudicada”. 
Já existe uma lei (a nº 2.256) no código penal norte-americano que determina que “‘pornografia infantil’ significa qualquer representação visual, incluindo qualquer fotografia, filme, vídeo, imagem gerada por computador, feita ou produzida por meios eletrônicos, mecânicos ou outros, de conduta sexualmente explícita”.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente tipifica como crime “produzir, participar e agenciar a produção de pornografia infantil (art. 240); vender, expor à venda (art. 241), trocar, disponibilizar ou transmitir pornografia infantil, assim como assegurar os meios ou serviços para tanto (art. 241-A); adquirir, possuir ou armazenar, em qualquer meio, a pornografia infantil (art. 241-B); simular a participação de crianças e adolescentes em produções pornográficas, por meio de montagens (art. 241-C). Além disso, a atividade de aliciar crianças, pela internet ou qualquer outro meio, com o objetivo de praticar atos sexuais com elas, ou para fazê-las se exibirem de forma pornográfica, também é crime, com pena de reclusão de um a três anos, e multa”.  
Um projeto de lei de autoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) está em tramitação visando endurecer essas penas.
 
O crime do deepfake
Outra atividade ligada à inteligência artificial que está provocando reações de revolta é o chamado deepfake. 
Consiste em encaixar o rosto de uma pessoa (quase sempre o de uma mulher) no corpo de uma atriz de filme pornô em plena ação. 
O programa encaixa o rosto de uma mulher qualquer no de outra que esteja praticando sexo explícito. 
O mesmo princípio técnico que fez a falecida Elis Regina “cantar” com sua filha Maria Rita num recente comercial de automóveis.

A funcionária pública norte-americana Nina Jankowicz, que exercia um cargo numa das agências de segurança do governo Joe Biden, escreveu sobre esse drama para a revista The Atlantic. 
Ela ficou sabendo que seu rosto havia sido “encaixado” por alguém no corpo de uma estrela de filmes pornô. 
Sem conhecer o autor do vídeo, não havia muito o que fazer.

No seu artigo, Jankowicz foi honesta o suficiente para não cair no vitimismo político. 
Ela sabe que qualquer mulher famosa pode ser apanhada num deepfake. Cita filmes que usaram os rostos de Hillary Clinton e da ativista Greta Thunberg, além da cantora Taylor Swift e da atriz Emma Watson. Entre outras vítimas da falsificação estavam políticas do Partido Democrata (Kamala Harris e Nancy Pelosi) e do Partido Republicano (Nikki Haley e Elise Stefanik).

O resultado do deepfake geralmente é meio grosseiro. O tom da pele do corpo nem sempre é o mesmo do rosto, as expressões são forçadas e mudam repentinamente. 
De maneira geral, fica claro que aquilo é uma falsificação. 
Mas isso não diminui a violência moral e a covardia de quem o produz.Exemplo de uso de deepfake em rosto humano | Foto: Shutterstock

Produzir ou ser apanhado com material sexualizando crianças é crime pesado. 
Idem a produção, o tráfico e a divulgação de vídeos deepfake. 
Mas quem acha que vai reprimir esse fluxo está dizendo que pode enxugar gelo com uma flanela.

Não existe maneira de eliminar essas atividades criminosas ligadas à inteligência artificial,
provavelmente nem em países extremamente controlados, como a Coreia do Norte ou o Irã. Esse material nasce em computadores anônimos e encontra seus caminhos para chegar aos interessados. Faz parte do lado sombrio da natureza humana.
 
Freud e o pântano pornográfico
Os que acham que combatendo a inteligência artificial vão acabar com imagens de pedofilia ou deepfakes estão querendo desinventar o automóvel para evitar acidentes de trânsito. Voltar no tempo não tem lógica, não tem sentido, é um ato obscurantista e reacionário.

Os mesmos programas que criam imagens de crianças sexualizadas produzem excelentes livros infantis, histórias e fantasias visuais cheias de imaginação, ainda que artificial. Esses aplicativos estão democratizando a capacidade de produzir cultura. Apenas uma pequena minoria chafurda nesse pântano pornográfico. Mas existem questões mais amplas e sutis para reflexão.
 
 
(...)
 
 
 

segunda-feira, 13 de março de 2017

Erotização e gravidez precoce


A raiz do problema está na onda de baixaria que tomou conta do ambiente nacional

O leitor é o melhor termômetro para medir a temperatura do cidadão comum. Tomar o seu pulso equivale a uma pesquisa qualitativa informal. Aos que há anos me honram com sua leitura neste espaço opinativo transmito uma experiência recorrente: família, ética e valores aumentam o índice de leitura. Dão ibope. Há uma forte demanda de pautas positivas. As pessoas estão cansadas do bombardeio politicamente correto. Querem reflexão aberta, sem tabus ideológicos.

Em recentes artigos tratei da crise da família. Recebi muitos e-mails, sem dúvida uma sugestiva amostragem de opinião pública, sobretudo considerando o rico mosaico etário, profissional e social dos remetentes.  Neste Brasil sacudido por uma brutal crise ética, alimentada pelo cinismo dos homens públicos e pela mentira dos que deveriam dar exemplo de integridade, há, felizmente, uma ampla classe média sintonizada com valores e princípios que podem fazer a diferença. E nós, jornalistas, devemos escrever para a classe média. Nela reside o alicerce da estabilidade democrática.

Escreva algo, sublinhavam alguns dos e-mails que recebi, a respeito da desorientação da juventude. Meu artigo de hoje, caro leitor, foi pautado por você. Tomarei como gancho um dado objetivo e preocupante. Adolescentes deram à luz 431 mil bebês em 2016, o equivalente a 21% dos nascimentos no ano no Brasil. A gravidez precoce é hoje no Brasil a maior causa da evasão escolar entre garotas de 10 a 17 anos. Estudo do Ipea aponta que 76% das mães brasileiras de 10 a 17 anos não estudam e 58% não estudam nem trabalham. Outros estudos revelam que complicações decorrentes da gestação e do parto são a terceira causa de morte entre as adolescentes, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. A gravidez afeta até quem mal saiu da infância.

A gravidez precoce realmente se está tornando um grande problema na educação. Crianças condenadas a não estudar. Horizonte cruel. Futuro triste. Cenário complicado. Mas dramaticamente coerente com um país em que o ministro mais importante não é o da Educação ou da Saúde, mas o da Fazenda.  É um absurdo acreditar que uma criança vá ter maturidade para ter um filho com essa idade. Pregar a abstinência sexual de meninas de 10 a 14 anos não significa ser moralista ou careta, mas responsável. Não se trata de histeria conservadora, mas de bom senso.

A culpa não é só do entretenimento permissivo ou da TV, que frequentemente apresenta bons programas. É de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País seja definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.

O governo, assustado com o crescimento da gravidez precoce e com o crescente descaso dos usuários da camisinha, investe pesadamente nas campanhas em defesa do preservativo. A estratégia não funciona. E não funcionará. Afinal, milhões de reais já foram gastos num inglório combate aos efeitos. A raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias o sexo é guindado à condição de produto de primeira necessidade.

Atualmente, graças ao impacto da TV e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do que os adultos de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. Com o apoio das próprias mães, fascinadas pela perspectiva de um bom cachê, inúmeras crianças estão sendo prematuramente condenadas a uma vida “adulta” e sórdida.

Promovidas a modelos, e privadas da infância, elas se estão comportando, vestindo, consumindo e falando como adultos. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso, a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.  Se quisermos um entretenimento de qualidade, precisamos separar o exercício da liberdade de expressão da prática do entretenimento mundo-cão. Há uma liberdade de mercado que produz um mercado da liberdade. De resto, mesmo que exista uma demanda de vulgaridade e perversão, deve-se aceder a ela?

Suponhamos que exista um público interessado em abuso sexual de crianças, assassinatos ao vivo, violência desse tipo. Nem por isso a TV deveria ter programas especializados em pedofilia e assassinatos. O mercado não é um juiz inapelável. Não se deve atuar à margem dele, mas tampouco se pode sobrevalorizá-lo.  As campanhas de prevenção da aids e da gravidez precoce batem de frente com novelas e programas de auditório que fazem da exaltação do sexo bizarro uma alavanca de audiência. A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são, de fato, o resultado da cultura da promiscuidade que está aí. Sem nenhum moralismo, creio que chegou a hora de dar nome aos bois, de repensar o setor de entretenimento e de investir em programação de qualidade.

O Brasil, não obstante suas dramáticas chagas sociais, políticas e econômicas, é uma nação emergente. É, sem dúvida, bom de samba. Mas é muito mais que o país do gingado e do carnaval.
Fonte:  Carlos Alberto Di Franco - O Estado de S. Paulo